RAUL BRANDÃO NUMA
ENCRUZILHADA DE -ISMOS
Eloísa
Porto Corrêa (UERJ)
Introdução
A
Farsa é uma
narrativa
povoada
pelo
patético e marcada
pela tragicidade. Foi
escrita
em 1903, focalizando o Portugal da
virada do
século XIX
para o XX,
época de
Simbolismo e de
Decadentismo.
A
obra reflete o
desencanto
corrente, o
descrédito ao
cientificismo,
incapaz de
dar
conta de
questões subjetivas,
como a
psique
humana.
Por
outro
lado,
esse
mesmo
cientificismo é
um “fato”
inabalável,
manifesto
através dos
avanços
tecnológicos
irreversíveis, difundidos
entre o
homem dessa
época.
O
Simbolismo bebe da
fonte romântica,
mas
já
não pode “se
livrar” da
ciência. Reconhece
que a
técnica
não foi usada a
serviço do
bem
comum,
mas
não consegue
deixar de usá-la. É marcado
pela
dúvida,
pelo relativismo,
pelo hibridismo de
gêneros,
estilos e
valores,
por
um
pessimismo e
um
horror da
realidade,
que geram
imobilidade,
fuga
para o
sonho e
adoração da
morte.
A
Farsa é
iniciada
com uma
morte e encerrada
com várias. Esta, a
morte, aparece
com
múltiplos
significados:
como
fim
inexorável de
todos os
seres;
como
fonte de
vida (uma
vez
que o
ganha-pão do Anacleto é a
venda de
caixões);
como salvação
para o sofrimento
ou
como
ritual de
sua
passagem
para
outros
mundos
transcendentes (no
caso da
cega);
como
prova da
inutilidade da
ação e da
vida;
entre tantas outras possibilidades.
Assim, a
narrativa de Raul Brandão vai trilhando
caminhos simbolistas, recheados de
decadentismo e uma
série de
outros –ismos. Num
formigueiro
português marcado
pelo
Naturalismo, acaba descambando
para o
Existencialismo, revirando
formigas
pelo
avesso, descortinando
seus
interiores e
suas
existências
problemáticas
diante das ”vistas” do
leitor.
Ramificações na
estrada
do
gênero
O
título A
Farsa
dado a uma
narrativa,
já antecipa a
mistura de
gêneros
que ocorrerá no
livro,
tendência esta apontada
também
pelo narrador
em
diferentes
momentos.
(...)
Quem tivesse
génio
para
narrar o
drama
entre
mãe e
filho!
Ela conta-lhe
as
aflições, a
fome e os
maus
tratos – a
comédia e a
tragédia; as
horas amargas
atrás da
côdea, a
humilhação, a
máscara da
estupidez encobrindo a
infâmia. (...)
(AF, p. 47)
A
narrativa apresentará,
portanto,
elementos romanescos,
trágicos,
cômicos,
farsantes e
até
líricos, numa
mescla
bem ao
gosto modernista.
O narrador utiliza uma
linguagem
altamente
lírica,
aliás
recurso
usual no
Simbolismo,
que faz do
livro uma
prosa
poética: “a
água come as
pedras, as
lágrimas molham e desgastam as
criaturas” (AF, p.91).
A
estrutura da
narrativa tem
muito de romanesco. Apresenta
personagens
em
princípio
planas,
tipos
sociais,
mas
com o
decorrer da
trama aprofunda e complica psicologicamente
algumas,
como Candidinha, Antoninho, Anacleto, Sofia, a
Cega e Felícia,
que têm
rumos e
desfechos problematizados e
inusitados.
Além disso, muitas
personagens refletem o
espaço
através da
sua
personalidade,
recurso
bastante
recorrente no
romance. A
Farsa divide-se
em
cidade e
serra, antagônicas
entre
si, esta idealizada e aquela vilanizada.
(...) De
outra
vez recolheu
na
cabana uma
rapariga,
que o
pai, ao vê-la
grávida, expulsara de
casa (...)
Naquela
alma
espessa de
trevas a
humildade e a
ternura
nasciam
como a
água nasce nas
rochas.
Por
isso a comparo
com a
serra, (...) (AF,
p.81)
(...)
um
dia descobre a
mulher do
Antoninho e cobiça-a (...) O Antoninho aproveita.
Depois vem
um
negócio
político.
(...) Antoninho hesita. A Candidinha diz-lhe: –
Agora
ou
nunca!
Faze-lhe
tudo o
que
ele
pedir,
mas
joga
pela
certa,
filho! Estamos
ricos!... (AF,
p. 61)
Alguns
traços da
narrativa lembram
também a
novela,
como a
existência de
vários
núcleos
relativamente
independentes:
beatas, moradores da
serra,
trabalhadores
citadinos, etc.;
ou a
organização dos
elementos narrativos
em
função de
dois
acontecimentos
extraordinários: 1o) a
morte da irmã de Candidinha,
como
mote
para a
apresentação dos
núcleos e das
personagens, 2o) a
expectativa
em
torno do
sonho de Candidinha e da
irrupção de
sua verdadeira
personalidade,
em
torno da
qual se desenrola o
enredo.
A
grande dramaticidade somada ao
burlesco do
desfecho, a
galeria de
tipos, a
configuração da
personagem
central – Candidinha,
um
momo –
além de inúmeras
cenas cômicas remetem à
farsa.
(...) Lembra
um
palhaço
com o
chapéu
sem
penas e a
saia emendada,
em
perpétuas
correrias, do
tribunal
para
casa, contando
a
quem a
quer
ouvir a
eterna
história da
herança (...)
