O Detetive é um Fingidor,
Finge
Tão Completamente
Os “
Contos Policiários” de Fernando Pessoa
Sob a Influência de Edgar Allan Poe

José Carlos Marques (USP; UNISA e UNIP)

 

No espólio da obra em prosa de Fernando Pessoa, além de textos filosóficos, estéticos, políticos e cartas escritos pelo poeta, há uma parte ficcional reunida sob a denominação de “Contos de Raciocínio [1]. Entre contos acabados e fragmentos, há sete textos não datados, dos quais cinco são de peculiar interesse ao nosso estudo: “A janela estreita”, “O roubo da Quinta das Vinhas”, “A carta mágica”, “A arte de raciocinar” e “Um paranóico com juízo”.

que se lamentar, no entanto, que esses cinco textos não sejam considerados comoobras prontas”, que se trata de fragmentos que pertencem a projetos de narrativas idealizadas pelo autor, ou então de histórias reconstituídas pela organizadora do volume (como no caso de “O roubo da Quinta das Vinhas” e “A carta mágica”). Não obstante, esses textos podem ser entendidos como pertencentes ao paradigma da narrativa policial na sua forma mais clássica e primeva, que são inspirados, nitidamente, nos contos de detetive lançados pelo criador do gênero, o norte-americano Edgar Allan Poe.

As histórias policiais elaboradas por Poe colocam em destaque a figura de C. Auguste Dupin, espécie de detetive-herói que, de forma intelectual, resolve casos aparentemente insolúveis de mistério, roubos e assassinatos. É o que se dá nos três contos que inauguram esse novo gênero da literatura no ocidente – a narrativa policial: “The murders in the rue Morgue”, “The mystery of Marie Roget” e “The purloined letter” (ou “Os assassinos da Rua Morgue”, “O mistério de Marie Roget” e “A carta roubada”, respectivamente)[2].

Poe utiliza a narrativa de investigação para demonstrar o poder da análise racional e da observação científica. Dupin é uma máquina de raciocínio, que usa as informações que recebe para construir teorias a fim de explicar os fatos indecifráveis. Ele não tem necessidade de deslocar-se até o local do crime, ao contrário dos agentes da polícia, uma vez que emprega um raciocínio de cunho dedutivo. A partir desse modelo, Poe estabelece também uma outra forma de literatura – as histórias clássicas de detetive, que são compostas por duas partes: 1ª) a narrativa do crime e daquilo que ocorreu a princípio; 2ª) a narrativa da investigação e do que ocorre depois que o crime teve lugar. O mais importante nessa narrativa clássica de detetives é o relato da investigação, e não o do crime.

A respeito das narrativas policiais, cabe destacar algumas considerações feitas pelo escritor britânico Gilbert Keith Chesterton (1874-1936):[3] o conto policial expressaria um certo sentimento poético da vida moderna diante da urbe. A literatura popular que veio celebrar as possibilidades romanescas da cidade é o romance policial, cuja figura do detetive substituiria a do herói romântico dos séculos XVIII e XIX. A essência desse novo gênero é estritamente urbana, que tem como cenário as grandes cidades: “Le Roman Policier est l’Iliade de la grande ville”. O conceito da urbanidade é capital para o entendimento da narrativa policial, ainda mais se pensarmos o quanto a organização metropolitana engendra a possibilidade do crime. Além disso, a riqueza das narrativas policiais, para Chesterton, residiria no fato de elas representarem um jogo, no qual o leitor não luta contra o criminoso, mas evidentemente contra o autor.

O escritor argentino Jorge Luis Borges também teorizou sobre o con­to policial [4], enaltecendo a narrativa de cunho clássico e apontando o caráter decadente do romance noir americano. Nos dois casos, porém, a novela policial gerou um tipo especial de leitor (alguém que com incredulidade e desconfiança especial), leitor esse criado por Edgar Allan Poe. Segundo Borges, ao lermos uma novela policial, somos uma in­venção de Poe, que, com efeito, formulou o conto policial clássico à enigma, do qual decorre a idéia da literatura como um fato intelectual. Daí, surge também a grande tradição das narrativas policiais: um mistério que se desvenda por obra de uma operação racional. Poe não queria uma narrativa que fosse apenas fruto da imaginação, mas algo relacionado com a inteligência e genialidade do detetive.

