QUADRO HISTÓRICO DAS TEORIAS DE TRADUÇÃO

Rafael Lanzetti (UFRJ, SENAC-Rio)

Ementa

Este mini-curso tem por objetivo elencar as principais correntes teóricas da tradução desde as concepções pré-linguísticas ditas impressionísticas dos autores romanos (Cícero, Horácio), passando pelas teorizações medievais, as traduções da Bíblia, os românticos alemães, os filósofos fenomenologistas, o estruturalismo do Século XX com o nascimento da teoria lingüística de Saussire até as tendências da pós-modernidade no Canadá, Inglaterra, Alemanha, França e Estados Unidos. Também será devidamente mencionado o desenvolvimento da teoria da tradução no Brasil com os irmãos Campos, o desconstrutivismo de Rosemary Arrojo e a teorização moderada de Paulo Henriques Britto.

Introdução

Onde e quando começou a teoria da tradução?
- Os primeiros tradutores.

· Targumim (300 a.E.C.) - A tradução literal

Os chamados targumim foram, provavelmente, as primeiras traduções críticas do mundo, ou seja, traduções para as quais estudos críticos foram compilados, a fim de se estudar a “fidelidade” e a “recepção” do texto traduzido. Os targumim eram traduções para o aramaico (língua vernácula dos judeus nos séculos posteriores ao IV a.E.C.) dos Escritos Sagrados, do Cânone Judaico (escritos originalmente em hebraico). O ideal tradutório dos tradutores dos targumim era ser o mais “fiel” possível ao texto original, não importando se o texto de chegada não obedecesse a sintaxe e a pragmática da língua-alvo.

·

Cícero & Horácio (106-8 a.E.C.)
- De optimo genere oratorum,
Ars Poética

Em seus escritos sobre a interpretação, a oratória e a poética, Cícero e Horácio quebram com a tradição de “fidelidade” da tradução, preferindo que o texto traduzido soasse natural e fluido. O “sentido completo” do texto original, portanto, ficaria em segundo plano.

· Tradutores medievais - Monges cristãos

Os tradutores-monges medievais (séc. IX-XIV), precursores das teorias de Cícero e Horácio, foram responsáveis por quase 90% de todas as traduções para e de línguas ocidentais na Europa. Através da tradução para o latim dos Escritos Sagrados Judaicos, conhecida como Vulgata, São Jerônimo permitiu que a dogmática Cristã se estabelecesse no ocidente, dando vigor ao estabelecimento do poder da Igreja.

· Boécio (Séc. IX)

Boécio, um ministro ostrogodo que vivia na Roma pós-invasão bárbara, foi o responsável pelas retraduções dos escritos de Aristóteles para o latim a partir do árabe. Muitos livros de Aristóteles haviam sido perdidos no tempo, e traduzidos para o árabe por Ibn Averroes. A tradição aristotélica ocidental (como a introdução feita por Tomás de Aquino de conceitos aristotélicos na dogmática Cristã) só pôde ser continuada devido ao trabalho de Boécio.

· Alexander Fraser Tytler (1790)

No final do século XVIII, o jurista inglês Tytler escrever o primeiro ensaio exclusivamente sobre a questão da tradução, no qual elenca os princípios tradutórios, baseados em sua experiência como tradutor literário. Os princípios de Tytler são:

1. A tradução deve consistir na transcrição completa das idéias do texto original;

2. O estilo da tradução deve ser o mesmo do texto original;

3. O texto traduzido deve possuir a mesma fluidez do texto original.

· Autores-tradutores

A partir do século XV, autores neoclássicos começam a traduzir a tradição literária da Grécia e de Roma para as línguas vernáculas européias. A partir de suas experiências no ofício de tradutores, estes produzem uma série de ensaios, métodos e conselhos para os que desejam traduzir. Devido ao fato de serem respeitados como literatos, esses autores recriam a concepção do ideal tradutório dos targumim, pois, para eles, o texto traduzido tem por objetivo ser o mais “fiel” possível ao original. Essas concepções foram preconizadas, principalmente, por Dante, Goethe, Baudelaire, Mallarmé, Nietzsche, Pound, entre outros, começando no período do Renascimento e passou ao Romantismo (principalmente alemão).

AS TEORIAS MODERNAS DE SIGNIFICADO

· Teorias lingüísticas e antropológicas
- Saussire, Humboldt, Whorf (Sapir)

A partir do século XX, o elemento antropológico entra para o palco dos estudos lingüísticos, iniciados por Saussire. Humboldt escreve ensaios sobre a natureza das línguas e suas relações com a cultura, Whorf e Sapir fazem estudos antropológico-linguísticos com populações indígenas norte-americanas e formulam a chamada hipótese Sapir-Whorf

A hipótese de Sapir-Whorf

· Relação passado-futuro dos índios yahoos

· 7 palavras para “snow” na língua ynuit

· 3 palavras para “blue” em grego - blé, galanó e galázio

Essa hipótese encontra respaldo filosófico na proposição de Wittgenstein, em seu livro Tractatus Loghico-philosophicus: “Minha visão de mundo é determinada pela minha linguagem.”

