Cuspe, Marchemelo e Champignon
(A
Desesperança e a Fragmentação Social
no
ContoAbril, no Rio, em 1970”,
de Rubem Fonseca)

José Carlos Marques (USP; UNISA e UNIP)

 

Ao longo das últimas quatro décadas, a Literatura Brasileira assistiu ao surgimento de vários romancistas e contistas que passaram a utilizar a temática da violência urbana como um dos elementos essenciais de sua prosa. São textos em que se realça a temática da violência, sob os mais diferentes ângulos, num ambiente social que se transforma em agente gerador de desequilíbrio. Temos a todo instante personagens a transitar entre os limites da marginali­dade e do submundo no cenário da grande metrópole. Trata-se de uma escrita contaminada por aquilo que Alfredo Bosi chamará de estilo “brutalista yankee” (BOSI, s/d.). Dentro desse propósito, o presente artigo tem como objetivo analisar um texto específico de Rubem Fonseca – o contoAbril, no Rio, em 1970” –, à luz de conceitos advindos das correntes teóricas do pós-modernismo e do neobarroco. Destaque-se ainda que o conto em questão foi publicado em 1975 no livro Feliz Ano Novo, obra que, em 1976, seria proibida pela Censura Federal e apreendida sob acusação de atentado à moral e aos bons costumes por ordem do então Ministro da Justiça, Armando Falcão. Embora Rubem Fonseca tenha entrado com uma ação contra a União logo após sofrer o veto da censura, a liberação do livro aconteceria 10 anos mais tarde, em 1986.

O contoAbril, no Rio, em 1970” apresenta um jovem que sonha tornar-se jogador de futebol profissional por influência da Seleção Brasileira que, em 1970, preparava-se para disputar a Copa do Mundo do México. Além disso, contêm as principais características que fundamentam a obra narrativa de Rubem Fonseca: uma ficção de temática estritamente urbana, com o uso de uma linguagem seca e imediata (representando o relato de uma narrativa oral transcodificada para o papel) e com o predomínio do foco em primeira pessoa (trata-se do próprio protagonista que relata os acontecimentos e sua experiência dos fatos).

Essa espécie de ultra-realismo sem preconceitos que aparece em Rubem Fonseca, esserealismo feroz” a que alude Antonio Candido em seu texto “A nova narrativa” (CÂNDIDO, 1989), relaciona-se assim à era de violência urbana que caracteriza as décadas de 1960 e 1970 no Brasil, com guerrilhas, aumento da criminalidade, êxodo rural, intensificação das desigualdades sociais e aumento desenfreado dos conglomerados ur­banos. A narrativa envol­ve personagens sem rumo que transitam invariavelmente entre a bur­guesia carioca da Zona Sul, por meio de uma fala em que se misturam

no mesmo coquetel instinto e asfalto, objetos plásticos e expressões de uma libido sem saídas para um convívio de afeto e projeto. A dicção que se faz no interior desse mundo é rápida, às vezes compulsiva: impura, se não obscena; direta, tocando o gestual; dissonante, quase ruído. (CANDIDO, 1989: 18)

Podemos verificar assim que tanto Alfredo Bosi como Antonio Candido, ao conceituarem a narrativa de Rubem Fonseca, aludem à forte presença de um realismo violento, intrinsecamente ligado ao cenário urbano. A cidade moderna (ou a metrópole) torna-se o logus central desse novo tipo de literatura: a sociedade industrial, saturada e esgotada em suas possibilidades, inaugura assim um novo modo de pensar a arte, por meio de uma estética que será denominada de modernismo, no início do século XX, e de pós-modernismo por alguns teóricos a partir da Segunda Guerra Mundial.