O primeiro texto de Fernando Pessoa de que trataremos aqui, denominado “A janela estreita”, é um fragmento do conto do mesmo nome que Pessoa não chegou a terminar. Neste pequeno texto, Pessoa apresenta-nos os dois personagens que irão participar de suas histórias policiais: o Sr. Chefe Guedes, da Investigação Criminal, representante da Polícia enquanto instituição; e o Dr. Quaresma, espécie de detetive amador, nos moldes do Monsieur Dupin, de Poe.

Longe de se configurar como um verdadeiro texto de ficção, talvez pelo próprio fato de não ter tido concluído, esse fragmento assume um tom dissertativo na medida em que um narrador, em primeira pessoa, narra um diálogo entre o Chefe Guedes, o Dr. Quaresma e um personagem denominado Tio Porco, o qual faz a mediação e conduz as conversações por meio de um longo discurso a respeito da Inteligência Humana. Consubstanciando-se como uma exposição argumentativa de certa doutrina, o texto mostra o pensamento do Tio Porco com relação às três categorias sob as quais se pode classificar a Inteligência Humana: a “Inteligência Científica”, a “Inteligência Filosófica” e a “Inteligência Crítica”.

A “Inteligência Científica” é aquela que examina os fatos e tira deles conclusões imediatas, observando e determinando, pela comparação das coisas, a essência das ações. Trata-se da inteligência do Sr. Guedes e, por conseguinte, da própria Polícia. A “Inteligência Filosófica” aproveita-se dos conhecimentos e sabedoria do Dr. Quaresma. Por último, há a “Inteligência Crítica”, que o erro e as falhas das suas antecessoras. Divide-se emInteligência Crítica Instintiva” (aquela que , sente, “aponta as falhas das outras duas, mas não mais longe: indica o que está errado, como se o cheirasse, mas não passa disso”) e a “Inteligência Crítica Intelectual”, o mais alto grau da Inteligência Humana (é a inteligência que, além de determinar as falhas das outras, determina, constrói e reelabora o argumento delas, “restituindo-o à verdade onde ela nunca esteve”; em suma, é a inteligência dos detetives clássicos das histórias policiais “à enigma”); aqui, trata-se da inteligência do Tio Porco.

Vale ressaltar que essas três categorias implicam, na verdade, três estágios diferentes da investigação humana, o que pode ser projetado, certamente, para o caso da investigação criminal. Expostas as categorias em que se inclui a inteligência humana, passa-se então a justificá-las e a conceituá-las de maneira mais compreensível. O que se tem, portanto, é um longo texto dissertativo onde se analisam e se discutem os conceitos anteriormente elaborados. Cabe ressaltar aqui a análise engendrada pelo Tio Porco a partir de um caso investigado pelo Sr. Guedes, donde se depreende a crítica aos meios de investigação normalmente efetuados pela polícia:

Nós temos, neste caso, um erro típico da inteligência de tipo científico. Foi o do Sr. Chefe Guedes quando informado do mau caráter do filho do ourives, e informado também de que ele freqüentava muito a loja, desconfiou logo dele. Ora, concedendo que esse mau caráter seja um fato, a verdade é que não é um fato necessariamente dentro do esquema de fatos que, somados, constituem os fatos deste crime, ou seja, o fato deste crime. O crime é um fato, o mau caráter do rapaz é outro fato. Os dois juntos podem não formar um novo fato, que seria a razão casual do rapaz com o crime. Em vez de partir, como faria a inteligência filosófica, e fez aqui o Abílio Quaresma, dos fatos do crime para a conclusão do criminoso, o Sr. Chefe Guedes ligou dois fenômenos simplesmente por serem fatos, e apenas por uma certa contigüidade, por assim dizer... (Pessoa, 1986: 684)

O valor do texto prende-se, assim, menos ao caráter ficcional do suposto caso da Janela Estreita (título do conto) do que ao caráter intelectual da análise da inteligência humana, o que em suma, representa uma análise da arte de investigar.

O segundo texto que nos serve de análise é “O roubo da Quinta das Vinhas”, texto concluído por Pessoa mas não em sua forma definitiva, de sorte que foram necessárias algumas interpolações explicativas por parte da organizadora do volume a fim de tornar a narrativa mais inteligível para o leitor.

