O
Detetive
é
um
Fingidor,
Finge
Tão
Completamente
Os “Contos
Policiários” de Fernando
Pessoa
Sob
a
Influência
de Edgar Allan Poe
José Carlos Marques (USP; UNISA e UNIP)
No
espólio da
obra
em
prosa de Fernando
Pessoa,
além de
textos filosóficos,
estéticos,
políticos e
cartas
escritos
pelo
poeta, há uma
parte ficcional reunida
sob a
denominação de “Contos
de
Raciocínio”
.
Entre
contos
acabados e
fragmentos, há
sete
textos
não
datados, dos
quais
cinco
são de
peculiar
interesse ao
nosso
estudo: “A
janela
estreita”, “O
roubo da
Quinta das
Vinhas”, “A
carta
mágica”, “A
arte de
raciocinar” e “Um
paranóico
com
juízo”.
Há
que se
lamentar, no
entanto,
que
esses
cinco
textos
não sejam considerados
como “obras prontas”,
já
que se
trata de
fragmentos
que pertencem a
projetos de
narrativas idealizadas
pelo
autor,
ou
então de
histórias reconstituídas
pela organizadora do
volume (como no
caso de “O
roubo da
Quinta das
Vinhas” e “A
carta
mágica”).
Não
obstante,
esses
textos podem
ser
entendidos
como pertencentes ao
paradigma da
narrativa
policial na
sua
forma
mais
clássica e
primeva,
já
que
são inspirados, nitidamente,
nos
contos de
detetive lançados
pelo
criador do
gênero, o
norte-americano Edgar Allan Poe.
As
histórias
policiais elaboradas
por Poe colocam
em
destaque a
figura de C. Auguste Dupin,
espécie de detetive-herói
que, de
forma
intelectual, resolve
casos
aparentemente
insolúveis de
mistério,
roubos e
assassinatos. É o
que se dá
nos
três
contos
que inauguram
esse
novo
gênero da
literatura no
ocidente – a
narrativa
policial: “The murders in the rue
Morgue”, “The mystery of Marie Roget” e “The
purloined letter” (ou “Os
assassinos da
Rua
Morgue”, “O
mistério de Marie Roget” e “A
carta roubada”,
respectivamente).
Poe utiliza a
narrativa de
investigação
para
demonstrar o
poder da
análise
racional e da
observação
científica. Dupin é uma
máquina de
raciocínio,
que
usa as
informações
que recebe
para
construir
teorias a
fim de
explicar os
fatos
indecifráveis.
Ele
não tem
necessidade de deslocar-se
até o
local do
crime, ao
contrário dos
agentes da
polícia, uma
vez
que
emprega
um
raciocínio de
cunho
dedutivo. A
partir desse
modelo, Poe estabelece
também uma
outra
forma de
literatura – as
histórias clássicas de
detetive,
que
são compostas
por duas
partes: 1ª) a
narrativa do
crime e daquilo
que ocorreu a
princípio; 2ª) a
narrativa da
investigação e do
que ocorre
depois
que o
crime teve
lugar. O
mais
importante nessa
narrativa
clássica de
detetives é o relato da
investigação, e
não o do
crime.
A
respeito das
narrativas
policiais, cabe
destacar algumas
considerações
feitas
pelo
escritor
britânico Gilbert Keith Chesterton (1874-1936):
o
conto
policial expressaria
um
certo
sentimento poético da
vida
moderna
diante da
urbe. A
literatura
popular
que
veio
celebrar as possibilidades romanescas da
cidade é o
romance
policial,
cuja
figura do
detetive substituiria a do
herói romântico dos
séculos XVIII e XIX. A
essência desse
novo
gênero é
estritamente
urbana,
já
que tem
como
cenário as
grandes
cidades: “Le Roman Policier est l’Iliade de la
grande ville”. O
conceito da
urbanidade é
capital
para o
entendimento da
narrativa
policial,
ainda
mais se pensarmos o
quanto a
organização metropolitana engendra a possibilidade
do
crime.
Além disso, a
riqueza das
narrativas
policiais,
para Chesterton, residiria no
fato de
elas representarem
um
jogo, no
qual o
leitor
não
luta
contra o
criminoso,
mas
evidentemente
contra o
autor.
