Beatriz e Laura em confronto

Livio Panizza (UERJ)

Em Petrarca, pai do humanismo literário, manifestam-se com energia as características dos novos tempos; o estudo dos clássicos, o achado de obras antigas, um estilo mais polido, um gosto mais refinado, o culto pela forma, são alguns dos aspectos que marcam o novo mundo literário de Petrarca. Depois de debruçar-se sobre as obras de Tito Lívio, de Cícero, de Virgílio, depois de apreciá-las e degustá-las, certamente lhe pareceu bárbaro o latim de Dante, dos escolásticos, como também o mundo escolástico, alegórico, místico. Petrarca desejava uma restauração da antiguidade greco-latina, tão familiar lhe parecia o mundo antigo que escrevia cartas a Horácio, a Virgílio, a Homero, a Cícero, a Sêneca, a Quintiliano, a Tito Lívio.

Em sua obra “África” expôs suas opiniões, suas qualidades literárias: clareza e esplendor no estilo, o uso da arte do claro-escuro, a perfeita polidez e harmonia na escrita, sobriedade na argumentação, comedimento nos sentimentos, uma doce cor que tudo penetra sem perturbar o equilíbrio, a serenidade, a elegância da forma.

Em Dante, o cultivo à forma não está na elaboração literária, mas na arquitetura da ciência da vida, da criação representada com clareza, com coesão, da harmonia intelectual, da mística, da espiritualização, da história em que se desenvolve o mistério da redenção, da alma, da moral refletida na vida de forma séria e elevada.

Na Divina Comedia aparecem: o sentimento de família, o amor pela pátria, o sentido de ordem, de unidade, de paz, o sentimento de indignação, o desprezo pelas coisas vis e vulgares, a firmeza de caráter, a aspiração a uma ordem ideal e superior, o espírito de verdade, a fé no amor, a convicção profética da grandeza de sua missão como homem e como poeta. Não encontramos em Petrarca a indignação dantesca, o envolvimento político, o sentido de justiça humana, nele reina a solidão, a melancolia, a ruptura interior, ele já está com a mente e o coração no novo mundo.

Beatriz

A figura de Beatriz está presente e sofre uma metamorfose significativa em três momentos da obra literária de Dante: Vita Nuova, Convívio, Divina Comedia. Do amor carnal, da paixão presente no início da Vita Nuova eleva-se a expressões de amor mais elaboradas, próprias da “charitas”, reforçadas pelas experiências intelectuais do Convívio até chegar a formas espiritualizadas e sublimadas na Divina Comédia. Dante, no início da Vita Nuova amou Beatriz segundo os cânones do amor cortês, cantando a beleza do seu olhar “che ´ntender non la può chi no la prova”, a beleza de sua face, a graça e a modéstia de seus gestos. Nesse primeiro encontro Dante é presa de turbações e de angústias que invadem até seus sonhos, mas ao término da obra seus sentimentos são sublimados, elaborando uma lírica de louvor em honra desse amor que deve ser desinteressado e puro. Beatriz é definida como:

tanto gentile e tanto onesta pare,

cosa venuta dal cielo in terra a miracol mostrare.