Neste conto, há um roubo de alguns títulos da dívida pública portuguesa do cofre da Quinta das Vinhas, de propriedade do Sr. José Mendes Borba. Certa noite, estando reunidos na Quinta o proprietário, seu filho, José Alves, alguns parentes da família e o engenheiro Augusto Claro, ouve-se por volta da zero hora uma explosão, constatando-se de imediato o arrombamento da fechadura do cofre e o desaparecimento de tais títulos. As investigações da polícia vão apontar para a acusação do filho do proprietário, que se encontrava em dificuldades financeiras e que mantinha certas relações ilícitas: acreditava-se, portanto, que houvera a ação de uma quadrilha com o auxílio de alguém da casa, aqui, em particular, de José Alves. Não obstante, ainda que as suspeitas acumuladas indicassem a culpabilidade do filho do dono da casa, o agente da polícia deteve o jardineiro da Quinta, “por uma remota possibilidade de culpa”.

É quando intervém o engenheiro Augusto Claro, narrador da história, que procura o Dr. Quaresma, a fim de pedir-lhe a soltura do jardineiro, pois estava convencido da sua inocência; afirmava ainda, por motivos não muito esclarecidos, que José Alves também era inocente. Surpreendentemente, contudo, o Dr. Quaresma lhe diz que, para soltar o jardineiro e não prender o José Alves, era necessário prender o verdadeiro criminoso. E, o mais espetacular, é que o Dr. Quaresma sabia quem era o criminoso, embora não tivesse certeza se poderia ou se deveria denunciá-lo à polícia.

Primeiramente, o Dr. Quaresma aponta o erro primário em que incorreu as investigações engendradas pela polícia, indicando que ela não seria capaz de pôr a mão no criminoso, que havia caído, “desde o princípio, num erro fundamental, naquele mesmo erro em que o criminoso quis que ela caísse.” Assim, Dr. Quaresma apresenta qual é o seu processo de investigação, eficiente e capaz de chegar à resolução do crime:

O critério de investigação que adoto, porque o acho o mais racional de todos, é o de dividir a investigação preliminar em três tempos. O primeiro tempo é determinar quais são os fatos incontestáveis, eliminando todos os elementos que não o sejam, ou porque não certeza direta deles, ou porque sejam conclusões talvez lógicas, talvez inevitáveis tiradas desses fatos, mas em todo o caso, conclusões e não fatos. (Pessoa, 1986: 688)

Por exemplo, se num dia de chuva um homem entra em casa todo molhado, isto não quer dizer que ele esteve à chuva, pois podem ter-lhe jogado água antes de entrar em casa. Falsa conclusão, portanto. Se, ao contrário, da janela da sala vê-se tal homem andando à chuva pela rua, quando ele entrar em casa pode-se afirmar, com toda a certeza, que ele se molhou por causa da chuva, ainda que também tenha se molhado sob outra circunstância qualquer. Isto seria um fato, e não uma conclusão. A partir de seu raciocínio e construída a primeira hipótese, o personagem parte para a hipótese contrária, que pode ser igualmente válida:

Como a hipótese mais provável, a mais imediata para todos, é que o roubo fosse feito por estranhos, nas circunstâncias indicadas, a hipótese contrária será realmente provável apenas num caso; se houve a intenção de simular esse roubo por estranhos. Nesse caso, a hipótese contrária é provável; tão provável com a primitiva é natural. (Pessoa, 1986: 690)

Tem-se aqui o princípio do “espelhar-se no outroque é utilizado pelo Dr. Quaresma, caracterizando por sua vez, além do conceito lacaniano do ‘olhar’, o princípio básico do trabalho do detetive, qual seja, o de tentar colocar-se no lugar do criminoso para descobrir os seus procedimentos. Não é difícil de se depreender, portanto, que o engenheiro Augusto Claro é o autor do crime, que ele agiu com o objetivo de simular um roubo feito por estranhos, tentando ocultar sua própria culpa. Tendo sido esclarecido o mistério de tal caso pelo Dr. Quaresma, pesam sobre o engenheiro o remorso e a impotência diante dos fatos, pois sua “engenhosidade” fora descoberta:

No longo espaço de curtos segundos tentei desesperadamente formar uma atitude, uma palavra, um gesto, qualquer coisa... Não pude... e então compreendi violentamente quanto pode em nós, se sabem excita-la, a consciência da culpabilidade. Fosse eu inocente, e alguma coisa diria, alguma coisa sucederia. Com cada fracção de segundo do meu silêncio a minha culpabilidade enchia o espaço. (...) A minha derrota era completa.. (Pessoa, 1986: 692)

Agindo portanto como o detetive amador clássicosemelhança de Dupin, de Poe), sem sair de sua casa e sem verificar o local do crime, apenas com alguns dados e depoimentos em mãos, Dr. Quaresma chega à conclusão do fato, utilizando-se somente do raciocínio lógico e matemático. Sua tranqüilidade diante do criminoso e seu caráter fleumático diante da culpabilidade do engenheiro derivam até para a conclusão irônica do conto, pois ele não diz estar do lado da lei, mas cultiva um sentimento narcisista (peculiar aos detetives policiais) que se contrapõe à ineficiência da Polícia. Esse fingimento e dissimulação esnobe denotam a superioridade do Dr. Quaresma: mesmo sabendo quem é o criminoso, ele não vai denunciá-lo, abstendo-se de qualquer decisão: “Eu não tenho nada a dizer. Como compreendeu, decifrei – posso dizer-lhe que decifrei com muita facilidade – o seu caso. O resto é consigo” (Pessoa, 1986: 693).

Passemos agora a outro conto de Fernando Pessoa, intitulado “A carta mágica”, que também recebeu algumas interpolações explicativas da organizadora, à maneira do conto anterior. O título desse conto traz, à partida, uma alusão ao célebre “A Carta Roubada”, de Allan Poe (que, como vimos, representa um dos três contos que inauguraram a narrativa policial). No conto de Pessoa, o leit-motif central do texto é também o desaparecimento misterioso de uma carta, ocorrido na sala de estar da casa do engenheiro Francisco Almeida e Sá. Estando a sala hermeticamente fechada e sabendo da existência da carta apenas o engenheiro, sua mulher e sua empregada, o investigador Guedes inclina-se a suspeitar da empregada, ainda que as investigações apontem a inocência da subalterna.

Nesse momento da narrativa, intervém mais uma vez o Dr. Quaresma, afirmando ter resolvido o mistério: “– Os dados são absolutamente suficientes para a solução total do problema. o resolvi totalmente.” (Pessoa, 1986: 695). O Dr. Quaresma volta então a descrever o seu processo de investigação, que se resume à análise de cinco circunstâncias relativas ao crime ou à presunção do crime:

...primeiro, onde foi cometido; segundo, quando foi cometido; terceiro, como foi cometido, quarto, porque foi cometido; quinto, quem o cometeu? As duas primeiras circunstâncias são materiais; as duas últimas imateriais; a terceira participa das duas. (Pessoa, 1986: 696)

Partindo da possibilidade de que a sala do engenheiro Almeida e Sá estivesse hermeticamente fechada para a retirada de um objeto grande, mas não para a retirada de uma carta (donde se depreende que há a possibilidade de que papéis pudessem ter passado por debaixo da porta), o Dr. Quaresma chega à circunstância do “como ocorreu o crime”. Não lhe é difícil, a partir disso, chegar à conclusão de que tal furto foi realizado pela mulher do engenheiro, movida por um estado mental em que se misturam sanidade e a loucura. Após a revelação do enigma, do aspecto eminentemente dedutivo da intriga, o Dr. Quaresma passa a realizar um exercício de determinação psicológica do criminoso. O texto adquire então a forma de um compêndio de análise do comportamento humanoaliás, ca­minho idêntico ao seguido pelo M. Dupin no conto “A carta roubada”.