(AF, p.50)
A
despedida da
personagem
central, potanto, consiste numa
grande carnavalização,
com
direito a
apupos,
vaias,
risos,
figuras adereçadas,
como se usassem
fantasias, e
um
enterro, conduzido
por
um
carro doirado,
semelhante a
um
carro alegórico.
A
tragédia e a
comédia
em A
Farsa,
pois, aparecem
como as duas
faces do
mesmo
evento:
trágico
para o
eu
que o vivencia,
cômico
para o
outro
que o presencia,
apenas
dois pontos-de-vista.
Assim, se
por
um
lado o
desfecho de todas as
personagens é
trágico,
por
outro,
também têm
ares
burlescos,
cômicos.
Aliás, o
único
desenlace de
personagens
que
não é
tragicômico é o de Sofia e o da
cega,
que apresentam
um
teor mítico e descambam
para o
lirismo:
Há
quem diga
que as
gotas
que tombam uma
a uma da
abertura da
fraga
são as
lágrimas
que as duas
choraram neste
lugar de
desterro. É
uma
água
frígida e
límpida
que apetece
sempre
beber. (AF, p.145)
Curiosa a
forma
como o
texto explora o
lirismo e a
teatralidade.
Páginas e
páginas de derramamentos
líricos do narrador
são intercaladas
por inúmeros
monólogos e
diálogos
dramáticos,
dispostos
mesmo
como no
teatro:
falas e
mais
falas entrecortadas
apenas
por
pequenas
rubricas.
–
Quem se
importa
com a
desgraça? Empurram a
gente,
magoam... A
gente
só serve
para
ser enganada.
E
aquilo irrompe
aos
uivos do
negrume.
– A
vida é uma
mentira, a
vida é
um
escárnio,
Senhor!
Por
quem há-de a
gente
gritar se
todos
nos atiram
para a
desgraça?
Quem se
importa
com o
mal
que acontece
com os
outros?
Quem se
lhe importa?
Tiraram-me
tudo!
Despiram-me de
tudo! Foi
pior
que a
morte. E
quem se
importa?
Quem?
É aos
gritos de
aflição
que as
palavras
surgem da
noite
aziaga.
– Enganaram-me e ficaram-se a
rir. Parece-me
que os vejo
rir. Tiraram-me
tudo!
Levaram-me
tudo! (...)
(AF, p.94)
Outro
recurso
teatral
que aparece
largamente explorado na
narrativa é a
máscara.
(...)
Teatro
só
para
nós
mesmos,
onde
não há
máscaras,
(...)
Assim essa
arquitetura
feita de
invejas, de
ódios, de
pequeninos
nadas,
era a
Candidinha; a
outra
não passava
duma
máscara... (AF, p.55)
A
narrativa apresenta a
máscara
como o
tipo
social da
farsa, a
personagem
plana
que
todo
ser
humano
cria
como
fachada
para
sua interioridade conturbada,
para
encobrir a
personagem
psicológica
que é
cada
ser
humano.
Assim, a fixidez de
um
único
gênero
não é
capaz de
dar
conta da multiplicidade de
ângulos e
perspectivas
que o
artista necessita
ressaltar. A
mão
única
já
não satisfaz,
um
desvio
também
não resolveria,
são necessárias todas as ramificações
possíveis. É
preciso
aproveitar
tudo,
todos os
recursos,
todos os
gêneros, e
muito
mais,
para
poder
retratar
um
pouco da complexidade
que é
não
só a
alma
humana,
mas
também o
meio a
que
ela está submetida,
nem
um
nem
outro redutíveis a
um
mero
conjunto de
regras.
O
Simbolismo-Decadentismo
numa
encruzilhada
de –ismos
Da
mesma
forma
que ocorre
com o
gênero,
um
estilo
único
não é
capaz de
satisfazer à
gana do
artista.
Para
descrever o
espaço
físico
ele
precisa de
um,
para o
social de
outro,
para a interioridade de algumas
personagens necessita de
um
terceiro,
para outras
este
já
não serve, se
quer
refletir alguma
questão
nenhum destes caberia, e
assim
por
diante.
Cada
necessidade
estética,
cada
efeito
que se
quer
causar, exige
um
traço
diverso
ou uma
pincelada
distinta,
que tornarão a
obra
não uma
pintura,
mas uma
galeria
inteira de –ismos.
O Simbolismo-Decadentismo,
entretanto, atravessa
toda a
obra.
Aliás, uma
prova disto é o
próprio hibridismo de
estilos, de
gêneros e
até de
valores
insistente
em
todo o
livro,
tendência
recorrente
entre os simbolistas-decadentistas.
Cada
nome,
cada
personagem,
cada
gesto,
cada
ato,
cada
fato parece
ter
mil
significados simbólicos
por
desvendar. O
que
torna
cada
esforço decifratório
um
nada,
diante das infinitas outras possibilidades
silenciadas.
Nada
esse,
aliás,
que faz
parte de
todo e
qualquer
tropo
interpretativo
que se persiga no
livro, de
maneira
que
todos os
caminhos conduzem a
lugar
nenhum, resultando num
niilismo
bem ao
gosto decadentista.
A
vida torna-se
então uma não-vida,
inútil,
estéril,
um
simulacro forjado
pelo
somatório dos
sonhos de
cada
um. Na
vida
só
vale à
pena o
sonho,
todo o
movimento é
inútil
porque conduz à
morte, ao
nada.
(...)
Em
pensamento
já a matou
assim muitas
vezes; conhece
todos os
pormenores do
crime.
Nenhum
lhe
escapa e
dir-se-ia
que na
palma da
mão retém a
humidade dos
seus
dentes e o
hálito da
sua
boca.
Mas na
realidade
não se atreve.
