Cuspe,
Marchemelo e Champignon
(A
Desesperança
e a
Fragmentação
Social
no
Conto
“Abril,
no
Rio,
em
1970”,
de Rubem Fonseca)
José Carlos Marques (USP; UNISA e UNIP)
Ao
longo das últimas
quatro
décadas, a
Literatura
Brasileira assistiu ao
surgimento de
vários
romancistas e
contistas
que passaram a
utilizar a
temática da
violência
urbana
como
um dos
elementos
essenciais de
sua
prosa.
São
textos
em
que se realça a
temática da
violência,
sob os
mais
diferentes
ângulos, num
ambiente
social
que se transforma
em
agente
gerador de desequilíbrio. Temos a
todo
instante
personagens a
transitar
entre os
limites da marginalidade e do
submundo no
cenário da
grande
metrópole. Trata-se de uma
escrita contaminada
por
aquilo
que Alfredo Bosi chamará de
estilo “brutalista yankee” (BOSI, s/d.).
Dentro desse
propósito, o
presente
artigo tem
como
objetivo
analisar
um
texto
específico de Rubem Fonseca – o
conto “Abril, no
Rio,
em 1970” –, à
luz de
conceitos advindos das
correntes teóricas do pós-modernismo e do
neobarroco. Destaque-se
ainda
que o
conto
em
questão foi publicado
em 1975 no
livro
Feliz
Ano
Novo,
obra
que,
em 1976, seria
proibida
pela
Censura
Federal e apreendida
sob
acusação de
atentado à
moral e aos
bons
costumes
por
ordem do
então
Ministro da
Justiça, Armando
Falcão.
Embora Rubem Fonseca tenha entrado
com uma
ação
contra a
União
logo
após
sofrer o
veto da
censura, a
liberação do
livro
só aconteceria 10
anos
mais
tarde,
em 1986.
O
conto “Abril, no
Rio,
em 1970” apresenta
um
jovem
que
sonha tornar-se
jogador de
futebol
profissional
por
influência da
Seleção
Brasileira
que,
em 1970, preparava-se
para
disputar a
Copa do
Mundo do México.
Além disso, contêm as
principais
características
que fundamentam a
obra
narrativa de Rubem Fonseca: uma
ficção de
temática
estritamente
urbana,
com o
uso de uma
linguagem
seca e
imediata (representando o relato de uma
narrativa
oral transcodificada
para o
papel) e
com o
predomínio do
foco
em
primeira
pessoa (trata-se do
próprio
protagonista
que relata os
acontecimentos e
sua
experiência dos
fatos).
Essa
espécie de ultra-realismo
sem
preconceitos
que aparece
em Rubem Fonseca,
esse “realismo
feroz” a
que
alude Antonio Candido
em
seu
texto “A
nova
narrativa” (CÂNDIDO,
1989), relaciona-se
assim à
era de
violência
urbana
que caracteriza as
décadas de 1960 e 1970 no Brasil,
com
guerrilhas,
aumento da
criminalidade, êxodo
rural,
intensificação das desigualdades
sociais e
aumento desenfreado dos
conglomerados urbanos. A
narrativa envolve
personagens
sem
rumo
que transitam invariavelmente
entre a burguesia
carioca da
Zona
Sul,
por
meio de uma
fala
em
que se misturam
no
mesmo
coquetel
instinto e
asfalto,
objetos
plásticos e
expressões de
uma
libido
sem
saídas
para
um
convívio de
afeto e
projeto. A
dicção
que se faz no
interior desse
mundo é
rápida, às
vezes
compulsiva:
impura, se
não
obscena;
direta,
tocando o gestual;
dissonante,
quase
ruído. (CANDIDO, 1989: 18)
Podemos
verificar
assim
que
tanto Alfredo Bosi
como Antonio Candido, ao conceituarem a
narrativa de Rubem Fonseca, aludem à
forte
presença de
um
realismo
violento, intrinsecamente ligado ao
cenário
urbano. A
cidade
moderna (ou a
metrópole) torna-se o logus
central desse
novo
tipo de
literatura: a
sociedade
industrial,
saturada e esgotada
em
suas possibilidades, inaugura
assim
um
novo
modo de
pensar a
arte,
por
meio de uma
estética
que será denominada de
modernismo, no
início do
século XX, e de pós-modernismo
por
alguns
teóricos a
partir da
Segunda
Guerra Mundial.