Ludwig Wittgenstein (1889-1965)

· Primeira fase:

Tractatus Loghico-philosophicus

“Os limites de meu pensamento são os limites de minha linguagem”

· Segunda fase:

Philosophical Investigations

Philosophical Investigations

· Semelhanças familiares

· Jogos de Linguagem

· “O significado de uma palavra é o seu uso na língua”

O QUE É TRADUZIR?
- TEORIAS PÓS-MODERNAS DA TRADUÇÃO

· Transmitir?

· Transferir? - mito de S. Christophorus de Basiléia

· tra + ducere

Como definição parcial, própria para este trabalho, estabelece-se que traduzir é transferir os jogos de linguagem de uma língua para os jogos “equivalentes” de uma outra língua.

· Existe equivalência?

· Não-equivalência entre línguas

· Tendências pós-estruturalistas - Desconstrução

· Jacques Derrida, Rosemary Arrojo

· Ilusão Logocêntrica

· Desconstruindo a desconstrução

· Conceitos desconstruídos

o Originalidade

o Fidelidade da tradução

o Sentido do texto dado, no próprio texto

o Tradução literal

o Tradução técnica/tradução literária

UMA VISÃO PRAGMATISTA DA TRADUÇÃO

Segundo HUMBOLDT (1936), os sistemas lingüísticos são parte intrínseca de uma dada cultura, e a necessidade que há de se expressar conceitos em uma dada língua é determinada pela própria cultura. Humboldt dizia que não há qualquer relação intrínseca entre as culturas do mundo, as formalidades “universais”, como: agradecer, saudar, pedir desculpas etc. são meras convenções. No entanto, o que estabelece a visão que um sujeito tem do mundo é sua cultura - socialmente compartilhada, mas única, singular - comum à seu grupo social, e ao mesmo tempo idiossincrática. A rigor, não existem relações entre conceitos culturalmente determinados de uma cultura x e outra y. Se x não tem qualquer contato físico com y, os conceitos de y pouca ou nenhuma importância têm para x. A isso equivale dizer que x, sendo uma cultura independente e auto-subsistente, assim como y, são mundos fechados, feudos culturais sem nenhuma sinapse com outros feudos. Se tal teoria for levada a fim e a cabo, fica-se estabelecido que não há qualquer relação entre a língua de x e a de y. As palavras destas línguas representam mundos diferentes, mesmo se consideradas equivalentes pelos dicionários. Ao se pensar por exemplo na palavra floresta, é possível imaginar que um brasileiro pensasse em um agrupado gigantesco de árvores tropicais, relativamente espaçadas umas das outras, cuja fauna é composta por onças-pintadas e macacos, com clima permanentemente quente e úmido - uma visão da Floresta Amazônica. É possível que para um alemão, no entanto, a palavra Wald (tida como “equivalente” em qualquer dicionário bilíngüe português-alemão) tenha como referência um símbolo completamente diferente - árvores coníferas, que formam um tecido de vegetação fechado, escuro, frio, habitado por ursos, veados e esquilos - uma visão da Floresta Negra. De que equivalência poder-se-ia falar aqui? A medida em que os mundos culturais são diferentes, estes precisam denotar símbolos diferentes, que não necessariamente correspondem a qualquer outro símbolo de qualquer outra cultura.

A desconstrução tem por objetivo desfazer as crenças na relação um a um entre palavra e sentido, entre palavras de uma língua e de outra, entre equivalências diretas e claras. Segundo ARROJO (1993), tudo não passa de ilusão logocêntrica, uma vez que só o que podemos fazer com o discurso é utilizá-lo para produzir mais discurso - que não passa de linguagem, não verificável, “desconstruível”.

A rigor, se levarmos as teorias humboldtianas e desconstrutivistas ao radicalismo, pode-se chegar à conclusão de que toda a tradução é impossível. O grande precursor da desconstrução na França, Jacques DERRIDA (1967:123 et seq.), chega mesmo a negar, em seu rigor teórico (e pouco prático), a possibilidade de toda e qualquer comunicação.

Tendo como porto-seguro a concepção de verificabilidade dos resultados, podemos dizer que a teoria desconstrutivista não é verdadeira, pelo menos parcialmente, já que o mundo vive e depende dos milhões de palavras traduzidas a cada hora, da comunicação de informações de maneira rápida e permanente entre as nações, da interpretação “correta” e “verificável” dessas informações.

Tem-se portanto, é impossível negar, algum “fenômeno” de equivalência que permite que traduções sejam realizadas pragmaticamente. Este fenômeno é justamente o consenso da concepção judaica, o convencionalismo lingüístico, adotado pelos povos através do fluxo da História. É, pois, a equivalência intra e/ou interlingüística utilizada como ferramenta na tradução, meramente consensual.