(AF, p.110)
Nota-se
que o
que
vale à
pena na
vida é o
sonho,
mas o
sonho anula a
realidade,
pois incapacita o
sonhador
para a
ação, tornando-o
mero idealizador.
(...) Na tua
idade,
flor, o
meu
homem pôs-me
na
rua
como
quem escorraça
um
cão. (Era
mentira,
mas a
Candidinha começava a
fazer
drama, a
misturá-lo à
realidade,
para se
engrandecer.) (...) (AF,
p.69)
A
realidade aparece na
narrativa
misturada ao
fingimento,
ou
ainda, o
real é
um
somatório de meias-verdades.
Ora, se a
realidade é igualada à
mentira,
então
ela
não é
nada.
Assim,
tanto
pelo
viés do
sonho
quanto
pelo da
mentira, a
vida é anulada.
A
morte,
então, aparece
como
um
descanso da
vida
inútil, da
mentira e do
sonho
irrealizável, o
alívio
final,
através do
nada
definitivo: ”Que
maior
felicidade posso
esperar nesta
vida – do
que a
morte?” (AF, p.145)
Por
isso a
narrativa valoriza o
mito,
porque,
como diria
mais
tarde Fernando
Pessoa, numa
visão
bem simbolista: o
mito é o
nada
que é
tudo[1].
O
mito é a
realidade transfigurada de
mentira, de
sonho,
que
alenta,
que
consola o
povo
cansado do sofrimento
terreno.
(...) Fez-se a
lenda. Começou
a rezar-se de
milagres, e as
pobres
mulheres do
povo, fartas
de
trabalho e de
lágrimas,
afizeram-se a
vir
ajoelhar nas
aflições da
sua
vida naquele
cerro de
montanha,
pedindo às santas
que
lhes valessem.
(AF, p.145)
Assim, a
realidade é
um
vale de
lágrimas
que deve
ser transcendido. A
mentira, o
fingimento, o
sonho, o
mito
são algumas das
fugas
possíveis e necessárias
até
que a
escapada
final e
fatal, a
morte, encarregue-se de
cessar
definitivamente a
dor.
Mas, a
morte na
narrativa
não aparece
apenas
como
símbolo de
fuga, de
escape e
extinção da
vida,
ela aparece
também
como
porta de
entrada
para uma
nova
vida
espiritual,
para a
qual
deseja se
remeter a
Cega,
por
exemplo.
- Vou
morrer.
E
como Sofia
irrompesse
em
pranto:
- Chiu, baixinho... Temos chorado
tanto!...
Deus ouviu,
enfim, as
minhas
súplicas (...)
(AF, p.145)
A
morte é
também
símbolo de
vida, na
medida
em
que
alimenta
novas
vidas. O
negócio do Anacleto é
exemplo desta
face,
pois
este arrecada o
sustento da
família
através do
comércio de
caixões. Essa simbologia lembra a
utilidade do
húmus,
solo
rico
em
restos
orgânicos,
excelente
para o
cultivo.
Em
ambos os
casos a
morte é
fonte de
vida.
Vida e
morte, ambas
como
símbolos de
ser e de não-ser, ao
mesmo
tempo. Esta é uma
dicotomia simbolista-decandista
central na
obra. Partindo desta
dicotomia emanarão inúmeras outras,
que
são ao
mesmo
tempo derivadas e
independentes dela:
interior X
exterior,
Sociologia X
Psicologia,
Naturalismo X
Existencialismo,
Naturalismo X
Impressionismo,
Expressionismo X
Impressionismo,
Capitalismo X
individualidade,
Naturalismo X
Romantismo,
explorador X explorado,
entre tantas outras.
Embate
este,
entre o
social e o
individual,
que remete ao
Romantismo,
como se pode
constatar
em
Rosa e
Lírio, de Garrett,
por
exemplo.
A
diferença é
que no
Romantismo o
sujeito entrava
em
choque
com o
meio buscando a afirmação de
sua
individualidade, da
sua
opinião,
apesar de o
senso
comum e as
instituições
sociais estabelecerem
outro ponto-de-vista. No Simbolismo-Decadentismo,
há uma
convicção de
que
não
vale a
pena o
embate,
apesar de o
indivíduo
discordar da
sociedade e
seus
padrões.
Assim,
como o romântico, o simbolista preza o hibridismo,
a
diversidade de
gêneros,
estilos,
valores,
recursos,
para
melhor
refletir as
constelações
individuais
sob a
coletividade,
apesar da
trágica
consciência
deste
último de
que
todo
esforço de
busca é
estéril e
inútil.
Cenário
e
Expressionismo
No
cenário
físico e no
social, é
marcante o
Expressionismo
pictórico,
como num
quadro de
Van Gogh. Intensas
emoções
são expressas,
sem nenhuma
preocupação
com o
padrão de
beleza tradicional. A
vida é focalizada
com
pessimismo,
angústia e
dor, caracterizando a
inadequação do
artista à
realidade,
traço,
aliás,
comum a
expressionistas e simbolistas-decadentistas:
(...)
São
criaturas
egoístas e
secas
que se
cumprimentam e odeiam: a Candidinha
embrulhada no
trapo,
calada e
hirta,
com o
filho, o
Antoninho, ao
lado; o
Anacleto
sem
dizer
palavra; a
figura
caricata da
criada; e a
rapariguinha
inocente,
feia e
triste. E
quase as
mesmas
palavras, os
mesmos
ditos, a
mesma
bisca –
que
um
dia a
morte interrompeu –
jogadas
sobre o
porão
onde os
caixões
esperam
como
bocas
abertas na
velha
casa
incrustada na
Sé,
batida da
ventania,
sob os
frígidos
aguaceiros,
que descem da
serra,
corda
atrás de
corda.
