A
VARIANTE ESTIGMATIZADA
E
SEU
PRECONCEITO
INTERNO
Carlos Eduardo Veiga Borges (UCB)
O
estudo de sociolingüística tem
por
objetivo a
análise e a
abordagem dos
fatores
que influem na
execução de uma
língua numa
dada
comunidade. O
enfoque direcionado
para as
discrepâncias
entre as variadas
vertentes de uma
língua e as
atitudes
cabíveis aos
falantes da
mesma é de
vital
importância
para
um
estudo
que se baseie na
observação da
linguagem
humana
em
funcionamento.
Esta
pesquisa tem
por
objetivo
analisar as
relações
entre
falantes da
variante não-padrão e
sua
própria
linguagem, focalizando a
forma
preconceituosa
como agem
estes
usuários
em
relação a
seus
semelhantes,
sem
perceber
que agridem a
si
próprios.
Não se deve
apenas
evidenciar
um
fator de
incoerência ideológica,
mas propor-se a
enfatizar uma
parte
importante do
comportamento
social e
humano, uma
parte
que,
em
nossa
época, é
tomada
como
algo
recorrente e
natural: o
preconceito
lingüístico.
INTRODUÇÃO
É
fato
irrefutável
que no Brasil o
que se
fala
não é
só uma
Língua Portuguesa. As
línguas
são heterogêneas. O
que se
fala no Brasil é uma
gama de variações de uma
mesma
língua, variações estas influenciadas
por
diversos
fatores, sejam
eles diatópicos,
diacrônicos
ou diastráticos. Esta
última
espécie de variação, diastrática,
que é uma variação no
âmbito
econômico,
social e cultural da
língua, é de
importância
sumária
para o
desenvolvimento desta
pesquisa.
No Brasil,
como
em
qualquer
lugar do
mundo, há uma
variante
padrão da
língua, eleita
não
por
fatores de
superioridade
gramatical,
semântica
ou
sintática (este
conceito é,
aliás, reprovável
sob
todos os
aspectos,
pois
não há
variantes
mais
ou
menos complexas,
melhores
ou
piores),
mas
por
fatores ideológicos de
ordem
política e
social. Uma
questão
puramente
estética.
Em
detrimento a esta
variante
padrão, temos todas as outras
que,
por
sua
vez,
são estigmatizadas, menosprezadas, maculadas
como uma
pústula
social
que deve
ser
banida de
nosso
convívio.
É
sobre
este
preconceito
que esta
pesquisa vem
tratar. No
entanto,
tomar o
preconceito
visto de
cima
para
baixo, observá-lo
como
um
confronto dos
falantes da
variante
padrão
em
relação aos
falantes da
variante não-padrão seria
óbvio e
redundante.
Por
este
motivo, o
que se aborda nesse
estudo é o
preconceito
que os
falantes da
vertente não-padrão exercem
contra
seus
semelhantes e,
inconscientemente,
contra
si
próprios.
Pode-se
tomar
este
estudo
como
válido
para
desmistificar algumas
concepções de “certo”
e “errado”, haja
vista serem
estes
valores calcados na
mera
discriminação, e
que
não convém serem disseminados
por
não possuírem
conteúdo
profícuo à
análise
baseada na
seriedade.
A
DOMINAÇÃO
Dominar –
definição extraída do
dicionário de
Celso Pedro Luft – é
exercer
domínio
sobre,
submeter,
sujeitar,
sobrepujar.
Não é
preciso
fazer uma
análise
social
mais
profunda
para
observar
que
muitos
brasileiros,
homens e
mulheres, vivem
em
constante
situação de
dominação. Muitas
vezes, uma
dominação
por
fatores
externos;
mas há
também
um
subjugar de
si
próprio.
E
esse
domínio
não concerne
apenas a
fatores socio-políticos e financeiros
que as
classes ditas elitizadas fazem
em
relação à
classe considerada
mais
frágil e
subalterna. A
dominação de
que quero
tratar é aquela
que diz
respeito ao
fator
mais
intrínseco ao
homem, a
característica
que os
indivíduos contraem
desde a
infância e
que perdura
por todas as
suas
vidas:
sua
forma de
falar.