Explicitando, assim, os procedimentos do crime e analisando-lhe as causas, Dr. Quaresma engendra um formidável exercício de estudo psicológico dos seres, marca indelével, mais uma vez, do seu apurado conhecimento intelectualizado, capaz de resolver o mistério do crime sem sair do lugar – ao contrário da polícia, que realiza buscas, checa os locais do crime, interroga suspeitos etc. Como classificara o Tio Porco, a inteligência científica da polícia é falível, donde a inteligência filosófica (a do Dr. Quaresma) é mais eficaz para dar fim ao raciocínio. Permanece, todavia, o confronto entre a Polícia e o detetive amador, característico das histórias policiais; tendo desvendado o enigma da carta, o Dr. Quaresma assiste à revolta instintiva do Sr. Guedes, sem deixar de ironizar-lhe os atos:

O chefe Guedes ergue-se da cadeira, com cara entomatada e, dando um formidável murro na mesa, pronunciou uma série de exclamações que, como constatavam principalmente de palavras excluídas dos dicionários vulgares, e esta narrativa não pretende senão servir-se das comuns, não serão aqui transcritas. (Pessoa, 1986: 698)

Os dois últimos textos de que trataremos são “A arte de raciocinar” e “Um paranóico com juízo” – trata-se de dois fragmentos pertencentes à “novela policiária” “O caso Vargas”, texto que não chegou a ser concluído por Pessoa. No primeiro, como o próprio nome diz, analisa-se e discute-se a arte de raciocinar, algo parecido com as explicações do Tio Porco sobre a Inteligência Humana – o que, na verdade, apresenta-se aqui como um roteiro dos caminhos da investigação criminal.

À maneira do que havia exposto no conto “A carta mágica”, o Dr. Quaresma volta aos cinco pontos essenciais da investigação: quando, onde, porque, como e quem praticou o crime. Contudo, aqui há uma distinção das etapas de investigação e uma nova variante, cujo primeiro passo é saber se o crime realmente aconteceu ou não. A partir disto, há dois tipos de raciocínio: um deles é o raciocínio concreto aquele que trabalha sobre os dados dos sentidos e que deles extrai os fatos:

Quando os dados procedem de testemunhos verificadamente seguros; quando comparados entre si mesmos, ou com outros a cuja descoberta conduzem, são suficientemente abundantes para que os fatos resultantes formem um conjunto coerente, harmônico e lógico, que nos permita indubitavelmente verificar qual foi a sua natureza, causa e fins, o acontecimento de que esses fatos são os pormenores, e não a investigação está concluída e basta o raciocínio para concluir. (Pessoa, 1986: 704-705)

Todavia, não é freqüente o fato de haver testemunhas verificadamente seguras, principalmente quando o crime implica em morte. À exceção de certos crimes bruscos, passionais ou de loucura, o criminoso sempre procura deixar o menor número de pistas, o que significa escassez de dados e, por conseqüência, menor relação entre fatos e causas:

Finalmente, em caso de crime, tendem a abundar as razões para haver testemunhos duvidosos. O caráter secreto do crime contribui para o que dele se observa seja imperfeitamente observado; o caráter interessante do crime tende a produzir testemunhos de natureza involuntariamente conjectural, pelos elementos e motivos que sugere... (Pessoa, 1986: 705)

Nesta altura, entra em ação o outro tipo de raciocínio, o raciocínio abstrato, que se utiliza de três processos – o psicológico, o hipotético e o histórico. O processo psicológico, além de aprofundar a analogia dos dados, procura saber quais os estados mentais que produziram tais dados. O processo hipotético, baseando-se nos poucos fatos ou dados disponíveis, procura formular uma hipótese que se adeqüe aos fatos e dados existentes e aos que porventura venham a participar do caso, ou outras hipótese mais consistentes, até que se possa explicar o crime. Por último, o processo histórico, análogo ao hipotético, baseia-se em exemplos passados para se buscar as semelhanças e relações que possam explicar o crime presente.

Mais uma vez, o texto se presentifica muito mais como exercício dissertativo do que como exemplo de ficção do gênero policial. Contudo, relaciona-se diretamente ao gênero em questão pelo que traz de indicação dos processos de investigação criminal, isto é, pela ilustração dos métodos dos detetives, em última instância.