O
escritor argentino Jorge Luis Borges
também teorizou
sobre o conto
policial
,
enaltecendo a
narrativa de
cunho
clássico e apontando o
caráter decadente do
romance noir
americano.
Nos
dois
casos,
porém, a
novela
policial gerou
um
tipo
especial de
leitor (alguém
que
lê
com
incredulidade e desconfiança
especial),
leitor
esse
criado
por Edgar Allan Poe.
Segundo Borges, ao lermos uma
novela
policial, somos uma invenção de Poe,
que,
com
efeito, formulou o
conto
policial
clássico à
enigma, do
qual decorre a
idéia da
literatura
como
um
fato
intelectual. Daí, surge
também a
grande
tradição das
narrativas
policiais:
um
mistério
que se desvenda
por
obra de uma
operação
racional. Poe
não queria uma
narrativa
que fosse
apenas
fruto da
imaginação,
mas
algo relacionado
com a
inteligência e
genialidade do
detetive.
O
primeiro
texto de Fernando
Pessoa de
que trataremos
aqui, denominado “A
janela
estreita”, é
um
fragmento do
conto do
mesmo
nome
que
Pessoa
não chegou a
terminar. Neste
pequeno
texto,
Pessoa apresenta-nos os
dois
personagens
que irão
participar de
suas
histórias
policiais: o Sr.
Chefe Guedes, da
Investigação Criminal, representante da
Polícia
enquanto
instituição; e o Dr.
Quaresma,
espécie de
detetive
amador,
nos
moldes do Monsieur Dupin, de Poe.
Longe de se
configurar
como
um
verdadeiro
texto de
ficção,
talvez
pelo
próprio
fato de
não
ter tido concluído,
esse
fragmento assume
um
tom
dissertativo na
medida
em
que
um narrador,
em
primeira
pessoa, narra
um
diálogo
entre o
Chefe Guedes, o Dr.
Quaresma e
um
personagem denominado
Tio
Porco, o
qual faz a mediação e conduz as
conversações
por
meio de
um
longo
discurso a
respeito da
Inteligência
Humana. Consubstanciando-se
como uma
exposição argumentativa de
certa
doutrina, o
texto
mostra o
pensamento do
Tio
Porco
com
relação às
três
categorias
sob as
quais se pode
classificar a
Inteligência
Humana: a “Inteligência
Científica”, a “Inteligência
Filosófica” e a “Inteligência
Crítica”.
A “Inteligência
Científica” é aquela
que examina os
fatos e
tira deles
conclusões imediatas, observando e determinando,
pela comparação das
coisas, a
essência das
ações. Trata-se da
inteligência do Sr. Guedes e,
por
conseguinte, da
própria
Polícia. A “Inteligência
Filosófica” aproveita-se dos
conhecimentos e
sabedoria do Dr.
Quaresma.
Por
último, há a “Inteligência
Crítica”,
que
vê o
erro e as
falhas das
suas antecessoras. Divide-se
em “Inteligência
Crítica
Instintiva” (aquela
que
vê, sente, “aponta as
falhas das outras duas,
mas
não
mais
longe: indica o
que está errado,
como se o cheirasse,
mas
não
passa disso”) e a “Inteligência
Crítica
Intelectual”, o
mais
alto
grau da
Inteligência
Humana (é a
inteligência
que,
além de
determinar as
falhas das outras, determina, constrói e reelabora
o
argumento delas, “restituindo-o à
verdade
onde
ela
nunca esteve”;
em
suma, é a
inteligência dos
detetives
clássicos das
histórias
policiais “à
enigma”);
aqui, trata-se da
inteligência do
Tio
Porco.
Vale
ressaltar
que essas
três
categorias implicam, na
verdade,
três
estágios
diferentes da
investigação
humana, o
que pode
ser projetado,
certamente,
para o
caso da
investigação criminal. Expostas as
categorias
em
que se inclui a
inteligência
humana, passa-se
então a justificá-las e a conceituá-las de
maneira
mais
compreensível. O
que se tem,
portanto, é
um
longo
texto
dissertativo
onde se analisam e se discutem os
conceitos
anteriormente elaborados. Cabe
ressaltar
aqui a
análise engendrada
pelo
Tio
Porco a
partir de
um
caso investigado
pelo Sr. Guedes, donde se depreende a
crítica aos
meios de
investigação
normalmente efetuados
pela
polícia:
—
Nós temos,
neste
caso,
um
erro
típico da
inteligência de
tipo
científico.