Pós-Modernismo e
Literatura
Segundo o
pesquisador
britânico Steven Connor (1996), os
escritores ligados à pós-modernidade rejeitam o
que
lhes parece a
obscuridade
elitista do
legado do
modernismo e promovem
um
retorno a uma
escrita
que se baseasse
antes na
experiência do
que na
forma. Na
teoria, ao
menos, essa
escritura seria
menos fechada e
mais
permeável à
vida. No
entanto, os
pontos de
encontro
entre
modernismo e pós-modernismo nas
manifestações artísticas
são
constantes. Domício Proença
Filho assinala
apropriadamente
que, na Europa e
nos EUA, o pós-modernismo representa,
por
um
lado, uma
intensificação dos
aspectos do
Modernismo e,
por
outro, uma
oposição ao
programa modernista. Daí
que o
heroísmo da desestruturação é uma
qualidade consistente
nos
dois
movimentos:
tanto os
escritores modernistas
como
aqueles vinculados ao pós-modernismo se
caracterizam
igualmente
pela
complexa
interação
entre desestruturação e
recriação
heróica.
Por
isso, os
conceitos de descriação e de desconstrução
assumiram
condição
permanente no
projeto das narrativas da segunda metade do século
XX (Cf. PROENÇA FILHO, 1988).
Essa desestruturação provoca
uma
ênfase no
fluxo
contingente da temporalidade e
também na extensividade
temporal da
narrativa. Desse
modo, os relatos da
ficção pós-moderna acentuam o
predomínio da metaficção paródica,
ou
ainda a
exploração,
pelos
textos
literários, de
sua
própria
natureza e
condição de
ficção. O
caráter
ontológico da
narrativa pós-moderna é revelado,
assim,
em
sua
preocupação
com a
criação de
mundos
autônomos. O pós-modernismo,
assim, seria a
expressão da “lógica
cultural de
um
capitalismo
tardio”, de uma
sociedade pluralista e fragmentada,
enquanto
fruto da
dissolução da
hegemonia burguesa e do
desenvolvimento da
cultura de
massas (Cf. JAMESON, 1984).
Já
na
obra
Condição
Pós-Moderna, David Harvey afirma
que
o
pluralismo
de
mundos
que
coexistem na
ficção
pós-moderna incorpora o
conceito
da
heterotopia
criado
por
Foucault: trata-se da coexistência, num
espaço
impossível,
de
um
grande
número
de
mundos
possíveis
fragmentários,
ou
seja, temos
espaços
incomensuráveis
que
são
justapostos
ou
superpostos uns aos
outros.
As
personagens
não
se preocupam
mais
em
desvelar
um
mistério
central,
mas
são
forçadas a
perguntar
que
mundo
é
este,
o
que
se deve
fazer
nele.
A
preocupação
com
a
fragmentação
e a
instabilidade
da
linguagem
e dos
discursos
leva
a uma
concepção
de
personalidade
concentrada
na
esquizofrenia.
Conseqüentemente,
o pós-modernismo vem
representar
a
total
aceitação
do
efêmero,
do
fragmentário,
do
descontínuo
e do
caótico
que
formavam uma
metade
do
conceito
baudelairiano da modernidade. (Harvey,
1998: 49) Vemos
aqui,
mais
uma
vez,
como
os
conceitos
da
multidão
e da
formação
das
metrópoles
(tão
importantes
no
projeto
estético
do
poeta
francês
Charles
e Baudelaire no
século
XIX) incorporam-se à
idéia
do pós-modernismo do
pós-guerra,
agora
como
uma rejeição da
idéia
de
progresso,
num
abandono
do
sentido
de continuidade e
memória
histórica.