Mas há
ocasiões na
vida
em
que as
figuras
humanas adquirem uma
expressão
extraordinária.
Basta
que
outra
luz as ilumine
diferente
daquela
em
que estamos
habituados a vê-las (...) (AF, p.23)
A
utilização do
grotesco e do
exagero é
outro
traço
expressionista,
este,
porém, herdado da
pintura
barroca,
como relembra o narrador, citando Rembrandt:
(...)
nos
quadros de
Rembrandt, deformando os
tipos,
exagerando-lhes as
papeiras e os
gadanhos,
avolumando-lhes as
barrigas
inchadas, os
seios
engelhados e todas as
deformidades
com
ferocidade e
grotesco,
até ao
ponto de
nos
mostrar a
nu
almas trágicas
de
monotonia e
rancores –
até ao
ponto de vermos
remexer
lá no
fundo do
poço
animais
gelatinosos –
que vivem na
água
esverdeada sonhando na
pesa e
remoendo
sempre o
sumidouro das
bocas
horríveis e
frias
como as dos
cadáveres. A
sombra é
um
grande
pintor.(AF,
p.23-24)
Aliás, a
deformidade e
associação de
imagens desconexas, a ativação de
sistemas
inconscientes,
irracionais e do
sonho antecipam
também o
Surrealismo
que surgirá
em 1924:
Esta
noite, à
luz do
candeeiro, a
sala
afigura-se-me
um
aquário
com
bichos
disformes
pousados no
fundo. Pelas
paredes a
sombra alastra
e sobe
pelo tecto
como
braços de
algas
monstruosas e encova-lhes os
olhos
sem
expressão
tornando-os
maiores e
mais
fixos;
suas
bocas
enormes remoem
como
ventosas e a
cara empedrada do Anacleto
torna-se
mais
dura e
mais
impenetrável
como a dum
ídolo
que presidisse
àquela
reunião de
bichos
temerosos.
(...) (AF, p.23)
A
análise
minuciosa do
subconsciente das
personagens,
através de
símbolos,
abstrações e
associações subjetivas é uma
marca
típica da
literatura
expressionista:
Desde
pequena
que sinto
isto
aqui a
remoer-me
sem
descanso,
dia e
noite,
sempre. A
inveja é
um
veneno
que
me tem azedado
toda a
existência
(...) (AF, p. 96)
A
denúncia de
problemas
sociais aparece
como uma
tendência
expressionista, herdada do Realismo-Naturalismo:
Já
em
pequena trazia
este
mesmo
xale,
este
mesmo
trapo,
que foi
crescendo
comigo. E
não creio –
nunca cri
em
Deus, no
Deus dos
pobres
que recomenda
a
desgraça, a
humilhação, a
esmola, no
Deus
que aconselha
a resignação e a
fome (...)
(AF, p. 96)
Entretanto, o
motivo é
diverso.
Enquanto no
Naturalismo o narrador
como
um
cientista analisava a
deformação
social
com
frieza,
minúcia e
objetividade, no
Expressionismo a
crítica ao
meio
social se dá
pela
inadequação do
artista à
realidade, prevalecendo a subjetividade.
(...)
Não! Essa
mulher apupada
não é a
Candidinha, é o
meu
sonho (...)
Uma
vida
inteira
passada a
sonhar e no
fim
encontra-se a
gente
com o
sonho
derrocado! (AF, p.140)
Assim, os
cenários de A
Farsa revelam-se
para o
leitor
como
telas
expressionistas, coloridas
com as
tintas da
emoção e nas
quais
cada
pincelada é uma
reação
subjetiva ao
convencionalismo.
Meio
social
e
Naturalismo:
Na
esteira do
Naturalismo, o
meio
também aparece
em A
Farsa
como o
promotor de condicionamentos e
deformações no
Homem,
tendência esta considerada precursora do
Neo-Realismo.
Mas o
meio
não será colocado
como o
único
vilão
responsável
pelo
pus
humano e
social. O
problema é complexificado à
luz
não
só da
Sociologia e
Psicologia,
mas
também da
Psicanálise
nascente.
Todas as
personagens sofrem condicionamentos
sociais,
mas
estes
são recebidos de
maneira
diversa, dependendo do
psicológico de
cada
indivíduo. O
que faz
com
que
personagens
como Joana e Candidinha, ambas
pobres e sujeitas aos
mesmos
tipos de
mazelas, tenham
reações
totalmente
opostas, uma resignada e a
outra
revoltada.
O
Capitalismo e
suas
ideologias aparecem
como
alguns dos
principais
agentes
sociais de
deformação, transformando as
pessoas
em
mercadorias e
em
mercenários:
(...) do
que
eu (Antoninho)
seria
capaz! De
tudo!
Que
força
eu tenho
para
ser
empregado
por
um
homem de
gênio,
para
completar
outro
homem. Sinto o
gênio da
intriga.
Nunca recuo,
não tenho
preconceitos...
Quem
me
quer
comprar? (AF, p. 77)
Com
base no
Capitalismo, a
sociedade pode
ser dividida
em
dois
grupos,
sujeitos a condicionamentos
diferentes.
Assim as
personagens podem
ser divididas
em:
exploradores e explorados. O
grupo de
exploradores
conta,
sobretudo,
com a
burguesia (e
com o
clero
descendente,
ou o
que restou dele).
Enquanto
isso, o inchado
grupo dos explorados
conta
com o
proletário, a
aristocracia decadente e
com
grande
parte dos
integrantes do
grupo
explorador,
que
em
algum
momento –
ou
em
vários –
também é explorado.