 

Pós-Modernismo e Literatura

Segundo o pesquisador britânico Steven Connor (1996), os escritores ligados à pós-modernidade rejeitam o que lhes parece a obscuridade elitista do legado do modernismo e promovem um retorno a uma escrita que se baseasse antes na experiência do que na forma. Na teoria, ao menos, essa escritura seria menos fechada e mais permeável à vida. No entanto, os pontos de encontro entre modernismo e pós-modernismo nas manifestações artísticas são constantes. Domício Proença Filho assinala apropriadamente que, na Europa e nos EUA, o pós-modernismo representa, por um lado, uma intensificação dos aspectos do Modernismo e, por outro, uma oposição ao programa modernista. Daí que o heroísmo da desestruturação é uma qualidade consistente nos dois movimentos: tanto os escritores modernistas como aqueles vinculados ao pós-modernismo se caracterizam igualmente pela complexa interação entre desestruturação e recriação heróica. Por isso, os conceitos de descriação e de desconstrução assumiram condição permanente no projeto das narrativas da segunda metade do século XX (Cf. PROENÇA FILHO, 1988).

Essa desestruturação provoca uma ênfase no fluxo contingente da temporalidade e também na extensividade temporal da narrativa. Desse modo, os relatos da ficção pós-moderna acentuam o predomínio da metaficção paródica, ou ainda a exploração, pelos textos literários, de sua própria natureza e condição de ficção. O caráter ontológico da narrativa pós-moderna é revelado, assim, em sua preocupação com a criação de mundos autônomos. O pós-modernismo, assim, seria a expressão da “lógica cultural de um capitalismo tardio”, de uma sociedade pluralista e fragmentada, enquanto fruto da dissolução da hegemonia burguesa e do desenvolvimento da cultura de massas (Cf. JAMESON, 1984).

na obra Condição Pós-Moderna, David Harvey afirma que o pluralismo de mundos que coexistem na ficção pós-moderna incorpora o conceito da heterotopia criado por Foucault: trata-se da coexistência, num espaço impossível, de um grande número de mundos possíveis fragmentários, ou seja, temos espaços incomensuráveis que são justapostos ou superpostos uns aos outros. As personagens não se preocupam mais em desvelar um mistério central, mas são forçadas a perguntar que mundo é este, o que se deve fazer nele.

A preocupação com a fragmentação e a instabilidade da linguagem e dos discursos leva a uma concepção de personalidade concentrada na esquizofrenia. Conseqüentemente, o pós-modernismo vem representar a total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico que formavam uma metade do conceito baudelairiano da modernidade. (Harvey, 1998: 49) Vemos aqui, mais uma vez, como os conceitos da multidão e da formação das metrópoles (tão importantes no projeto estético do poeta francês Charles e Baudelaire no século XIX) incorporam-se à idéia do pós-modernismo do pós-guerra, agora como uma rejeição da idéia de progresso, num abandono do sentido de continuidade e memória histórica.

Nesse contexto, as manifestações pós-modernas estão atreladas às práticas de desconstrucionismo, colagem e montagem, numa flagrante resignação diante da fragmentação e da efemeridade da vida. Temos agora uma lógica cultural do capitalismo avançado, em que ganham evidência as idéias de performance e happening e em que o significante é valorizado em oposição ao significado. Domício Proença Filho alude igualmente à idéia de pessimismo nietzschiano para conceituar a arte pós-moderna. Segundo ele, o homem do século XX carregou consigo a descrença nas possíveis e concretas mudanças acenadas pelo processo de industrialização vivido pela sociedade. A descrença e a frustração. (PROENÇA FILHO, 1988: 35) Esse avassalador processo de modernização criou um processo ainda maior de desumanização da sociedade, que passa a preocupar-se agora apenas com o presente, sem projeções no futuro. Temos, desse modo, um presente marcado pela negatividade, desesperança e descrédito temas recorrentes nas obras dos autores aqui tratados.