Nesse
contexto,
as
manifestações
pós-modernas estão atreladas às
práticas
de desconstrucionismo,
colagem
e
montagem,
numa
flagrante
resignação
diante
da
fragmentação
e da efemeridade da
vida.
Temos
agora
uma
lógica
cultural do
capitalismo
avançado,
em
que
ganham
evidência
as
idéias
de
performance
e happening e
em
que
o
significante
é valorizado
em
oposição
ao
significado.
Domício Proença
Filho
alude
igualmente
à
idéia
de
pessimismo
nietzschiano
para
conceituar
a
arte
pós-moderna.
Segundo
ele,
o
homem
do
século
XX carregou
consigo
a
descrença
nas
possíveis
e concretas mudanças acenadas
pelo
processo
de
industrialização
vivido
pela
sociedade.
A
descrença
e a
frustração.
(PROENÇA
FILHO,
1988: 35)
Esse
avassalador
processo
de modernização criou
um
processo
ainda
maior
de desumanização da
sociedade,
que
passa
a preocupar-se
agora
apenas
com
o
presente,
sem
projeções
no
futuro.
Temos, desse
modo,
um
presente
marcado
pela
negatividade,
desesperança
e
descrédito
–
temas
recorrentes
nas
obras
dos
autores
aqui
tratados.
Para
Domício Proença
Filho,
as
manifestações
pós-modernas procuram
eliminar
as
fronteiras
entre
a
arte
erudita
e a
arte
popular,
por
meio
do
uso
constante
da intertextualidade, das
citações
e
paródias.
Na
literatura,
têm
lugar
as
manifestações
de
construção
lúdica,
de
dimensão
experimentalista; o
uso
da
metalinguagem;
a figuração alegórica de
tipo
hiper-real e metonímico (cujo
exemplo
sintomático
dado
por
Proença
Filho
é o
conto
“O
Cobrador”,
do
mesmo
Rubem Fonseca); o fragmentarismo
textual,
numa
técnica
de
montagem
cinematográfica; a
presença
constante
de
elementos
de autoconsciência e auto-reflexão; e o centramento na
linguagem,
ou
seja, o “privilegiar a
linguagem
como
lugar
de
configuração
do
real.
É
peculiar
ainda
ao
texto
a
exaltação
do
prazer,
a
presença
do
humor,
em
atitudes
coerentemente
dionisíacas”. (PROENÇA
FILHO,
1988: 44)
Aqui, convém
fazer
apenas uma ressalva:
todos
esses
conceitos ligados à pós-modernidade podem
aplicar-se
integralmente a algumas
manifestações artísticas dos
últimos 50
anos na Europa e EUA. No Brasil,
contudo, tem-se a
configuração de
um pós-modernismo diferenciado do
que ocorre nesses
países,
mesmo
porque
em
nenhum
momento criou-se,
em
nosso
país,
um
projeto
definido e engajado
em
direção a uma
arte
essencialmente “pós-moderna”. Na América
Latina,
por
exemplo, Domício Proença
Filho ressalta a
prevalência de
apenas
três
elementos filiados ao
pensamento
literário pós-moderno: o
exercício da
metalinguagem; a
presença do hiper-realismo; e a
emergência do
realismo
fantástico.
O
conto
“Abril,
no
Rio,
em
1970”
O
título deste
conto
já
nos localiza
espacial e
temporalmente, definindo o logus e o
tempus da
ação. O
protagonista é
um
jogador de
futebol
amador,
novato,
que
sonha
em
chegar ao
estrelato e
alcançar
um
dia a
Seleção
Brasileira,
cujos treinos
preparatórios
para a
Copa do
Mundo do México, disputada
em
junho de 1970,
são assistidos
por
ele na
época e na
cidade descritos no
título.