Foi o do Sr.
Chefe Guedes
quando
informado do
mau
caráter do
filho do
ourives, e
informado
também de
que
ele
freqüentava
muito a
loja,
desconfiou
logo dele.
Ora,
concedendo
que
esse
mau
caráter seja
um
fato, a
verdade é
que
não é
um
fato
necessariamente
dentro do
esquema de
fatos
que, somados,
constituem os
fatos deste
crime,
ou seja, o
fato deste
crime. O
crime é
um
fato, o
mau
caráter do
rapaz é
outro
fato. Os
dois
juntos podem
não
formar
um
novo
fato,
que seria a
razão
casual do
rapaz
com o
crime.
Em
vez de
partir,
como faria a
inteligência filosófica, e
fez
aqui o Abílio
Quaresma, dos
fatos do
crime
para a
conclusão do
criminoso, o
Sr.
Chefe Guedes ligou
dois
fenômenos
simplesmente
por serem
fatos, e
apenas
por uma
certa
contigüidade,
por
assim
dizer... (Pessoa,
1986: 684)
O
valor do
texto prende-se,
assim,
menos ao
caráter ficcional do
suposto
caso da
Janela
Estreita (título do
conto) do
que ao
caráter
intelectual da
análise da
inteligência
humana, o
que
em
suma, representa uma
análise da
arte de
investigar.
O
segundo
texto
que
nos serve de
análise é “O
roubo da
Quinta das
Vinhas”,
texto concluído
por
Pessoa
mas
não
em
sua
forma
definitiva, de
sorte
que foram necessárias algumas
interpolações explicativas
por
parte da organizadora do
volume a
fim de
tornar a
narrativa
mais
inteligível
para o
leitor.
Neste
conto, há
um
roubo de
alguns
títulos da
dívida
pública portuguesa do
cofre da
Quinta das
Vinhas, de
propriedade do Sr. José Mendes Borba.
Certa
noite, estando reunidos na
Quinta o
proprietário,
seu
filho, José Alves,
alguns
parentes da
família e o
engenheiro
Augusto
Claro, ouve-se
por
volta da
zero
hora uma
explosão, constatando-se de
imediato o arrombamento da
fechadura do
cofre e o
desaparecimento de
tais
títulos. As
investigações da
polícia
vão
apontar
para a
acusação do
filho do
proprietário,
que se encontrava
em
dificuldades
financeiras e
que mantinha
certas
relações ilícitas: acreditava-se,
portanto,
que houvera a
ação de uma
quadrilha
com o
auxílio de
alguém da
casa,
aqui,
em
particular, de José Alves.
Não
obstante,
ainda
que as
suspeitas
acumuladas indicassem a culpabilidade do
filho do
dono da
casa, o
agente da
polícia deteve o
jardineiro da
Quinta, “por uma
remota possibilidade de
culpa”.
É
quando intervém o
engenheiro
Augusto
Claro, narrador da
história,
que
procura o Dr.
Quaresma, a
fim de pedir-lhe a
soltura do
jardineiro,
pois estava
convencido da
sua
inocência; afirmava
ainda,
por
motivos
não
muito
esclarecidos,
que José Alves
também
era
inocente.
Surpreendentemente,
contudo, o Dr.
Quaresma
lhe diz
que,
para
soltar o
jardineiro e
não
prender o José Alves,
era
necessário
prender o
verdadeiro
criminoso. E, o
mais
espetacular, é
que o Dr.
Quaresma
já sabia
quem
era o
criminoso,
embora
não tivesse
certeza se
poderia
ou se deveria denunciá-lo à
polícia.
Primeiramente, o Dr.
Quaresma aponta o
erro
primário
em
que incorreu as
investigações engendradas
pela
polícia, indicando
que
ela
não seria
capaz de
pôr a
mão no
criminoso,
já
que havia
caído, “desde o
princípio, num
erro
fundamental, naquele
mesmo
erro
em
que o
criminoso quis
que
ela caísse.”
Assim, Dr.