O
sonho de
consumo é incutido
em
toda a
sociedade,
mas interditado aos
pobres: “(...) – Se
ele é
rico! Os
ricos podem
tudo,
filho. Neste
mundo
tudo é
mentira,
só o
dinheiro é
que é
verdade. (AF, p. 48)
Ao
contrário, os
que possuem
bens
materiais têm
seus
direitos de
exploração e de
espoliação aos
mais
pobres legitimados:
(...) Cale-se!
Para
que é
que se
lhe
mata a
fome?
Não seja
desagradecida. (...) A
senhora é
pobre,
não é?
Pois
então seja
humilde –
que a
humildade fica
bem
para
quem
não tem
um pataco de
seu (...)
Para
que é
que
eu sou
rico? É
para à
aturar à
senhora?... E vá, de
pequenino, habituando
seu
filho a
sofrer; crie-o
para o
que
ele tem de
vir a
ser.(p.27)
O
pobre é rebaixado à
condição de
animal (zoomorfização),
deixa de
ter
acesso
até à
satisfação das
necessidades primárias, perdendo
suas
características humanas: “(...)
Lá vai enchendo o
papo!...” (AF, p. 26)
Aqueles
que
não possuem
bens
materiais
são,
inclusive, considerados
indignos de
ter
qualquer
benefício,
mesmo
saúde
ou
alimentação. Nesta
sociedade
capitalista, os
ricos consideram-se
donos de
todos os
direitos e impingem aos
pobres
todos os
deveres:
(...) esta
gente
pobre
nunca está
doente.
Não se
lhes
pega
nada,
nem uma
dor de
barriga! A
coisa
ruim
não acontece
desastre!
Só
eu
cá ando
com os
meus
padecimentos
há
tantos
anos!...Há
muito
que conheço
esta Candidinha e
nunca a vi se
queixar
senão de
fome. (AF, p.
27)
É
curioso
notar a
diferença
que existe na
forma de o
poderoso
encarar as
suas próprias
mazelas e a
miséria
alheia. A
própria
desgraça é
sempre superestimada, soando
fútil e
sem
importância ao
leitor.
Enquanto a
miséria
alheia,
apesar de
mais
escabrosa, é amenizada
pelo
burguês
com o
objetivo de
sugerir
que o
outro sofre
menos do
que aparenta.
A
vida
trágica do
povo, as
mazelas dos explorados
são usadas
como
paliativos
para as próprias
aflições. A
insensibilidade e o
egoísmo fazem
com
que a
desgraça
alheia sirva de
alento: (...) A
sua
miséria, a
sua
abjeção, a
sua
fome consolam-nos das nossas próprias
desgraças (...) (AF, p. 25)
Essa
falta de
compaixão e essa
violência
contra o
outro transformar-se-á num
veículo de perpetuação e de agravamento da
doença
social da desigualdade e criará
um
rancor
cada
vez
maior
entre a
classe
menos favorecida e a
burguesia.
Ao
mesmo
tempo
em
que cresce o
ódio
contra o
mais
afortunado, cresce o
desejo de cocanha e a
vontade de
tomar o
lugar do
outro.
Aliado a
isso,
um revanchismo e uma
necessidade de
vingança fazem
com
que o
oprimido, derrubando o
opressor,
também oprima e,
talvez,
com
um
requinte de
crueldade
ainda
maior.
Isso ocorreu
com a
burguesia
oprimida do
início do
século XIX,
que conseguiu
subir ao
poder e
agora assume o
posto de
opressor e
explorador.
Posto
esse
que
tanto criticara na
aristocracia: “Quem
me dera
ter uma
criada (...)
para
mandar à
minha
vontade.” (AF, p.68)
São
esses os
valores,
ideologias,
filosofias e
sistemas
que
vão
formatar as
personagens de A
Farsa,
que
serão o
molde da
próxima
geração,
pois a
sociedade é condicionada
mas condiciona
também,
já
que é
ela
quem impõe os
moldes,
ou
melhor,
são os
poderosos da
vez.
Com
isso, a
aristocracia
que
até o
século XIX ditava o
conjunto de
normas
sociais,
agora é
apenas condicionado
por
ditames impingidos
pelos burgueses.
Candidinha tem uma
dupla
representação. Ao
mesmo
tempo
em
que faz
parte da
classe
pobre,
ela teve a
infância e
adolescência
dentro de uma
elite aristocrática
em
descendência.
Com
isso, sofreu condicionamentos
sociais e
familiares
para
ser uma
dama,
para
ser patroa.
Assim,
ela é o
poderoso
que desceu
para o
posto do
oprimido e,
por
isso, sente-se
injustiçado e
deseja a
todo
custo
retomar
sua
posição,
que julga
ser
seu
direito de
sangue.
Assim, vê-se
que a
utopia liberalista romântica de
ascensão da
burguesia transformou-se no
pesadelo
capitalista
que assola o simbolista-decadentista e
seus
predecessores
até a contemporaneidade. Observou-se
que a
ascensão burguesa foi inversamente proporcional à
derrocada aristocrática,
entretanto o
proletário permanece na
mesma
posição:
pobre,
oprimido e explorado.
Os
seres
humanos
são,
portanto, divididos
em duas
classes:
ricos e
pobres,
primeira
classe e
segunda
classe.
Classes essas
que seguem a
paradigmas
sociais
específicos e sofrem condicionamentos
distintos. De
maneira
que
em
vida e
até na
morte existem
diferenças e
privilégios
para uns
em
detrimento de
outros (maioria).