Para
poder
treinar num
clube
grande do
Rio de
Janeiro, o
jovem
precisa
ser submetido aos
testes e à
longa
caminhada de
reconhecimento dos
jogadores
anônimos,
até
que seja
descoberto
por
algum “boleiro”,
em
meio ao
time de
várzea
em
que
joga. Daí
um dos “leit-motivs” do
conto
ser a
frase O Jair da
Rosa
Pinto
já chegou?,
que se repete ao
longo da
narrativa. O
personagem
espera o
tempo
todo
pela
aparição messiânica do ex-jogador Jair da
Rosa
Pinto
,
que assume o
status de divindade
capaz de
oferecer
um
mundo
novo de
glórias e
realizações.
Da
mesma
maneira
como ocorre
em
outros
contos de Rubem Fonseca, a
relação
amorosa
também aparece
aqui de
maneira desgastada,
repleta de
atritos e
oposições. E a
desesperança, a
orfandade e a desilusão do
personagem acompanham
igualmente
seu
destino,
até o encerramento do
conto. O narrador
igualmente se situa marginalizado no
mundo,
vítima das
circunstâncias
sociais e das desigualdades
que se intensificam no
meio
urbano:
(...)
eu
era
órfão,
minha
mãe morreu
quando
eu nasci,
meu
pai
era
pobre, morreu
logo
depois,
me deixando na
pior,
só podia
acabar
mesmo
contínuo,
ignorante,
pé rapado.
Que
que
ela queria
que
eu fosse?
(FONSECA, 1999: 46)
Reaparece
assim a
imagem da
proibição do
sexo,
como se as
relações
pessoais estivessem estigmatizadas
pelos
tabus e representassem
um
fator
prejudicial à
preparação atlética. A
opressão do governo
militar da
época projeta-se
assim na
vida dos
personagens, refletindo-se
igualmente no
mundo
conservador do
futebol e de
seus
regimes de
concentração e
exclusão dos
jogadores. O
personagem prefere
não se
envolver
com a
namorada às
vésperas de
um
jogo importante,
sob o
receio de
perder o
vigor e o
preparo
físico:
A
cara
ossuda dela,
os
lábios
grossos foram
me dando
vontade,
fiquei naquela
base, cheguei
a
dar
um
passo
para
perto dela,
mas pensei no
cuspe do
Gérson, o
jato
transparente
entre os
dentes, e
disse,
eu
gosto de
você,
meu
bem,
mas
vê se
me entende,
hoje
não,
vê se
me entende,
hoje
não,
amanhã de
noite.
(FONSECA, 1999: 45-46)
Aqui, denuncia-se de
forma
mais
explícita as desigualdades
sociais
que caracterizam a
nova
ordem das
metrópoles. Ao
assistir aos treinos
preparatórios da
seleção
brasileira
para a
disputa do Mundial de
Futebol no México, o
personagem (sempre
com o
foco narrativo
em
primeira
pessoa) espanta-se
com o
luxo da
concentração do
time
profissional: “Aquilo
é
que
era
vida, fiquei vendo a
piscina, o
gramado, os
garçons levando
bebidas e comidinhas
pra
lá e
pra
cá,
tudo
calmo,
tudo limpinho,
tudo
bonito.” (Fonseca, 1999: 44) E o
desejo de
esquecer a
simplicidade do
meio
em
que vive faz
com
que o
personagem se projete no
ambiente de
opulência e
riqueza
que
ele conhecera
com a
seleção
brasileira. A
oposição desses
mundos
diferentes manifesta-se de
maneira
muito
sutil e
irônica no
texto: “Passei a
manhã de
Domingo na
cama. Almocei às onze
horas,
bife,
arroz,
salada de
alface e
tomate,
igual à
seleção
em
dia de
jogo.