Quaresma apresenta
qual é o
seu
processo de
investigação,
eficiente e
capaz de
chegar à
resolução do
crime:
O
critério de
investigação
que adoto,
porque o acho
o
mais
racional de
todos, é o de
dividir a
investigação
preliminar
em
três
tempos. O
primeiro
tempo é
determinar
quais
são os
fatos
incontestáveis,
eliminando
todos os
elementos
que
não o sejam,
ou
porque
não há
certeza
direta deles,
ou
porque sejam
conclusões –
talvez
lógicas,
talvez
inevitáveis –
tiradas desses
fatos,
mas
em
todo o
caso,
conclusões e
não
fatos. (Pessoa,
1986: 688)
Por
exemplo, se num
dia de
chuva
um
homem entra
em
casa
todo
molhado,
isto
não
quer
dizer
que
ele esteve à
chuva,
pois podem ter-lhe jogado
água
antes de
entrar
em
casa.
Falsa
conclusão,
portanto. Se, ao
contrário, da
janela da
sala vê-se
tal
homem andando à
chuva
pela
rua,
quando
ele
entrar
em
casa pode-se
afirmar,
com
toda a
certeza,
que
ele se molhou
por
causa da
chuva,
ainda
que
também tenha se
molhado
sob
outra
circunstância
qualquer.
Isto seria
um
fato, e
não uma
conclusão. A
partir de
seu
raciocínio e construída a
primeira
hipótese, o
personagem
parte
para a
hipótese
contrária,
que pode
ser
igualmente
válida:
Como a
hipótese
mais
provável, a
mais
imediata
para
todos, é
que o
roubo fosse
feito
por
estranhos, nas
circunstâncias
indicadas, a
hipótese
contrária será
realmente
provável
apenas num
caso; se houve
a
intenção de
simular
esse
roubo
por
estranhos.
Nesse
caso, a
hipótese
contrária é
provável;
tão
provável
com a
primitiva é
natural. (Pessoa,
1986: 690)
Tem-se
aqui o
princípio do “espelhar-se no
outro”
que é utilizado
pelo Dr.
Quaresma, caracterizando
por
sua
vez,
além do
conceito lacaniano do ‘olhar’, o
princípio
básico do
trabalho do
detetive,
qual seja, o de
tentar colocar-se no
lugar do
criminoso
para
descobrir os
seus procedimentos.
Não é
difícil de se
depreender,
portanto,
que o
engenheiro
Augusto
Claro é o
autor do
crime,
já
que
ele agiu
com o
objetivo de
simular
um
roubo
feito
por
estranhos, tentando
ocultar
sua
própria
culpa. Tendo sido
esclarecido o
mistério de
tal
caso
pelo Dr.
Quaresma, pesam
sobre o
engenheiro o
remorso e a
impotência
diante dos
fatos,
pois
sua “engenhosidade”
fora
descoberta:
No
longo
espaço de
curtos
segundos
tentei desesperadamente
formar uma
atitude, uma
palavra,
um
gesto,
qualquer
coisa...
Não pude... e
então
compreendi
violentamente
quanto pode
em
nós, se sabem
excita-la, a
consciência da
culpabilidade. Fosse
eu
inocente, e
alguma
coisa diria, alguma
coisa sucederia.
Com
cada fracção
de
segundo do
meu
silêncio a
minha
culpabilidade enchia o
espaço. (...)
A
minha
derrota
era
completa.. (Pessoa,
1986: 692)
Agindo
portanto
como o
detetive
amador
clássico (à
semelhança de Dupin, de Poe),
sem
sair de
sua
casa e
sem
verificar o
local do
crime,
apenas
com
alguns
dados e
depoimentos
em
mãos, Dr.
Quaresma
chega à
conclusão do
fato, utilizando-se
somente do
raciocínio
lógico e matemático.
Sua
tranqüilidade
diante do
criminoso e
seu
caráter
fleumático
diante da culpabilidade do
engenheiro derivam
até
para a
conclusão
irônica do
conto,
pois
ele
não diz
estar do
lado da
lei,
mas cultiva
um
sentimento narcisista (peculiar
aos
detetives
policiais)
que se contrapõe à
ineficiência da
Polícia.
Esse
fingimento e
dissimulação
esnobe denotam a
superioridade do Dr.
Quaresma:
mesmo sabendo
quem é o
criminoso,
ele
não vai denunciá-lo, abstendo-se de
qualquer
decisão: “Eu
não tenho
nada a
dizer.