(...) a
loja atulhada
de
caixões, de 1ª
classe
ricos,
óptimos; de 2ª
classe,
reles
esquifes, de
madeira
barata –
pequeninos e
enormes,
leves
como
penas, pesados
como
chumbo... (AF,
p. 34)
Candidinha é condicionada
pelo
Capitalismo e, desejando
dinheiro e
poder,
desgraça
sua
vida e a
vida do
filho, deformado
pela
cobiça e
ira da
mãe e
pela
humilhação da
sociedade.
Sofia, ao
contrário do Antoninho, nasceu e cresceu na
abastança, foi mimada e superprotegida
pela
família, tornando-se
alienada e
fútil. Condicionada
pelo
padrão de
beleza da
sociedade, angustia-se
pela
sua
feiúra. Fragilizada
por
todos
esses
fatores, torna-se preza
fácil
para o
golpe de Candinha.
Felícia, as outras
beatas e o
padre, condicionados
pelos
dogmas da
igreja, tornam-se
puritanos, cruéis,
inescrupulosos,
intolerantes e
hipócritas,
já
que cometem
em
pensamentos e
por
trás de
dissimulações
muitos dos
pecados
que combatem.
Anacleto e Belisário, reproduzindo o
ideal
capitalista do enriquecimento,
são os
típicos burgueses
que enriqueceram à
custa de
muito
trabalho,
mas
também da
exploração ao
próximo e do
ludíbrio:
Assim,
cada
personagem,
ou
melhor,
cada eu-social representa
um
grupo: Anacleto e Belizário
são os burgueses
exploradores; Felícia é a
beata
hipócrita; Sofia é a
menina mimada, romântica e
tola; Joana é a trabalhadora
humilde e
acomodada; Candidinha é a
aristocracia decadente e
ávida
por
recuperar
sua
posição; Antoninho é o
ambicioso
medíocre; etc.
Em
princípio, as
personagens
não passam de
tipos,
entretanto,
mais à
frente,
serão problematizadas e terão
seus
interiores devassados.
Eu-profundo e
Existencialismo
Em
oposição ao eu-social,
máscara
que representa
tipos
sociais, aparece o eu-profundo, a interioridade
por
trás da
máscara: “na
mulher, a
capa de
matéria
cobre uma
quimera
desmedida”
(AF, p.74)
Esse eu-profundo, essa interioridade reprimida é
revelada e analisada
ora
pelo narrador
ora
pela
própria
personagem
em
seus
monólogos
interiores:
Candidinha no
sótão
monologa:
“Desde
pequena
que sinto
isto
aqui a
remoer-me,
sem
descanso,
dia e
noite,
sempre. A
inveja é
um
veneno. (AF,
p.96)
Esses
monólogos assemelham-se a verdadeiras consultas a
analistas
ou
psicólogos,
em
que os
pacientes, no
caso Candidinha e Antoninho, parecem deitados num
divã, revelando
todos os
seus
vícios,
revoltas,
motivos, etc.,
para
que o “analista” os
desvende e tente
resolver.
A
preocupação
prioritária,
não
só
nos
monólogos,
mas
em
toda a
narrativa, é
desvendar o
que as
coisas
são, os
substratos
eternos e
imutáveis,
por
trás das
máscaras
sociais. Essas
reflexões
existencialistas se remetem,
sobretudo, à
angústia,
solidão
interior, finitude
humana,
questões
relacionadas a
Deus e à
vida de
cada
indivíduo.
(...) Se a
rajada levasse
o
que a
cova
leva e desfaz
– a
matéria – e
ficasse de
pé o
que é
eterno,
talvez
recuássemos de
espanto
diante de
tipos
desconhecidos,
de
sentimentos
desconhecidos,
de
almas nuas na
sua
beleza
ou na
sua
esplêndida
hediondez. (AF, p. 24)
No
capítulo O
interior da
formiga branoniana, far-se-á uma
análise
mais
profunda de
tais
questões existenciais,
bem
como de algumas interioridades
que se devassam na
narrativa.
Assim, todas estas
análises da interioridade, da
existência
humana
que se esconde
por
trás das
aparências,
ainda
que marcadas
pelo
Naturalismo e
por uma
influência do
meio, podem
ser consideradas
como precursoras dos
vôos
existencialistas de
certa
literatura do
século XX.
Marias e
Romantismo:
Paralelamente ao
caos
interior
existencialista e ao
pus
social naturalista
que escorre da
maior
parte das
personagens, algumas
são
bastante idealizadas, na
esteira da
Virgem Maria: Joana, Sofia e a
Cega
são as
três Marias
penitentes e divinizadas da
narrativa.
Já as
três
mulheres têm o
quer
que é de
desumano. Parecem
deslavadas de
lágrimas (...)
(AF, p.82)
A
abnegação, a
caridade, o
amor ao
próximo, o sofrimento, a
pobreza e
simplicidade mariais
são
marcas
comuns às
três
mulheres.
(...) De
outra
vez recolheu
na
cabana uma
rapariga,
que o
pai, ao vê-la
grávida, expulsara de
casa (...)
(AF, p. 81-82)
(...) as duas
mulheres uma
em
frente à
outra,
esvaídas, enregeladas ambas
pelo
mesmo
frio,
já se parece.
A
desgraça iguala. (AF, p.
89-90)
Os
distanciamentos
em
relação à
mãe de
Cristo vêm: 1º) da
incapacidade
que as
três apresentam
para
conceber
filhos; 2º) do
grotesco das
suas
figuras: esfarrapadas, desajeitadas e feias –
até a
cega,
em
princípio
bela, tem
sua
aparência
lentamente “degenerada”
pelo sofrimento.
Fatos
que as tornam
até
mais
penitentes do
que a
santa.