Só
não
tinha champignon. (FONSECA, 1999: 47)
A
falta de champignon é
um
mero
detalhe na
cabeça do
personagem,
cujo
fluxo de
consciência a
todo
tempo ilustra os
espaços justapostos e a desestruturação de
mundos
totalmente
fragmentários:
Eu
nem
tinha percebido
que estava comendo
pão,
eu estava
mesmo
com a
cabeça noutro
lugar. (Fonseca, 1999: 45) Daí advém o
espetacular
recurso de se
utilizar,
mais uma
vez, uma
espécie de
discurso
indireto
livre
com o
foco narrativo
em
primeira
pessoa, mesclando-se o
discurso
direto e o
indireto –
não se sabe
quando o narrador assumirá uma
manifestação
ou
outra, criando
novamente
um
discurso
repleto de
turbulências e de
momentos de
desestabilização:
Eu
disse
pra
minha
garota,
que
era
datilógrafa
da
firma,
não
fico de
contínuo
nem
mais
um
mês,
disse
também
que
o Jair da
Rosa
Pinto
ia
me
ver
no
domingo,
mas
mulher
é
um
bicho
gozado,
ela
nem
deu
bola.
Me
larga,
deixa
eu
te
contar.
Levantei da
cama,
expliquei,
porra,
se
eu
jogar
bem
e o Jair da
Rosa
Pinto
me
levar
para
o Madureira, estou
feito,
ninguém
me
segura,
mas
ela
me
puxou de
novo
pra
cama
e foi aquela
loucura,
minha
garota
é
fogo.
(FONSECA, 1999: 43)
Diante desse
cenário, é
novamente a
linguagem do
corpo
que irá
predominar,
como se o
personagem necessitasse de
demonstrar
sua
capacidade
física
como
forma de
sobrevivência. Temos,
assim, a
criação do
segundo “leit-motiv” do
conto: o
cuspe do
jogador Gérson representa o
paradigma da boa
forma
física. A
análise da
secreção é
que dará
mostras do
preparo de
cada
jogador:
Jogador de
futebol vive
cuspindo.
Ele passou
perto, deu
um daqueles
passes de
trinta
metros e
cuspiu. Viu?
Limpo,
transparente,
cristalino.
Sabe o
que é
isso,
perguntou Braguinha. Fiquei na
dúvida, será
que
ele estava
esculhambando o Gérson? Está
cheio de
nego
aí
que
não
topa o Gérson,
que
que
eu ia
dizer? Fiquei
calado,
balancei a
cabeça e o
Braguinha
mesmo
respondeu,
preparo
físico,
menino,
preparo
físico,
pra
cuspir
assim o
cara tem
que
estar tinindo. Vamos
estraçalhar os
gringos. (...)
O
Tostão passou
perto e cuspiu
uma
bolota de
goma
branca. Parece
marchemelo, disse Braguinha,
ele está
trinta
por
cento,
mas
quando
chegar no
ponto vai
cuspir
um jatinho de
água filtrada
igual o
canhotinha de
ouro. (FONSECA, 1999: 44)
Quando
chega o
dia do
grande
jogo de
várzea, no
qual o
personagem deposita todas as
suas
esperanças – aguardando a
presença do Jair da
Rosa
Pinto –, é
um dos
jogadores do
time
adversário
que chamará a
atenção
pelo
vigor
físico. O
confronto é
inevitável, e
apenas o vencedor tem
lugar num
mundo
cada
vez
mais regido
pela
força e
pela
brutalidade:
Nós
dois cuspimos ao
mesmo
tempo,
meu
cuspe saiu
fino,
mas o dele,
filho da puta,
saiu
ainda
mais
fino.
Eu cuspi
raspando a
boca e
soprando o
cuspe
com
força
pra
fora,
enquanto
ele,
moleque
safado,
nem abriu a
boca,
com
um barulhinho
de
traque o
cuspe
esguichou dos
seus
lábios
fechados. (FONSECA, 1999: 48)
É
por
isso
que o
desgaste
físico do
personagem
avança na
mesma
proporção
em
que
suas
esperanças se reduzem
Comecei a
pular, esquentando o
corpo,
sentindo o
corpo,
sentindo os
músculos
debaixo da
pele, corri,
pilei, o
frio no
estômago
passou,
que
coisa boa
sentir os
músculos
debaixo da
pele. (...) De
tanto
correr, fiquei no
bagaço, a
boca
seca,
não
tinha
coragem de
cuspir
pra
não
ver a
bolota de
marchemelo. (FONSECA, 1999: 47-49)
Num
mundo
em
que a
linguagem do
corpo predomina, parece
óbvio, uma
vez
mais,
que a
linguagem da
porrada
também prevaleça. Neste
conto,
porém, essa
manifestação se dá
não
tanto
por
meio da
luta,
mas
por
meio das
situações conflitantes
entre os
personagens:
Quando
ela
me viu
abrir a
porta da
rua gritou,
vai
mentiroso,
frouxo, debilóide,
ignorante,
pé-rapado! (...)