Para Domício Proença Filho, as manifestações pós-modernas procuram eliminar as fronteiras entre a arte erudita e a arte popular, por meio do uso constante da intertextualidade, das citações e paródias. Na literatura, têm lugar as manifestações de construção lúdica, de dimensão experimentalista; o uso da metalinguagem; a figuração alegórica de tipo hiper-real e metonímico (cujo exemplo sintomático dado por Proença Filho é o conto “O Cobrador”, do mesmo Rubem Fonseca); o fragmentarismo textual, numa técnica de montagem ci­nematográfica; a presença constante de elementos de autoconsciência e auto-reflexão; e o centramento na linguagem, ou seja, o “privile­giar a linguagem como lugar de configuração do real. É peculiar ainda ao texto a exaltação do prazer, a presença do humor, em atitudes coerentemente dionisíacas”. (PROENÇA FILHO, 1988: 44)

Aqui, convém fazer apenas uma ressalva: todos esses conceitos ligados à pós-modernidade podem aplicar-se integralmente a algumas manifestações artísticas dos últimos 50 anos na Europa e EUA. No Brasil, contudo, tem-se a configuração de um pós-modernismo diferenciado do que ocorre nesses países, mesmo porque em nenhum momento criou-se, em nosso país, um projeto definido e engajado em direção a uma arte essencialmente “pós-moderna”. Na América Latina, por exemplo, Domício Proença Filho ressalta a prevalência de apenas três elementos filiados ao pensamento literário pós-moderno: o exercício da metalinguagem; a presença do hiper-realismo; e a emergência do realismo fantástico.


 

O contoAbril, no Rio, em 1970”

O título deste conto nos localiza espacial e temporalmente, definindo o logus e o tempus da ação. O protagonista é um jogador de futebol amador, novato, que sonha em chegar ao estrelato e alcançar um dia a Seleção Brasileira, cujos treinos preparatórios para a Copa do Mundo do México, disputada em junho de 1970, são assisti­dos por ele na época e na cidade descritos no título. Para poder treinar num clube grande do Rio de Janeiro, o jovem precisa ser submetido aos testes e à longa caminhada de reconhecimento dos jogadores anônimos, até que seja descoberto por algum “boleiro”, em meio ao time de várzea em que joga. Daí um dos “leit-motivs” do conto ser a frase O Jair da Rosa Pinto chegou?, que se repete ao longo da narrativa. O personagem espera o tempo todo pela aparição messiânica do ex-jogador Jair da Rosa Pinto [1], que assume o status de di­vindade capaz de oferecer um mundo novo de glórias e realizações.

Da mesma maneira como ocorre em outros contos de Rubem Fonseca, a relação amorosa também aparece aqui de maneira desgastada, repleta de atritos e oposições. E a desesperança, a orfandade e a desilusão do personagem acompanham igualmente seu destino, até o encerramento do conto. O narrador igualmente se situa marginalizado no mundo, vítima das circunstâncias sociais e das desigualdades que se intensificam no meio urbano:

(...) eu era órfão, minha mãe morreu quando eu nasci, meu pai era pobre, morreu logo depois, me deixando na pior, podia acabar mesmo contínuo, ignorante, rapado. Que que ela queria que eu fosse? (FONSECA, 1999: 46)

Reaparece assim a imagem da proibição do sexo, como se as relações pessoais estivessem estigmatizadas pelos tabus e representassem um fator prejudicial à preparação atlética. A opressão do go­verno militar da época projeta-se assim na vida dos personagens, re­fletindo-se igualmente no mundo conservador do futebol e de seus regimes de concentração e exclusão dos jogadores. O personagem prefere não se envolver com a namorada às vésperas de um jogo im­portante, sob o receio de perder o vigor e o preparo físico:

A cara ossuda dela, os lábios grossos foram me dando vontade, fiquei naquela base, cheguei a dar um passo para perto dela, mas pensei no cuspe do Gérson, o jato transparente entre os dentes, e disse, eu gosto de você, meu bem, mas se me entende, hoje não, se me entende, hoje não, amanhã de noite. (FONSECA, 1999: 45-46)