Desgraçadas ambas,
mas,
paradoxalmente, portadoras de uma resignação e de
uma
capacidade de
ser
feliz a
partir das
coisas escassas e
simples
que obtém:
Era
feliz. Bastava-lhe a
sua
fealdade e a
serra, a
choupana de
pedras toscas
e
colmos e os
irmãos. (...)
(AF, p.82)
(...) A
sua
vida
era
tão
simples,
que
um
mendigo julgar-se-ia
rico a
seu
lado. Eram
ambas
felizes –
talvez
pela
primeira
vez na
sua
vida. (AF, p.
145)
Nota-se
que
elas
três
não sonham,
nem
com
filhos -
que no
caso de Joana
não tê-los é a
sua
frustração –,
nem
com
realizações de
ordem nenhuma. Joana se satisfaz
em
cuidar dos
filhos dos
outros,
em
viver
sua
vida
medíocre,
em
ser humilhada,
dar
amor
em
troca de
desprezo. Sofia e a
Cega contentam-se
em
ter uma à
outra.
Até a errância da
mãe de
Cristo, judia
fugitiva, aparece nessas
três
mulheres. Joana sai da
serra
bem
moça
para
trabalhar na
vila e segue sua vida errando de casa em casa, de
emprego em emprego e, mais tarde, atrás de Sofia. A cega e Sofia vagam por causa
do desamparo, da miséria:
(...) Foi com lágrimas que se arrancou à serra
para ir servir na vila (...) Até a serra a enjeitava! (AF, p.82)
Ninguém sabe a sua vida. Apareceram um dia na
serra, uma cega, extática, rota, a outra alta, magra, guiando-a, como expulsas
do mundo. Tinham decerto sofrido muito. (AF, p. 144)
Elas são a luz, o cuidado, o calor, fonte
inesgotável de energia e bons sentimentos para com o próximo, a esperança de uma
humanidade menos cruel e mais caridosa. Entretanto, são estéreis, inférteis,
resignadas, passivas, não sendo capazes de transpor a barreira do ideal:
Lá vem uma luzinha no monte! Tudo negro como a pez
e só aquela faúlha luta contra a ventania e a escuridão cerrada (...) só há na
sua alma um pensamento obstinado – a menina que ajudou a criar. (113)
Aperta-a nos braços, de encontro ao peito, mistura
as suas lágrimas com as de Sofia. Não se farta de sofrer. Tem assim andado pelo
mundo de aflição em aflição. (...) (AF, p.89)
O
povo daqueles
lugares,
como tornasse
a
primavera
sem
avistar as santas, foi
lá
acima e
só encontrou a
cabana
tosca, o
lume
apagado,
cinzas e uma
pouca de
terra revolvida...
Fez-se a
lenda. Começou
a rezar-se de
milagres (...)
afizeram-se a
vir
ajoelhar nas
aflições a
pedir às santas
que
lhes valessem.
(p. 145)
As
trajetórias dessas
mulheres iniciam-se de
formas
totalmente distintas e
vão, aos poucos, entrecruzando-se e convertendo-se
numa similar desgraça, apesar de desfechos distintos: “já se parecem. A desgraça
iguala” (AF,.90).
Percebe-se nessas
três uma
aproximação do
mito
cristão da
trindade (Pai,
Filho e
Espírito
Santo),
só
que numa
versão
feminina:
Mãe,
Filha e
Santa, ambas
mártires da
causa
humanitária de
redenção do
Homem.
Assim, as
figuras idealizadamente românticas de Joana, Sofia
e a
Cega remetem à simbologia da anima, aquela
essência
feminina residente no
inconsciente do
homem.
Enquanto o animus,
essência
masculina
belicosa e
destrutiva, rege o
mundo
capitalista pautado nas desigualdades
sociais, a anima,
face
atraente e unitiva dos
seres (CHEVALIER, 2001: 421.), é o
lado
feminino,
caridoso,
construtivo,
que
precisa
ser resgatado
para
salvar a
humanidade materialista,
cada
vez
mais
privada do “ser” e do “humano”
em
prol do
ter
desumano.
Reflexões
do eu-narrador e
Impressionismo
O
Impressionismo,
corrente
divergente do
Expressionismo e do
Naturalismo,
embora mantenha
temas do
Realismo, volta-se
mais
para a
estética e a
abstração,
não prioriza a
crítica
social e rejeita o
cunho
panfletário.
Retrata
situações urbanas e suburbanas (cidade
e
serra)
naturais, procurando
apreender a
iluminação, as
cores e as
particularidades daquele
instante
único
em
que a
ação está acontecendo:
Basta
que
outra
luz as ilumine
diferente daquela
em
que estamos habituados a vê-las (...) (AF, p. 23)
O impressionista quer capturar a imagem e sua
fragmentação luminosas num determinado momento, pois, passados minutos, já não
serão mais os mesmos. Entretanto, essa realidade captada passa pelo processo de
percepção do artista, tornando-se uma impressão dele sobre o objeto e gerando
figuras sem contornos definidos.
E no silêncio de cá para lá, a velha cresce como
um fantasma – a Candidinha parece o próprio sonho embrulhado num farrapo a
cismar, a rondar... (...) (AF, p.97)
Assim, elementos sensoriais e pictóricos em dados
momentos da narrativa se sobrepõem à cena em foco:
O
velho
tomba esvaído,
e
tal é a
dor
que
chega a
sentir-se o
embate do
desespero
(...) Há uma
sufocação
naquela
alma: a
princípio é o
nada –
como uma
árvore a
que cortassem
de
golpe todas as
suas raízes.
Um negrume
pior
que a
aflição (...)