Ao
longo dos
séculos,
muitos foram os
métodos de
coação das
classes “nobres”
em
relação às
classes “inferiores”,
mesmo no
tocante à
língua. Veremos
que,
desde
muito
tempo, se vem considerando uma variação
lingüística tida
como “correta”, “melhor”
para as
classes
dominantes, e uma variação da
mesma, considerada “errada”, “vulgar”,
para as
classes dominadas. Veremos
também
que
métodos foram utilizados
para
operar nesta
inibição – os
mitos
lingüísticos do “melhor”
e do “pior” – e
métodos
que vêm sendo divulgados
até
hoje e
que, o
pior,
são tidos,
mesmo
pela
classes subjugadas,
como
algo
redentor,
que devem
ser seguidos
para
expurgar os “maus
hábitos” do “falar errado”.
Uma
língua
para os
nobres
Quando
nos referimos ao
tema
Língua Portuguesa, no
que remete à boa
escrita e
pronúncia, temos
um
ponto
pacífico: a “boa”
língua é aquela das
gramáticas normativas, aquela
em
que
não há
erros,
não há
falhas
nem
incoerências.
Resumo: “Língua Portuguesa boa
somente a
variante
padrão”.
Por
razões extra-lingüísticas, esta
variante
padrão foi
associada a
um
nível
social de
vida
que é concedido
somente à uma
pequena
parte da
população. E vem sendo
assim
desde
longa
data.
Não
só no Brasil,
mas no
mundo.
Como afirma
Marcos Bagno (2002)
em
seu
livro
Preconceito
Lingüístico,
muitos acreditam
que a
linguagem
humana serve
para
comunicação de
idéias, a perpetuação e
transmissão da
mesma. O
que, na
verdade, se pode
observar é
que a
linguagem funciona
também na
contramão, servindo
para
mascarar
verdades,
dissimular
conceitos, torná-los
herança dos privilegiados
sociais. Uma
análise
histórica de
Leda Tfouni (apud
Marcos Bagno) denotou
que na
Índia,
por
exemplo, a
escrita
tinha
vínculos
com
textos
sagrados, aos
quais
só tinham
acesso
sacerdotes
que faziam
parte da
elite
social. Na China, o
uso da
escrita ideográfica justificava a
sua
finalidade assegurando
poder à
classe
nobre. Cabe
lembrar
que
durante a
Idade
Média
somente a monarquia e o
clero adquiriam
conhecimentos
lingüísticos
relativos à
escrita e à
leitura.
Hoje
em
dia, o
saber é
mais explicitado; há uma
divulgação
bem
mais
ampla, há uma
propagação
maior de
conhecimento.
Mas
isso
não significa
que fazemos
parte de uma
sociedade considerada
culta.
Aliás,
estatísticas comprovam
que
mais de 18
milhões de
brasileiros
são
analfabetos (índices
comprovados
pelo IBGE). Levemos
em
consideração
que a
escola considerada “para o
povo”
não capacita
honestamente os
indivíduos
que nela adentram, haja
vista a
grande
taxa de reprovação e
evasão
escolar.
Magda
Soares (1999),
em
sua
abordagem sociolingüística,
deixa
claro
que a
escola
pública
hoje
não
torna
aptos
seus
usuários da
forma
como deveria:
A
escola
pública
não é,
como
erroneamente se pretende
que seja, uma
doação do
Estado
para o
povo; (...)
não há
escolas
para
todos, e a
escola
que existe é
antes
contra o
povo
que
para o
povo.
O
que deveria
ser
um
instrumento de sociabilização do
indivíduo, imprimindo-lhe
conceitos de
cultura e
cidadania, na
verdade é uma
ferramenta de
exclusão e marginalização. A
Língua Portuguesa
que é
proposta e estudada na
escola,
não é a
mesma dos
alunos
que
lá estão.
Estes,
usuários de uma
variante considerada “errada”
pela
instituição, acabam
por se sentirem menosprezados
quando confrontam-se
com a
variante
padrão. Acreditam
mesmo
que
aquilo
que falam
não é
português,
ou, é errado. Nota-se
que esta
vertente
padrão tornou-se
um
emblema,
um
pavilhão
carregado
por
aqueles
que a usam (ou
assim se dizem). Tornou-se uma
fórmula,
mais uma, de
dominação e elitização
social,
onde o
preconceito
dissidente do
processo se faz cíclico e
constante.