É evidente que não se trata aqui de uma percepção simplista do acordo social explicitado. Não se trata de uma reunião de cúpula da ONU, com representantes de entidades lingüísticas de diversas nações, para decidirem que palavras de suas línguas serão consideradas equivalentes a que palavras em outras línguas. Todo acordo lingüístico é fruto do desdobramento dos séculos e do deslocamento do Homem na História. Fala-se em História ao se mencionar toda trajetória orgânica, social, intelectual, ética, moral e, por fim, cultural do ser humano, desde sua aparição consciente no mundo.

Stanley Fish, pragmatista americano da Universidade de Harvard, tece, em seus textos, sua própria teoria pragmatista (cf. FISH, 1980). Stanley Fish coloca sobre os ombros de uma denominada “Comunidade Interpretativa” o papel de uma espécie de juíza de valores. Os que discordam das determinações desta, estão “teologicamente errados” (FISH 1980:189). O texto passa a significar, portanto, tudo aquilo, e não mais que isso, que a Comunidade Interpretativa quer que ele signifique. O significado de um texto é, portanto, dissociado do texto por completo e atribuído à Comunidade Interpretativa. Por Comunidade Interpretativa (doravante CI) entende-se um grupo de pessoas (no caso de Fish, de acadêmicos), que expressam uma mesma leitura de um texto, interpretando-o de maneira equivalente.

Assim, ao observar-se o mundo com os olhos de Fish, é possível estabelecer (coerentes) relações entre todo significado - de um texto, de uma proposição filosófica, de uma equivalência tradutória - e a interpretação canônica que se faz dele. O Tudo significa somente aquilo que os detentores do poder de coerção social querem que ele signifique. O motivo que leva à eclosão de tal fenômeno só pode ser encontrado nas relações ideologizadores de Althusser. Para ALTHUSSER (1984), sendo o fator social ideológico e ideologizador inescapável, inevitável, perdem-se as concepções de estranhamento em relação aos fenômenos e estabelece-se o canônico, segundo o princípio da naturalização. Não se questiona o porquê de tal palavra ser “considerada” equivalente a uma outra, pois “é esta a ordem das coisas”. O fenômeno ideologizador leva à alienação. A concepção consensualista transforma-se num arquétipo de proposta onomatopaica. Isto é aquilo, diz-se. Perde-se a noção da origem, arbitrária e convencional - e ganha-se a (equivocada) impressão de Verdade absoluta, universal e imutável.

O CONCEITO DE DISCURSO DE PODER
DE MICHEL FOUCAULT

Michel Foucault, francês, filósofo e historiador do pensamento, desenvolveu, entre muitas outras, uma chamada “teoria genealógica” que tenta explicar mudanças nos sistemas de discurso através das conexões destes às práticas não discursivas de exercício do poder social. Assim como as genealogias de Nietzsche, as de Foucault refutaram qualquer esquema explanatório, como os de Marx ou Freud. Ao invés disso, ele encarava os sistemas de pensamento como produtos contingentes de muitas causas pequenas e não-relacionadas. Essencialmente, os estudos genealógicos de Foucault enfatizam a conexão real entre o conhecimento e o poder. Instâncias de conhecimento não são estruturas intelectuais autônomas que podem ser utilizadas como instrumentos baconianos de poder, mas estão essencialmente ligadas a um sistema de controle social.

Os escritos genealógicos de FOUCAULT (1975), que fazem parte de sua terceira e mais duradoura fase filosófica, começam com uma apologia de Nietzsche e suas teorias genealógicas originais. O filósofo francês propõe uma complementação da teoria original de Nietzsche e afirma que “...todo e qualquer discurso é uma clara tentativa de exercício de poder social” (FOUCAULT, 1975). Esta conexão essencial foucaultiana entre conhecimento (discurso) e poder reflete a visão do autor francês de que o poder não é meramente repressivo, mas uma fonte de valores positivos, criativos, e sempre perigosos. Apesar de os sistemas de conhecimento expressarem uma verdade objetiva per se, estes estão sempre ligados aos regimes de poder correntes. Por outro lado, todo e qualquer regime de poder necessariamente dá vida a um sistema de conhecimento sobre os objetos que pretende controlar. Este conhecimento pode, no entanto, em sua objetividade, ir além do projeto de dominação a partir do qual foi criado.

TRADUTORES TEÓRICOS BRASILEIROS

Em contato com toda a teoria desconstrutivista e pragmatista, os tradutores pós-modernos têm subsídios suficientes para encarar o ofício de traduzir criticamente, podendo levar em consideração aspectos sociológicos, antropológicos, políticos, éticos, históricos, religiosos, filosóficos e econômicos presentes no texto, no autor e no contexto em que o texto foi escrito. Assim, pode-se dizer que, desde os tradutores dos targumim, passando pelos medievais e os renascentistas, sempre deixou-se de levar em consideração, ou deu-se menos importância a um dos elementos envolvidos no processo tradutório: o texto original, o autor, o contexto, o texto traduzido e o tradutor. Hoje, parece haver a preocupação, principalmente por parte de tradutores-teóricos brasileiros, como Paulo Rónai e Paulo Henriques Britto, em contemplar todos os elementos citados em graus variantes de texto para texto. Os tradutores passaram, portanto, de antropófagos a antropólogos.

BIBLIOGRAFIA BÁSICA

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