Aqui, denuncia-se de forma mais explícita as desigualdades sociais que caracterizam a nova ordem das metrópoles. Ao assistir aos treinos preparatórios da seleção brasileira para a disputa do Mundial de Futebol no México, o personagem (sempre com o foco narrativo em primeira pessoa) espanta-se com o luxo da concentração do time profissional: “Aquilo é que era vida, fiquei vendo a piscina, o gramado, os garçons levando bebidas e comidinhas pra e pra , tudo calmo, tudo limpinho, tudo bonito.” (Fonseca, 1999: 44) E o desejo de esquecer a simplicidade do meio em que vive faz com que o personagem se projete no ambiente de opulência e riqueza que ele conhecera com a seleção brasileira. A oposição desses mundos diferentes manifesta-se de maneira muito sutil e irônica no texto: “Passei a manhã de Domingo na cama. Almocei às onze horas, bife, arroz, salada de alface e tomate, igual à seleção em dia de jogo. não tinha champignon. (FONSECA, 1999: 47)

A falta de champignon é um mero detalhe na cabeça do personagem, cujo fluxo de consciência a todo tempo ilustra os espaços justapostos e a desestruturação de mundos totalmente fragmentários: Eu nem tinha percebido que estava comendo pão, eu estava mesmo com a cabeça noutro lugar. (Fonseca, 1999: 45) Daí advém o espetacular recurso de se utilizar, mais uma vez, uma espécie de discurso indireto livre com o foco narrativo em primeira pessoa, mesclando-se o discurso direto e o indiretonão se sabe quando o narrador assumirá uma manifestação ou outra, criando novamente um discurso repleto de turbulências e de momentos de desestabilização:

Eu disse pra minha garota, que era datilógrafa da firma, não fico de contínuo nem mais um mês, disse também que o Jair da Rosa Pinto ia me ver no domingo, mas mulher é um bicho gozado, ela nem deu bola. Me larga, deixa eu te contar. Levantei da cama, expliquei, porra, se eu jogar bem e o Jair da Rosa Pinto me levar para o Madureira, estou feito, ninguém me segura, mas ela me puxou de novo pra cama e foi aquela loucura, minha garota é fogo. (FONSECA, 1999: 43)

Diante desse cenário, é novamente a linguagem do corpo que irá predominar, como se o personagem necessitasse de demonstrar sua capacidade física como forma de sobrevivência. Temos, assim, a criação do segundo “leit-motiv” do conto: o cuspe do jogador Gérson representa o paradigma da boa forma física. A análise da secreção é que dará mostras do preparo de cada jogador:

Jogador de futebol vive cuspindo. Ele passou perto, deu um daqueles passes de trinta metros e cuspiu. Viu? Limpo, transparente, cristalino. Sabe o que é isso, perguntou Braguinha. Fiquei na dúvida, será que ele estava esculhambando o Gérson? Está cheio de nego que não topa o Gérson, que que eu ia dizer? Fiquei calado, balancei a cabeça e o Braguinha mesmo respondeu, preparo físico, menino, preparo físico, pra cuspir assim o cara tem que estar tinindo. Vamos estraçalhar os gringos. (...) O Tostão passou perto e cuspiu uma bolota de goma branca. Parece marchemelo, disse Braguinha, ele está trinta por cento, mas quando chegar no ponto vai cuspir um jatinho de água filtrada igual o canhotinha de ouro. (FONSECA, 1999: 44)

Quando chega o dia do grande jogo de várzea, no qual o personagem deposita todas as suas esperanças – aguardando a presença do Jair da Rosa Pinto –, é um dos jogadores do time adversário que chamará a atenção pelo vigor físico. O confronto é inevitável, e apenas o vencedor tem lugar num mundo cada vez mais regido pela força e pela brutalidade:

Nós dois cuspimos ao mesmo tempo, meu cuspe saiu fino, mas o dele, filho da puta, saiu ainda mais fino. Eu cuspi raspando a boca e soprando o cuspe com força pra fora, enquanto ele, moleque safado, nem abriu a boca, com um barulhinho de traque o cuspe esguichou dos seus lábios fechados. (FONSECA, 1999: 48)

É por isso que o desgaste físico do personagem avança na mesma proporção em que suas esperanças se reduzem

Comecei a pular, esquentando o corpo, sentindo o corpo, sentindo os músculos debaixo da pele, corri, pilei, o frio no estômago passou, que coisa boa sentir os músculos debaixo da pele. (...) De tanto correr, fiquei no bagaço, a boca seca, não tinha coragem de cuspir pra não ver a bolota de marchemelo. (FONSECA, 1999: 47-49)

Num mundo em que a linguagem do corpo predomina, parece óbvio, uma vez mais, que a linguagem da porrada também prevaleça. Neste conto, porém, essa manifestação se dá não tanto por meio da luta, mas por meio das situações conflitantes entre os personagens:

Quando ela me viu abrir a porta da rua gritou, vai mentiroso, frouxo, debilóide, ignorante, pé-rapado! (...) depois de tudo o que eu fiz com ela tinha graça ser chamado de frouxo, duvido que ela arranjasse outro com mais disposição do que eu... (...) Tive von­tade de dizer mais, com uma igual a você então nem se fala, você me deixa no osso, é a noite inteira, sem parar, mas fiquei com medo que ela quebrasse outro prato na minha cabeça. (FONSECA, 1999: 46)

Notemos ainda como o corpo da linguagem também se faz presente, acompanhando a violência da situação: o fluxo de consciência do narrador é intensificado por meio de um diálogo que perma­nece apenas no pensamento (“com uma igual a você então nem se fa­la, você me deixa no osso”). Não se sabe quando a frase é apenas do narrador ou do narrador-personagem, quando se trata de um pensamento interior ou quando é voz manifestada, numa alternância que espelha o próprio ânimo e estado de espírito do personagem.

A passividade diante das injustiças do mundo e a renúncia à disputa conferem mais uma vez à narrativa os elementos que caracterizam o mundo pós-moderno, tal qual descrito no início deste trabalho: o personagem deixa de manter suas projeções no futuro, pois o presente lhe parece angustiante e sem esperança, marcado pela negatividade e pelo descrédito. O final do conto atesta tudo isso de maneira fenomenal, intensificando toda a atmosfera de melancolia e de­sânimo num mundo sem futuro e de cujo passado se quer distanciar:

Na sombra da tarde o campo ficava ainda mais feio. Eu estava sozinho, todos tinham ido embora. Fui andando, passei por um monte de lixo, tive vontade de jogar ali a maleta com o uniforme. Mas não joguei. Apertei a maleta de encontro ao peito, senti as traves da chuteira e fui caminhando assim, lentamente, sem querer voltar, sem saber para onde ir. (FONSECA, 1999: 49)

 

Conclusão

Como vimos na análise deste conto, há diversos elementos constitutivos da narrativa que são constantes nas temáticas pós-moderna e neobarroca: temos a todo instante uma desestruturação das relações humanas, diante da multiplicidade de espaços num mundo completamente fragmentário. O personagem sem rumo busca situar-se num meio em que as desigualdades sociais regulam impiedosamente o funcionamento do caos urbano. Sintoma disso é o fato de o personagem-narrador permanecer anônimo o tempo todo: ele não recebe nome em nenhum momento, representando a negação de sua própria existência.