Uma
língua
para a
plebe
A estratificação
social,
além de
ser uma
forma
desonesta e
espúria de estigmatização, é geradora de
conceitos
que maculam os
mais
fracos e enaltecem os
fortes.
Muitos
conceitos
que eram veiculados
séculos
atrás,
ainda o
são
hoje –
por
exemplo, a
velha e mofada
conversa
sobre
predestinação,
onde
aquele
que nasceu desfavorecido
assim continuaria
por
toda a
vida.
Atualmente,
são
notórios
alguns
casos de
preconceitos
gratuitos e
infundados. No
tocante à
linguagem,
não é
preciso
mencionar os inúmeros
casos de
estereótipos
relativos aos “maus
hábitos
lingüísticos” das
classes discriminadas.
E é
assim
que se tem
visto a
língua
falada pelas
classes
que fazem
uso da
variante não-padrão:
um
conjunto de
erros e
incoerências
gramaticais,
que discrepam
absolutamente
do
português “correto”.
Trouxeram-se à
baila,
inclusive,
teorias científicas
que explicariam essas “aberrações
lingüísticas”.
Espanta
dizer
que
profissionais
que se consideravam
sérios contribuíram
para
aumentar o
preconceito atribuído a
esse
tipo de
variante.
Magda
Soares (1999) apresentou-nos
três
hipóteses
que se propunham
explicar o
fracasso das
classes
populares na
escola. A
primeira delas é a
ideologia do
Dom,
que se baseia
em
conceitos
psicológicos
para
incapacitar os
indivíduos
que provinham das
camadas
sociais
mais
baixas da
pirâmide
social.
Segundo essa
ideologia, existiriam desigualdades
naturais, intrínsecas ao
indivíduo,
que propiciariam uma
dificuldade da aprendizagem. Dessa
forma, a
escola expurgaria
sua
culpa, tornando-a
herança do
próprio
indivíduo, e, consequentemente,
incapaz de adaptar-se à
escola e ao
que
ela
lhe oferece.
Mas esta
análise
preconceituosa deu-se
por
terra, haja
vista
seu
tom explicitamente elitizador,
ou seja,
somente
quem possui essas
deficiências
intelectuais eram
indivíduos nascidos e
criados
em
classes dominadas. E
quanto
àqueles
que nasciam nas
classes privilegiadas? Será
que
esses
nunca possuíam
deficiências?
Dissidente desta
teoria, nasceu a
ideologia da
deficiência cultural,
que poria a
culpa do
fracasso
escolar na estratificação
social.
Segundo a
mesma, o
meio
em
que vive o
indivíduo das
classes
sociais
mais
baixas
não propiciaria
um
desenvolvimento de
hábitos,
habilidades e
conhecimentos
indispensáveis
para
que o
mesmo adquirisse
um
comportamento
intelectual
fundamental ao
bom
desempenho na
escola.
Novamente, uma
abordagem
preconceituosa
tenta
explicar
um
problema
que
não mantém
vínculos
com os
fatores de estratificação
social.
Não é
posto
em
questão o
problema socio-econômico
que caracterizou esta estratificação, os
problemas
políticos e ideológicos
que reafirmam
esse
preconceito.
Mais uma
vez, é
posta à
prova uma
teoria
infundada,
pois, do
ponto de
vista antropológico,
não existe
cultura
inferior
ou
carente,
mas
sim
diferente, e
logo,
qualquer
atribuição de
valores à
mesma seria errado.
Baseando-se nesse
conceito de
diferenças, temos a
ideologia das
diferenças culturais. Numa
sociedade
urbana e
complexa
como a
que vivemos é
notório o
fato de
haver uma
gama
muito
maior de
grupos
sociais e
guetos,
cada
um
com uma
forma
diferente de
agir e comunicar-se,
não
absolutamente
discrepantes uns dos
outros,
devido às
atividades de
integração
social,
mas
que possuem uma
forma
mais
particular de
expressão. No
entanto, sabe-se
que vivemos
em uma
sociedade
capitalista burguesa,
em
que os
valores desta
são sublimados e tidos
como
exemplo. Os obtentores do
capital têm a
sua
própria
cultura, e esta é tida
como
ícone
em
todos os
centros culturais,
inclusive na
escola.