Como
já compreendeu, decifrei – posso dizer-lhe
que decifrei
com
muita
facilidade – o
seu
caso. O
resto é
consigo” (Pessoa,
1986: 693).
Passemos
agora a
outro
conto de Fernando
Pessoa, intitulado “A
carta
mágica”,
que
também recebeu algumas
interpolações explicativas da organizadora, à
maneira do
conto
anterior. O
título desse
conto
já traz, à
partida, uma
alusão ao
célebre “A
Carta Roubada”, de Allan Poe (que,
como vimos, representa
um dos
três
contos
que inauguraram a
narrativa
policial). No
conto de
Pessoa, o leit-motif
central do
texto é
também o
desaparecimento misterioso de uma
carta, ocorrido na
sala de
estar da
casa do
engenheiro Francisco Almeida e Sá. Estando a
sala hermeticamente fechada e sabendo da
existência da
carta
apenas o
engenheiro,
sua
mulher e
sua
empregada, o
investigador Guedes inclina-se a
suspeitar da
empregada,
ainda
que as
investigações apontem a
inocência da
subalterna.
Nesse
momento da
narrativa, intervém
mais uma
vez o Dr.
Quaresma, afirmando
já
ter resolvido o
mistério: “– Os
dados
são
absolutamente
suficientes
para a
solução
total do
problema.
Já o resolvi
totalmente.” (Pessoa,
1986: 695). O Dr.
Quaresma
volta
então a
descrever o
seu
processo de
investigação,
que se resume à
análise de
cinco
circunstâncias relativas ao
crime
ou à
presunção do
crime:
...primeiro,
onde foi
cometido;
segundo,
quando foi
cometido;
terceiro,
como foi
cometido,
quarto,
porque foi
cometido;
quinto,
quem o
cometeu? As duas primeiras
circunstâncias
são
materiais; as
duas últimas
imateriais; a
terceira
participa das duas. (Pessoa,
1986: 696)
Partindo da
possibilidade de
que a
sala do
engenheiro Almeida e Sá estivesse hermeticamente
fechada
para a
retirada de
um
objeto
grande,
mas
não
para a
retirada de uma
carta (donde se depreende
que há a possibilidade de
que papéis pudessem
ter
passado
por
debaixo da
porta), o Dr.
Quaresma
chega à
circunstância do “como
ocorreu o
crime”.
Não
lhe é
difícil, a
partir disso,
chegar à
conclusão de
que
tal
furto foi realizado
pela
mulher do
engenheiro, movida
por
um
estado
mental
em
que se misturam
sanidade e a
loucura.
Após a
revelação do
enigma, do
aspecto
eminentemente
dedutivo da
intriga, o Dr.
Quaresma
passa a
realizar
um
exercício de
determinação
psicológica do
criminoso. O
texto adquire
então a
forma de
um
compêndio de
análise do
comportamento
humano –
aliás, caminho
idêntico ao
seguido
pelo M. Dupin no
conto “A
carta
roubada”.
Explicitando,
assim, os procedimentos do
crime e analisando-lhe as
causas, Dr.
Quaresma engendra
um
formidável
exercício de
estudo
psicológico dos
seres,
marca
indelével,
mais uma
vez, do
seu apurado
conhecimento
intelectualizado,
capaz de
resolver o
mistério do
crime
sem
sair do
lugar – ao
contrário da
polícia,
que realiza
buscas, checa os
locais do
crime, interroga
suspeitos etc.
Como classificara o
Tio
Porco, a
inteligência
científica da
polícia é
falível, donde a
inteligência filosófica (a do Dr.
Quaresma) é
mais
eficaz
para
dar
fim ao
raciocínio. Permanece,
todavia, o
confronto
entre a
Polícia e o
detetive
amador,
característico das
histórias
policiais; tendo desvendado o
enigma da
carta, o Dr.