Outra marca importante é a forte presença do fluxo da consciência, refletindo, no turbilhão de pensamentos que invadem a mente do personagem, a simultaneidade de movimentos e ações que caracteriza a nova ordem das metrópoles. Daí o emprego constante de recursos advindos das técnicas da montagem cinematográfica, por meio de seqüências de imagens que se superpõem incessantemente. Nesse sentido, o recurso para mesclar narrador e personagem é o uso do foco narrativo em primeira pessoa, que se confunde entre o uso do discurso direto permanente e o discurso indireto livre. Além disso, a saturação da vida e do espaço urbano reflete-se na linguagem seca e direta, nos diálogos ríspidos e entrecortados, nas aproximações tensas e repletas de conflito entre os personagens.

Vale apontar, uma vez mais, como o autor constrói uma linguagem ricamente trabalhada, em que a estruturação dos fonemas, palavras e frases espelha igualmente a matéria narrada. Esse corpo da linguagemmostras de um exercício consciente do autor e de uma riqueza constitutiva na carpintaria do texto, o que meoportunidade para discutir a afirmação do poeta e jornalista Nelson Ascher. No texto “O Sedutor que cai pela seduzida”, Ascher diz que Rubem Fonseca está acima da literatura para o qual ele dirige sua obra:

A cultura com que se nutre está acima em termos de refinamento, repertório e complexidade – do tipo de literatura que produz, ou seja, há entre o autor e sua histórias um contínuo distanciamento irônico.[2]

No conto “Lúcia McCartney” (publicado em 1969, em livro com o mesmo nome), por exemplo, citam-se Franz Kafka, Fernando Pessoa, Sigmund Freud, Sófocles e Sócrates, como se o personagem José Roberto assumisse essedistanciamento irônicofrente a Lúcia McCartney e, em última instância, frente ao leitor.

Pode-se inferir, no entanto, que o grandedistanciamento irônico” se dá entre a complexidade dos recursos lingüísticos e de construção do texto aplicados por Rubem Fonseca e a flagrante fragilidade dos personagens-narradores, que mantêm, em seu mundo de desesperança e desilusão, total distanciamento da sutileza textual aplicada pelo autor. O linguajar dos personagens não é tão polido e domesticado como o quer Nelson Ascher, e, por isso mesmo, cria-se o descompasso: personagens marginais que, ao contarem suas desventuras em primeira pessoa, utilizam procedimentos narrativos que, aparentemente, estão além de sua capacidade de construção literária.

De todo modo, temos aqui uma narrativa singular, que apresenta as principais características da prosa de Rubem Fonseca cultivada a partir das décadas de 1960 e 1970: uma ficção de temática predominantemente urbana, com o uso de uma linguagem oralizada, abusando dos diálogos e de uma linguagem cortante. O resultado dis­so (ou a causa) está na exploração constante do corpo e no de­senlace das relações amorosas, num mundo cinzento, solitário e amargo – refletindo assim os anos de chumbo da recente história do país.

 

Referências Bibliográficas

Bosi, Alfredo. O conto brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, [s/d.].

Candido, Antonio. A educação pela noite & outros ensaios. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1989.

Connor, Steven. Cultura pós-moderna. 3ª ed. São Paulo: Loyola, 1996.

Fonseca, Rubem. Feliz ano novo. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

Harvey, David. Condição pós-moderna. 7ª ed. São Paulo: Loyola, 1998.

Jameson, Frederic. “Postmodernism: or the cultural logic of late capitalism” em New Left Review, nº 146, jul/ago, 1984.

Martins, Nilce Sant’Anna. Introdução à estilística, São Paulo: T.A. Queiroz, 1997.

Proença Filho, Domício. Pós-modernismo e literatura. São Paulo: Ática, 1988.


 


 

[1] Jair da Rosa Pinto foi um jogador de destaque que atuou em times cariocas nos anos 50 e 60. No início da década de 70, conforme mostra o conto, passou a trabalhar comoolheiro”: aquele que procura descobrir jovens craques na várzea para negociá-los com os grandes clubes brasileiros de futebol profissional.

[2] Folha de S. Paulo, em 15/05/87.