“Cosa” é um termo indefinido, porém real, concreto, mas também celestial, vinda do céu, reflexo do desejo de ascensão espiritual e purificação do poeta. Beatriz-mulher pertence à esfera privada da vida de Dante, à sua juventude, aos seus anos de amadurecimento humano e poético. O encontro com Beatriz representa uma nova etapa na vida poética e sentimental de Dante “rinnovata dall´amore”. Na Vita Nuova delinea-se aos poucos o caminho interior que leva o poeta a compreender que o objetivo de seu amor não pode estar ligado a nada material, nem mesmo à saudação, gesto tão significativo do amor cortês. O único objetivo de seu amor é cantar os louvores de sua Beatriz, ela é para Dante-Homem estímulo de introspecção espiritual e moral, e para Dante-poeta fonte de inspiração literária. A Vita Nuova termina com uma “mirabile visione”, após a qual Dante decide não mais falar dela até quando possa falar “ più degnamente trattare di lei”, anuncia que cantará sua mulher amada de forma diferente daquela até então usada, isto é do “stilnovismo”. Após a morte de Beatriz, Dante muda o enfoque o conteúdo de seu amor por ela, as qualidades extraordinárias exaltadas na Vita Nuova, são transmutadas na Divina Comédia, ela passa a ser veículo da graça divina, coerentemente com seu nome, ela é instrumento de beatitude. O amor juvenil por Beatriz, intensamente vivido, é revisto após a morte dela, à luz da filosofia e da teologia. Após a morte da amada, Dante sucumbiu numa profunda crise espiritual e poética, envolvendo-se com falsos amores e praticando fúteis ações. Superada a crise, Beatriz reaparece na Divina Comédia como guia do poeta no Paraíso, realizando-se em plenitude a profecia “venuta di cielo in terra a miracol mostrare”, milagre de amor divino e de beatitude, operado entre os homens, mas sobretudo Em Dante. Para delinear esta nova imagem e função de Beatriz, Dante não contava tão somente com os modelos provençais e corteses do “stilnovismo”, mas os “exempla”, biografias de santos e santas. Sem dúvida Dante, para exaltar a amada como “donna de la salute”, “piena di grazia”, “reina di virtudi”, “ distruggitrice di tutti i vizi” e cantar a Madonna já morta destacando sua força salvadora, recorreu aos perfis puros e luminosos das santas heroínas transformadas em “specula Christi”pelos hagiógrafos: Santa Clara, Santa Margarida, Beata Umiliana de Cerchi, Santa Giuliana Falconieri.

Para compreender a natureza do amor divino, é necessário um total desprendimento da alma; no mundo do além não existem convenções sociais, nem perturbações, nem mal-entendidos, aqui Beatriz assume seu verdadeiro papel: mestra de verdade. A função e o significado de Beatriz neste novo estado são bem diferentes dos exercidos na Vita Nuova. Na Comédia Dante representa a humanidade inteira, em nome da qual realiza uma viagem querida por Deus. Nesta nova dimensão Beatriz é o milagre: encarnação da revelação divina, mestra de verdade, mediadora de graça divina e realiza o milagre de conduzir não somente Dante ao Paraíso e à contemplação de Deus, mas a humanidade inteira.

Laura

O Canzoniere tem como enredo as vicissitudes dos fenômenos delicados do amor humano. Não é uma história, um progredir graduado de um ponto a outro, mas é um contínuo vagar entre impressões opostas, conforme as situações e o estado da alma neste ou naquele momento da vida. Razão e imaginação estão num contínuo diálogo dialético que se prolonga por toda a obra, acima deste duelo não está a vontade que decide a favor de uma ou de outra, a conseqüência é a solidão:

solo e pensoso i più deserti campi

vo misurando a passi tardi e lenti

sem a capacidade de decidir, abandona-se em lágrimas e lamentações, somente a imaginação oferece-lhe consolo através do simulacro da realidade :

in tante parti e si bella la veggio

che se l´error durasse, altro non cheggio.

Laura no Canzoniere é modesta, casta, gentil, “ornata di ogni virtù”, “dai capei biondi”, “dal collo di latte”, “dalle guance infocate”, “dai sereni occhi”, “dal dolce viso”, desenhada de diferentes formas, pintada de mil cores, tendo como fundo uma verde paisagem, uma chuva de flores, acompanhada pelo murmurar suave das águas. Laura de lindas formas é a mulher, o modelo e a musa de Petrarca. Laura o modelo do qual o pintor se apaixona, não como homem, mas como pintor, preocupado muito mais em representá-la do que possuí-la. Laura parece ser algo mais do que um modelo, uma linda forma serena, está aí para ser pintada, modelada, contemplada, não totalmente poética, não mulher deste ou daquele momento, mas Mulher, sem véu, não símbolo de algo, mas uma linda mulher.

Petrarca, em certas partes do Canzoniere estando seu estado de ânimo tranqüilo e prosaico, reproduz a linguagem dos trovadores, as sutilizas do código de amor, aqui é mais crítico e filósofo do que poeta, predominam as antíteses, os argumentos, sutilezas platônicas, um Petrarca culto, profundo, um maravilhoso artífice de versos, mas a alma do poeta não está presente; é nos momentos inquietos e agitados, rodeado de fantasmas, de indecisões que se encontra o poeta, o artista. É na oposição entre o que sente e o que crê que ele revela sua alma poética. Crê que a carne é pecado, que o seu amor por Laura é spiritual, pois esta lhe mostra o caminho “Che al ciel conduce”, a sua fé não o subtrai das perturbações internas; sua educação clássica e seu instinto de artista rebela-se contra as abstrações exageradas da espiritualidade sem corpo, revela-se nele um espírito novo, um sentido do real, do concreto, percebe todos os sentimentos e emoções que o amor de uma mulher possa despertar: explode a contradição, seu amor não é tão forte para provocar uma revolta contra a fé, nem a fé é tão forte para matar a sensualidade desse seu amor. Desse conflito interior nasce um contínuo flutuar de reflexões contraditórias, um sim e um não, um quero e não quero:

io medesimo non so quel che mi voglio,

se amor non è, che dunque è quel che i`sento,

falta a Petrarca a coragem e a força de sair, de separar-se desta contradição, mais ele se debate, mais se afunda em contradições.

IL Canzoniere é a historia de suas contradições. Há momentos de entusiasmo artístico mais do que amoroso, intercalados por momentos de luta interna entre razão e sentimento, a razão fala, o sentimento machuca, e momentos em que se dirige a Deus para confessar seu pecado, e lhe promete de retirar do seu coração o “falso dolce fuggitivo”; faltando a consciência de sua natureza e aceitando o jogo do sentimento, esconde-se pusilânime num sentimento elegíaco: “dolce amaro”, “costei per fermo nacque in paradiso”, “qui come venn´ío, o quando?”

Petrarca distanciado da realidade, indeciso, titubeante e solitário refugia-se na contemplação; pensamento e sentimento nele convergem para a contemplação estética, a bela forma. O que ele persegue não é o entusiasmo intelectual, nem o sentimento moral ou patriótico, mas a contemplação da beleza em si mesma, alimenta e constrói a sua obra com sentido puramente estético. Laura chora, ele diz: “Quanto son belle quelle lacrime!”, Laura morre, ele diz: “Morte bella párea nel suo viso”. É este sentimento de beleza da bela forma que permeia sua eloqüência, a língua, o verso. Laura em vida está próxima do homem, da natureza, mas esta aproximação é dissimulada por Petrarca com engenhosos sofismas, a poesia é dominada pelo intelecto, por uma reflexão retórica e sofisticada, que alterna pureza de sentimentos, sutiliza de imagens, querendo suavizar as fortes impressões, com vãos esforços de conciliação entre o querer e não querer que lutam no interior de sua débil vontade; após da morte de Laura, aliviado pela impossibilidade do pecado e purificado nas suas intenções, manifesta seus sentimentos com maior energia. Laura torna-se livre criatura na imaginação do poeta, não mais pessoa autônoma e resistente, mas um dócil fantasma, pode livremente cobri-la de afetos e pensamentos de seu agrado, pode chorá-la, vê-la, falar com ela, viver com ela, é a mulher amada, desaparecida da terra, mas que aparece e acalenta seus sonhos, pode tomá-la pela mão, enxugar suas lágrimas, falar-lhe com doçura, afetos que em vida nunca pudera manifestar, chega assim a uma melancólica conciliação de todas suas contradições.

O mundo do Canzoniere livre das funções simbólicas e doutrinais, humanizou-se, fez-se imagem e sentimento. O templo gótico da Divina Comédia transformou-se no Canzoniere num lindo templo grego, elegantemente decorado, com luz difusamente igual, com perfeita simetria, inspirado por Vênus, deusa da beleza e da graça. O grotesco, o gótico, os ângulos, as pontas, as sombras, as dissonâncias, o prolixo, o supérfluo, o vulgar, o deforme, tudo foi despejado deste novo templo de harmonia que fecha um século e abre um novo tempo. Aqui o artista goza, mas o homem sofre. Debaixo da elegante e transparente vestimenta vive um coração de homem que sofre, que se nutre de imagens e desejos, atraído pelos prazeres da natureza, chamado, porém a fazer as contas com a razão, sem força para superar as contradições, mais uma vez o homem é menor do que o artista. Este estado contraditório encontra-se também nos grandes artistas do renascimento (Leonardo, Miguelangelo...) se deliciavam com suas obras primas, mas seus corações eram atormentados. Com Petrarca a arte livra-se de seus compromissos éticos, doutrinários e afirma-se como arte, esta toma conta da vida. Petrarca não nos oferece um retrato detalhado de Laura, mas simplesmente esboçado através do topos da beleza: “bionda”, “occhi luminosi come um lago”, “capelli d’oro”, “viso di perla” , “voce soave”.