(AF, p. 41)
E essas superposições de impressões consistem
predominantemente em reflexões do narrador, excursos dele sobre a matéria
narrada, seja esta personagem ou ambiente.
(...) Dia a dia se transforma e cresce. Como a
cobra, acabou a muda no silêncio: vai largar a pele. E isto aumentado pela
poeira de tanto sonho vão (...) (AF, p.90)
O fato é que o narrador focaliza a interioridade
do objeto analisado, usando para isso sua subjetividade e não sua razão. Assim,
são duas interioridades em jogo, a do narrador e a do objeto, misturadas no
excurso. Por isso, são altamente líricos, abusando de figuras de linguagem como
metáforas, comparações, personificações, entre outras.
(...) As palavras vêm às golfadas, arrancadas como
gritos de alguém a quem sucedeu desgraça. Traga-as a escuridão, arrasta-as a
lufada e assim se distanciam como os últimos roucos dum afogado. (94)
Não é a crítica social que predomina nestes
momentos de excurso, apesar de ela emergir em determinados momentos em meio ao
lirismo ou ao grotesco das cenas. Mas, o impulso de análise da existência humana
e seus dilemas que move o narrador em suas pausas para reflexão:
Há a desgraça e a dor. A dor, às vezes, salva:
passa como um cataclismo e redime; a desgraça não, a desgraça pega-se e transe.
A desgraça é uma treva condenada, onde a mão que
busca amparar-se só encontra o vácuo. Grita-se? Só a desgraça nos ouve. Dá um
frio característico, interior, de morte – o frio da desgraça (...) Quem mora com
a desgraça, dia a dia perde certa afeição individual: e daí vem que todos os
desgraçados se parecem. A catástrofe, às vezes, enrija, ao contrário da desgraça
que amolece (...) desgraça dá a resignação. (p.94)
Assim, cada momento capturado na narrativa é um
quadro único, uma tela que jamais poderá ser repintada. Tanto porque nenhum dos
seus eixos constitutivos se repetirá, como por ser impossível a mesma sincronia,
ou a mesma iluminação, ou a reincidência do ponto de vista do artista. Tudo é
relativo, como disse Einstein em 1905.
Conclusão
A
Farsa explora uma
gama de
recursos,
estilos,
temáticas e
áreas do
conhecimento
humano distintas, contrapondo e problematizando o
exterior e o
interior, as
existências e a
sociedade,
sistemas e
valores,
paradigmas e
comportamentos, o
outro e o
eu, o
espaço e o
tempo, a
vida e a
morte, a
espiritualidade e a
materialidade, a
sanidade e a
loucura, a
realidade e a
mentira, a
fantasia, o
sonho, o
delírio,
entre
muitos
outros
fatores.
Tanta
crítica e
tanta
reflexão,
entretanto,
não conduzem à
busca de transformação,
mas,
pelo
contrário,
para uma amargurada
sentença de
morte à
esperança e à
ação, decretada
pela
natureza corruptora e
destrutiva do
Homem.
O
sentimento
trágico e finissecular da
inutilidade do mover-se no
mundo perpassa a
construção de todas as
personagens. A
trilha de
vida traçada
por
cada
um vai se auto-invalidando
com o
tempo,
como
que numa
amarga
inversão dos
versos
que
Pessoa escreveria
mais
tarde: “Nada
vale a
pena se a
alma é
pequena”.[2]
O
espaço
social e as
formigas
que nele circulam lembram
cenas do
Apocalipse bíblico,
em
que
figuras pecadoras,
abomináveis e decadentes encaminham-se
para a
morte
inexorável e o
castigo infernal.
Após o
finito
desfrute
carnal, depara-se
com o
martírio
infinito,
quando uma
vida de
abstinência e
penitência conduziria ao
descanso e à
paz
eterna.
Para
tanto, o
paradigma exaltado de
comportamento é o
cristão,
enquanto
qualquer procedimento
que se distancie deste é execrado,
apesar de
ambos desaguarem no
nada
perene da
morte,
que anula
tanto
um
quanto
outro
perfil.
Desta
forma, o
que se louva e
prega,
sobretudo, é a
imobilidade,
que faz
com
que as
pessoas percam o
menos
possível. Seja
para o “Bem”, seja
para o “Mal”,
ou
ainda
para
ambos –
este
último
posicionamento
mais
em
conformidade
com a
natureza
humana –,
viver é
sempre
um
desperdício de
tempo e de
vigor,
já
que
não conduz a
nada. Se as
respostas
para a
existência
humana encontram-se
após a
extinção desta
mesma
existência,
então
viver é
um
despropósito
nulo e
ilógico.
A
preocupação de
focalizar o
pus
social,
sem
esquecer do
caos
interior,
que serviria de
inspiração
tanto
para Neo-Realistas,
quanto
para
Existencialistas, demonstra a
tentativa de uma focalização
integral do
Homem e
seus
problemas,
matéria de
trabalho da
literatura. Se o
ser
humano é
composto de
matéria e
essência, de
social e de
psicológico,
então
não há
sentido
tentar
sempre
isolar e
negar
um destes
setores
em
favor do
outro,
pois
assim
sempre se estará sendo
parcial e fragmentado.
Assim, até pela vasta abrangência da obra, muitos
são os elementos estilísticos e temáticas encontrados em A Farsa que
permanecerão no Modernismo. Mas não acabam aí as inovações embrionadas por Raul
Brandão, alguns traços já localizados em sua narrativa voltarão a aparecer até
no Pós-Modernismo – com um amadurecimento maior, é lógico –, como a superposição
de tempos, a fragmentação e a mescla do foco narrativo, que serão uma constante
entre as obras da última metade do século XX até a virada do milênio.
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