Por último, vejamos um caso curioso que demonstra o rigor formal e estético da narrativa pessoana. “Um paranóico com juízonão pode ser tido como um texto acabado, pois afigura-se como anotações preliminares e preparatórias de composição psicológica do criminoso que faria parte de seu conto “O caso Vargas”. Assim, a partir de oito pontos preliminares, Pessoa procura fazer a descrição moral do personagem: cada ponto preliminar tem três alternativas distintas de caracterização e classificação, e , deste modo, vai o autor encaixando a personalidade do criminoso a cada uma dessas alternativas. Exemplo:

1) Tipo de inibição: (a) receio (não), (b) moral (não), (c) fraqueza de vontade (sim).” Os outros pontos de caracterização do personagem são: 2) Fraqueza de vontade, Fraqueza de vontade de impulso; 4) Que espécie de atividade mental é que produz a falta de vontade de impulso; 5) Tipos de concentração; 6) Tipos de emoção repulsiva; 8) Tipos de emoção defensiva.. (Pessoa, 1986: )

Vê-se que a partir de uma estruturação perfeitamente lógica e rigorosamente matemática, Fernando Pessoa traça o retrato de seu personagem como que se este saísse de exercícios de álgebra. Chega-se, logo, ao resultado da equação, que nos mostra o perfil conciso do criminoso:

É um paranóico inteiramente lúdico, isto é, tem todos os característicos da paranóia, menos o delírio central, que de fato constitui a paranóia.

(Se me é permitido usar de um paradoxo, direi, em conclusão desta série de raciocínios, que o autor deste crime é um paranóico com juízo.) (Pessoa, 1986: 708)

Apenas para finalizar o exame destes cinco textos de Fernando Pessoa, vale a pena ressaltar que, embora tenhamos dois contos que são mais do que simples fragmentos, os outros três textos contribuem igualmente para a caracterização do gênero policial em sua obra. Nesse sentido, todos eles tornam-se singulares a partir do momento em que encerram o exemplo mais bem acabado das narrativas clássicas de detetive.

O fato de terem sido reunidos, aliás, sob o título de “Contos de Raciocínio” acentua a filiação de Pessoa aos contos protagonizados pelo detetive Dupin, pois são com efeito narrativas em que o raciocínio e os estudos do pensamento humano acabam apontando para os caminhos da investigação criminal. Há, portanto, muito mais do que ficção, e sim um estudo teórico e minucioso dos processos de investigação, algo que se relaciona diretamente com o ofício do detetive, elementos-chave, em suma, das narrativas policiais da maneira como Poe as caracterizou no final do século XIX.

Os contos aqui analisados tornam-se curiosos no sentido de se circunscreverem à tradição inaugurada por Edgar Allan Poe e ao detetive Dupin. Os textos pessoanos assemelham-se a tratados filosóficos, dissertativos, em que os recursos narrativos subjazem aos maneirismos do espírito e da inteligência. Talvez seja esse o caso mais próprio da ocorrência da narrativa policial clássica em Portugal, uma vez que seu modelo está na principal fonte do gênero, comoconta a citação explícita ao conto “A carta roubada” no “A carta mágica”.

Pessoa apropriou-se da tradição policial típica das literaturas de língua inglesa e a aclimatou com poucas alterações aos cenários lusitanos. Seria o caso de nos perguntarmos se, nessa reprodução, o detetive Dr. Quaresma não seria um fingidor, que finge tão completamente que é um detetive – e nem estaria preocupado em mostrar que é algo mais do que uma simples recriação do detetive Dupin.

 

Bibliografia

Chesterton, G. K. “Défense des romans policiers”, em Autopsies du roman policier. (org. Uri Eisenzweig), Paris: UGE, 1983.

Boileau-Narcejac. O romance policial. São Paulo: Ática, 1991.

Borges, Jorge Luis. “O conto policial”, em Cinco visões pessoais. Brasília: EdUnB, 1979.

Pessoa, Fernando. Obras em prosa. (org. Cleonice Berardinelli). Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

Poe, Edgar Allan. Ficção completa, poesia & ensaios. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986.

Reimão, Sandra Lúcia. O que é romance policial. São Paulo: Brasiliense, 1983.


 

[1] O presente trabalho teve como base a publicação intitulada Obras em Prosa, de Fernando Pessoa, organizada pela Profª. Cleonice Berardinelli para a editora Nova Aguilar.

[2] Ver Poe, Ficção completa, poesia & ensaios.

[3] Em “Défense des romans policiers” (v. Ref. Bibliográficas).

[4] Em “O conto policial” (v. Ref. Bibliográficas).