depois de
tudo o
que
eu fiz
com
ela
tinha
graça
ser chamado de
frouxo, duvido
que
ela arranjasse
outro
com
mais
disposição do
que
eu... (...)
Tive vontade de
dizer
mais,
com uma
igual a
você
então
nem se
fala,
você
me
deixa no
osso, é a
noite
inteira,
sem
parar,
mas fiquei
com
medo
que
ela quebrasse
outro
prato na
minha
cabeça.
(FONSECA, 1999: 46)
Notemos
ainda
como o
corpo da
linguagem
também se faz
presente, acompanhando a
violência da
situação: o
fluxo de
consciência do narrador é intensificado
por
meio de
um
diálogo
que permanece
apenas no
pensamento (“com uma
igual a
você
então
nem se fala,
você
me
deixa no
osso”).
Não se sabe
quando a
frase é
apenas do narrador
ou do narrador-personagem,
quando se
trata de
um
pensamento
interior
ou
quando é
voz manifestada, numa
alternância
que
espelha o
próprio
ânimo e
estado de
espírito do
personagem.
A
passividade
diante das
injustiças do
mundo e a
renúncia à
disputa conferem
mais uma
vez à
narrativa os
elementos
que caracterizam o
mundo pós-moderno,
tal
qual descrito no
início deste
trabalho: o
personagem
deixa de
manter
suas
projeções no
futuro,
pois
o
presente
lhe
parece angustiante e
sem
esperança,
marcado
pela
negatividade e
pelo
descrédito.
O
final
do
conto
atesta
tudo
isso
de
maneira
fenomenal,
intensificando
toda
a
atmosfera
de
melancolia
e desânimo
num
mundo
sem
futuro
e de
cujo
passado
se
quer
distanciar:
Na
sombra da
tarde o
campo ficava
ainda
mais
feio.
Eu estava
sozinho,
todos tinham
ido
embora. Fui
andando, passei
por
um
monte de
lixo, tive
vontade de
jogar
ali a
maleta
com o
uniforme.
Mas
não joguei.
Apertei a
maleta de
encontro ao
peito, senti
as
traves da
chuteira e fui
caminhando
assim,
lentamente,
sem
querer
voltar,
sem
saber
para
onde
ir. (FONSECA, 1999: 49)
Conclusão
Como vimos na
análise deste
conto, há
diversos
elementos constitutivos da
narrativa
que
são
constantes nas
temáticas pós-moderna e neobarroca: temos a
todo
instante uma desestruturação das
relações humanas,
diante da multiplicidade de
espaços num
mundo
completamente
fragmentário. O
personagem
sem
rumo
busca situar-se num
meio
em
que as desigualdades
sociais regulam
impiedosamente o
funcionamento do
caos
urbano.
Sintoma disso é o
fato de o personagem-narrador
permanecer
anônimo o
tempo
todo:
ele
não recebe
nome
em
nenhum
momento, representando a
negação de
sua
própria
existência.
Outra
marca
importante é a
forte
presença do
fluxo da
consciência, refletindo, no
turbilhão de
pensamentos
que invadem a
mente do
personagem, a
simultaneidade de
movimentos e
ações
que caracteriza a
nova
ordem das
metrópoles. Daí o
emprego
constante de
recursos advindos das
técnicas da
montagem
cinematográfica,
por
meio de
seqüências de
imagens
que se superpõem
incessantemente. Nesse
sentido, o
recurso
para
mesclar narrador e
personagem é o
uso do
foco narrativo
em
primeira
pessoa,
que se confunde
entre o
uso do
discurso
direto
permanente e o
discurso
indireto
livre.