Quaresma assiste à
revolta
instintiva do Sr. Guedes,
sem
deixar de ironizar-lhe os
atos:
O
chefe Guedes ergue-se da
cadeira,
com
cara entomatada e, dando
um
formidável
murro na
mesa,
pronunciou uma
série de
exclamações
que,
como
constatavam
principalmente
de
palavras
excluídas dos
dicionários
vulgares, e
esta
narrativa
não pretende
senão
servir-se das
comuns,
não
serão
aqui
transcritas. (Pessoa,
1986: 698)
Os
dois
últimos
textos de
que trataremos
são “A
arte de
raciocinar” e “Um
paranóico
com
juízo” – trata-se de
dois
fragmentos pertencentes à “novela
policiária” “O
caso Vargas”,
texto
que
não chegou a
ser concluído
por
Pessoa. No
primeiro,
como o
próprio
nome
já diz, analisa-se e discute-se a
arte de
raciocinar,
algo parecido
com as
explicações do
Tio
Porco
sobre a
Inteligência
Humana – o
que, na
verdade, apresenta-se
aqui
como
um
roteiro dos
caminhos da
investigação criminal.
À
maneira do
que
já havia
exposto no
conto “A
carta
mágica”, o Dr.
Quaresma
volta aos
cinco
pontos
essenciais da
investigação:
quando,
onde,
porque,
como e
quem praticou o
crime.
Contudo,
aqui há uma
distinção das
etapas de
investigação e uma
nova
variante,
cujo
primeiro
passo é
saber se o
crime
realmente aconteceu
ou
não. A
partir disto, há
dois
tipos de
raciocínio:
um deles é o
raciocínio
concreto
aquele
que
trabalha
sobre os
dados dos
sentidos e
que deles extrai os
fatos:
Quando os
dados procedem
de
testemunhos
verificadamente
seguros;
quando
comparados
entre
si
mesmos,
ou
com
outros a
cuja
descoberta
conduzem,
são
suficientemente
abundantes
para
que os
fatos
resultantes
formem
um
conjunto
coerente,
harmônico e
lógico,
que
nos permita
indubitavelmente
verificar
qual foi a
sua
natureza,
causa e
fins, o
acontecimento
de
que
esses
fatos
são
os
pormenores,
e
não
a
investigação
está concluída e
basta
o
raciocínio
para
concluir.
(Pessoa,
1986: 704-705)
Todavia,
não é
freqüente o
fato de
haver
testemunhas verificadamente seguras,
principalmente
quando o
crime implica
em
morte. À
exceção de
certos
crimes
bruscos,
passionais
ou de
loucura, o
criminoso
sempre
procura
deixar o
menor
número de
pistas, o
que significa
escassez de
dados e,
por
conseqüência,
menor
relação
entre
fatos e
causas:
Finalmente,
em
caso de
crime, tendem
a
abundar as
razões
para
haver
testemunhos
duvidosos. O
caráter
secreto do
crime
contribui
para o
que dele se
observa seja
imperfeitamente
observado; o
caráter
interessante do
crime tende a
produzir
testemunhos de
natureza
involuntariamente
conjectural,
pelos
elementos e
motivos
que sugere...
(Pessoa,
1986: 705)
Nesta
altura, entra
em
ação o
outro
tipo de
raciocínio, o
raciocínio
abstrato,
que se utiliza de
três
processos – o
psicológico, o
hipotético e o
histórico. O
processo
psicológico,
além de
aprofundar a
analogia dos
dados,
procura
saber
quais os
estados
mentais
que produziram
tais
dados. O
processo
hipotético, baseando-se
nos
poucos
fatos
ou
dados
disponíveis,
procura
formular uma
hipótese
que se adeqüe aos
fatos e
dados existentes e aos
que
porventura venham a
participar do
caso,
ou outras
hipótese
mais consistentes,
até
que se possa
explicar o
crime.
Por
último, o
processo
histórico,
análogo ao
hipotético, baseia-se
em
exemplos
passados
para se
buscar as
semelhanças e
relações
que possam
explicar o
crime
presente.
Mais uma
vez, o
texto se presentifica
muito
mais
como
exercício
dissertativo do
que
como
exemplo de
ficção do
gênero
policial.
Contudo, relaciona-se
diretamente ao
gênero
em
questão
pelo
que traz de
indicação dos
processos de
investigação criminal,
isto é,
pela
ilustração dos
métodos dos
detetives,
em
última
instância.