No Canzoniere a experiência do amor por Laura é delineada em vários planos temporais: é o homem maduro que visita com o tempo da memória acontecimentos passados confrontando-os com o presente e projetando-os no futuro. Nisto Petrarca apresenta um traço de modernidade, vários escritores do novecentos, como Proust, Joyce, Svevo..., recorreram a este expediente.

Em Petrarca o conflito entre alma e corpo, entre razão e vontade, transforma-se num conflito moderno entre o desejo pelo corpo da amada e o sentido de culpa, assim sendo, esta experiência se conclui com um pedido de perdão a Deus pelo seu “giovanile errore”e um agradecimento por ter levado Laura para a outra vida assim pode retomar o caminho que o leva a Ele. Mesmo assim, Petrarca considera a alma e o corpo como dois princípios que convivem e possuem direitos iguais, assim sendo, depois da morte de Laura, não despreza o corpo, como também não adere a uma atitude ascética, o corpo de Laura continua sendo apreciado pela sua beleza. Outro aspecto de modernidade da obra de Petrarca é o seu caráter aberto e problemático. Na Idade Média, “il giovanile errore”, “il smarrirsi nella serva oscura” encontra uma solução que prevê a recomposição ética do protagonista, e um retorno à lógica da virtude, à obediência à lei divina. Em Petrarca permanece até o final uma espécie de conflito interno que parece evidenciar a incapacidade do homem por uma escolha ou decisão definitiva. Esta perspectiva é mostrada também no diálogo entre Francisco e Agostinho da obra “Secretum”, onde Francisco camufla com razões ideais e espirituais a consciente atração que sente por Laura.

Conclusão

Para concluir vamos destacar alguns aspectos diferenciais entre Dante e Petrarca, aprofundando mais um pouco as diferenças entre Beatriz e Laura.

No contínuo conflito interior de Petrarca, é interessante notar sua tentativa de fugir de suas contradições recorrendo muitas vezes a expedientes estilnovistas para poetar Laura. Ele considera seu amor por Laura um motivo de pecado, em antítese com o amor celestial que reclama sempre uma segura e lúcida retidão moral, mas sua vontade o trai.

Dante mesmo admitindo hesitações, indecisões, ancorado no forte ascetismo medieval, chega sempre a uma escolha a favor da busca espiritual, da retidão moral.

Petrarca cultiva a solidão e a melancolia, sempre atormentado pelo seu estado pusilânime diante do amor de Laura; Dante destroçado, incompreendido, perseguido, exilado, lança-se nas ondas agitadas da vida e refaz diariamente seu ideal, Beatriz.

Em Dante “il sospir d’amor” é a vontade do amante em melhorar e chegar ao nível de perfeição da amada, em Petrarca é sinal de sofrimento.

Em Petrarca o esplendor de Laura perturba os sentidos do poeta, desperta o sentimento de pecado e de fraqueza, sendo motivo de tormento. Em Dante o amor por Beatriz é sublimado numa dimensão espiritual, depurado de toda contaminação do corpo, sendo motivo de elevação espiritual.

A beleza para Dante é aparência simbólica, a linda face da sabedoria, atrás de toda beleza está a seriedade da vida intelectual e moral. Para Petrarca a beleza, emancipada de todo símbolo, fala de si e para si, ela é autônoma, independente, ela é o seu conteúdo.

Beatriz morta é assumida por Dante como sabedoria, como caminho para Deus, como mediadora da graça divina; Laura morta continua com o seu fascínio de mulher, seus atributos femininos podem ser livremente descritos e continuam sendo motivo de delicados sentimentos, de ternas emoções como quando era viva.

Com Beatriz não só passamos pelo stilnovismo, mas percorremos o mundo medieval com seus símbolos e alegorias, o mundo da filosofia e da teologia; com Laura, mais homens menos anjos, descobrimos a beleza feminina com todos seus predicados e quais amantes, descobrimos o tempo e o espaço do amor que mesmo que faça sofrer dever ser tratado com toda elegância.

Dante elevou Beatriz ao topo do universo e com ela conheceu e penetrou os arcanos da luz divina, Petrarca colocou em Laura o universo e com ela conheceu e penetrou os segredos do amor humano

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