Além disso, a saturação da
vida e do
espaço
urbano reflete-se na
linguagem
seca e
direta,
nos
diálogos
ríspidos e entrecortados, nas
aproximações tensas e repletas de
conflito
entre os
personagens.
Vale
apontar, uma
vez
mais,
como o
autor constrói uma
linguagem
ricamente trabalhada,
em
que a estruturação dos
fonemas,
palavras e
frases
espelha
igualmente a
matéria narrada.
Esse
corpo da
linguagem dá
mostras de
um
exercício
consciente do
autor e de uma
riqueza constitutiva na
carpintaria do
texto, o
que
me dá
oportunidade
para
discutir a afirmação do
poeta e
jornalista Nelson Ascher. No
texto “O
Sedutor
que cai
pela seduzida”, Ascher diz
que Rubem Fonseca está
acima da
literatura
para o
qual
ele dirige
sua
obra:
A
cultura
com
que se nutre
está
acima –
em
termos de
refinamento,
repertório e
complexidade – do
tipo de
literatura
que produz,
ou seja, há
entre o
autor e
sua
histórias
um
contínuo
distanciamento
irônico.
No
conto “Lúcia McCartney” (publicado
em 1969,
em
livro
com o
mesmo
nome),
por
exemplo, citam-se Franz Kafka, Fernando
Pessoa, Sigmund Freud, Sófocles e Sócrates,
como se o
personagem José Roberto assumisse
esse “distanciamento
irônico”
frente a Lúcia McCartney e,
em
última
instância,
frente ao
leitor.
Pode-se
inferir, no
entanto,
que o
grande “distanciamento
irônico” se dá
entre a complexidade dos
recursos
lingüísticos e de
construção do
texto aplicados
por Rubem Fonseca e a
flagrante
fragilidade dos personagens-narradores,
que mantêm,
em
seu
mundo de
desesperança e desilusão,
total
distanciamento da
sutileza
textual aplicada
pelo
autor. O
linguajar dos
personagens
não é
tão
polido e domesticado
como o
quer Nelson Ascher, e,
por
isso
mesmo, cria-se o
descompasso:
personagens
marginais
que, ao contarem
suas
desventuras
em
primeira
pessoa, utilizam procedimentos narrativos
que,
aparentemente, estão
além de
sua
capacidade de
construção
literária.
De
todo
modo, temos
aqui uma
narrativa
singular,
que apresenta as
principais
características da
prosa de Rubem Fonseca cultivada a
partir das
décadas de 1960 e 1970: uma
ficção de
temática predominantemente
urbana,
com o
uso de uma
linguagem oralizada, abusando dos
diálogos e de uma
linguagem
cortante. O
resultado disso (ou a
causa) está na
exploração
constante do
corpo e no desenlace das
relações amorosas, num
mundo cinzento,
solitário e
amargo –
refletindo
assim os
anos de
chumbo da
recente
história do
país.
Referências
Bibliográficas
Bosi,
Alfredo. O
conto
brasileiro
contemporâneo.
São Paulo: Cultrix, [s/d.].
Candido, Antonio. A
educação
pela
noite &
outros
ensaios. 2ª ed.
São Paulo: Ática, 1989.
Connor, Steven. Cultura
pós-moderna. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 1996.
Fonseca, Rubem.
Feliz
ano
novo. 2ª ed.
São Paulo:
Companhia das
Letras, 1999.
Harvey, David.
Condição pós-moderna. 7ª ed.
São Paulo: Loyola, 1998.
Jameson, Frederic.
“Postmodernism: or the cultural logic of late capitalism”
em New Left Review, nº 146, jul/ago, 1984.
Martins, Nilce Sant’Anna.
Introdução à
estilística,
São Paulo: T.A. Queiroz, 1997.
Proença
Filho,
Domício. Pós-modernismo e
literatura.
São Paulo: Ática, 1988.