Por
último, vejamos
um
caso
curioso
que demonstra o
rigor
formal e
estético da
narrativa pessoana. “Um
paranóico
com
juízo”
não pode
ser tido
como
um
texto
acabado,
pois afigura-se
como anotações
preliminares e preparatórias de
composição
psicológica do
criminoso
que faria
parte de
seu
conto “O
caso Vargas”.
Assim, a
partir de
oito
pontos
preliminares,
Pessoa
procura
fazer a
descrição
moral do
personagem:
cada
ponto
preliminar tem
três
alternativas distintas de
caracterização e classificação, e , deste
modo, vai o
autor encaixando a
personalidade do
criminoso a
cada uma dessas
alternativas.
Exemplo:
1)
Tipo de
inibição: (a)
receio (não),
(b)
moral (não),
(c)
fraqueza de
vontade (sim).”
Os
outros
pontos de
caracterização
do
personagem
são: 2)
Fraqueza de
vontade,
Fraqueza de
vontade de
impulso; 4)
Que
espécie de
atividade
mental é
que produz a
falta de
vontade de
impulso; 5)
Tipos de
concentração;
6)
Tipos de
emoção
repulsiva; 8)
Tipos de
emoção
defensiva.. (Pessoa,
1986: )
Vê-se
que a
partir de uma estruturação
perfeitamente
lógica e
rigorosamente
matemática, Fernando
Pessoa
traça o
retrato de
seu
personagem
como
que se
este saísse de
exercícios de
álgebra. Chega-se,
logo, ao
resultado da
equação,
que
nos
mostra o
perfil
conciso do
criminoso:
É
um
paranóico
inteiramente
lúdico,
isto é, tem
todos os
característicos
da
paranóia,
menos o
delírio
central,
que de
fato constitui
a
paranóia.
(Se
me é
permitido
usar de
um
paradoxo,
direi,
em
conclusão
desta
série de
raciocínios,
que o
autor deste
crime é
um
paranóico
com
juízo.) (Pessoa,
1986: 708)
Apenas
para
finalizar o
exame destes
cinco
textos de Fernando
Pessoa,
vale a
pena
ressaltar
que,
embora
só tenhamos
dois
contos
que
são
mais do
que
simples
fragmentos, os
outros
três
textos contribuem
igualmente
para a
caracterização do
gênero
policial
em
sua
obra. Nesse
sentido,
todos
eles tornam-se
singulares a
partir do
momento
em
que encerram o
exemplo
mais
bem
acabado das
narrativas clássicas de
detetive.
O
fato de terem sido reunidos,
aliás,
sob o
título de “Contos de
Raciocínio” acentua a
filiação de
Pessoa aos
contos protagonizados
pelo
detetive Dupin,
pois
são
com
efeito
narrativas
em
que o
raciocínio e os
estudos do
pensamento
humano acabam apontando
para os
caminhos da
investigação criminal. Há,
portanto,
muito
mais do
que
ficção, e
sim
um
estudo
teórico e
minucioso dos
processos de
investigação,
algo
que se relaciona
diretamente
com o
ofício do
detetive, elementos-chave,
em
suma, das
narrativas
policiais da
maneira
como Poe as caracterizou no
final do
século XIX.
Os
contos
aqui analisados tornam-se
curiosos no
sentido de se circunscreverem à
tradição inaugurada
por Edgar Allan Poe e ao
detetive Dupin. Os
textos pessoanos assemelham-se a
tratados filosóficos,
dissertativos,
em
que os
recursos narrativos subjazem aos
maneirismos do
espírito e da
inteligência.
Talvez seja
esse o
caso
mais
próprio da
ocorrência da
narrativa
policial
clássica
em Portugal, uma
vez
que
seu
modelo está na
principal
fonte do
gênero,
como dá
conta a
citação
explícita ao
conto “A
carta roubada” no “A
carta
mágica”.
Pessoa apropriou-se da
tradição
policial
típica das
literaturas de
língua inglesa e a aclimatou
com poucas alterações aos
cenários
lusitanos. Seria o
caso de
nos perguntarmos se, nessa
reprodução, o
detetive Dr.
Quaresma
não seria
um fingidor,
que finge
tão
completamente
que é
um
detetive – e
nem estaria
preocupado
em
mostrar
que é
algo
mais do
que uma
simples
recriação do
detetive Dupin.
Bibliografia
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Boileau-Narcejac.
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Ficção
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Reimão, Sandra Lúcia. O
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