Ora, o
aluno
quando
chega nas
instituições de
ensino tidas
como “para o
povo”, dá-se
com uma
forma de
cultura
diferente da
sua,
só
que a
escola
não está
pronta
para
aceitar essa variação e o discrimina, atribuindo-lhe
valores
pejorativos, tornando-lhe
marginal e imprimindo-lhe
um
senso de inferioridade.
Por essa
perspectiva, seria a
escola
responsável
pela incapacitação do
aluno.
Não
são
apenas
estes os
problemas
concernentes à
variante não-padrão utilizada pelas
classes dominadas. Há
ainda
formas de
cultura duvidosas
cuja
única
finalidade é
corrigir os
supostos “erros de
português”.
Os
comandos paragramaticais
Em
nosso
meio, há
algum
tempo vem sendo difundida uma
espécie de
mania relacionada ao “correto
falar e
escrever”.
Isso
poderia
até
ser
benéfico se o
real
sentido dessa “mania” fosse
elucidar os
falantes da
língua
em
relação às
suas
dúvidas
concernentes ao
português. A essa
epidemia de
conhecimentos classificou
Marcos Bagno (op. Cit.)
como
comandos paragramaticais. Na
verdade, os
comandos
são todas as
formas de
cultura
gramatical
que
são publicadas e vendidas
em
bancas de
jornal,
pela
Internet
ou
qualquer
outra
forma de
comércio
corriqueira.
São “livros,
manuais de
redação de
impressão de
empresas jornalísticas,
programas de
rádio e de
televisão,
colunas de
jornais e de
revistas, CD-ROMs, ‘consultórios
gramaticais’
por
telefone e
por
aí a
fora...” (Marcos Bagno
2002) O
que fazem os
comandos paragramaticais é serem
redundantes, repassando a
mesma
forma de
cultura
imposta
pela
sociedade
elitista,
só
que
com uma
roupagem
mais
acessível, agindo
assim na
proliferação dos
mitos
que
já foram descritos.
Seriam
mais uma
ferramenta da
classe dominadora
para
deplorar e
subjugar
aqueles
falantes
que fazem
uso da
vertente não-padrão, mostrando-lhes
que a
sua
língua é “errada” e
que
precisa “ser melhorada”.
Isso
ganha
um
fundo de pseudoverossimilhança
muito
forte
pelo
fato de
ser divulgado
por
grandes
emissoras de
televisão
ou de
rádio,
ou
por
ser divulgado
por
grandes
editoras de
jornais e
revistas, e
ainda
por
contar
com “grandes
nomes” de
gramáticos renomados, habilitados a
ridicularizar todas as outras variações da
língua
que
não seja a
vertente
padrão.
CONCLUSÃO
Falar
sobre
os
males
da
sociedade
é
mera
conivência
se
não
são
trazidas à
baila
propostas
para
bani-los.
Contudo,
falar
sobre
soluções
sem
pô-las
em
prática
é
apenas
demagogia.
Devemos
refletir
sobre
aspectos
que passam
despercebidos
por
nossos
olhos,
bocas e
pensamentos,
em
verdades
que
são repetidas
por
homens e
mulheres
que
só as dizem
por condicionamento,
por
tradição. Uma
tradição
burra de
negar o
que é
diferente e de
banir o
que foge ao
senso
comum.
As mudanças devem
estar
sempre seguindo
em
frente,
pois
como afirmou Saussure, a
língua é
dinâmica, e
isso exige
um
constante
aprimoramento e renovação de
conceitos,
para
que
não sejam infundadas
ou comprometidas nossas avaliações.
Aqui, mostra-se a
porta: é a
consciência de
cada
um
que deve abri-la e atravessá-la.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALKMIN, Tânia.
Introdução à
Lingüística.
São Paulo: Cortez, 2000.
BAGNO,
Marcos.
Preconceito
Lingüístico – o
que é,
como se faz. 14a
ed.
São Paulo: Loyola, 2002.
LUFT, Celso Pedro. Mini Dicionário Luft. 9a
ed. São Paulo; Ática, 1995.
SAUSSURE, Ferdinand.
Curso de
Lingüística
Geral. 22a ed.
São Paulo: Cultrix, 2000.
SOARES, Magda.
Linguagem e
Escola – uma
perspectiva
social. 16a ed.
São Paulo: Ática, 1999.