SUFIXOS FORMADORES DE PROFISSÕES EM PORTUGUÊS
-ISTA X -EIRO - UMA OPOSIÇÃO
Cláudia Assad Alvares (USP)
Introdução
agentivos em -ista x agentivos em -eiro
Comparem-se as palavras abaixo:
· Projetista - economista - jornalista - criminalista - anestesista - neurologista
·
Lancheiro - masseiro - borracheiro - verdureiro - lixeiro - jornaleiro - enxadeiroHá nos dois grupos um traço semântico comum: o traço que indica “ocupação”, “ofício”; note-se ainda a forte oposição existente entre os dois conjuntos de palavras. Este fato parece enquadrar-se no discurso de Miranda (1979); essa autora afirma que, em nossa cultura, as atividades consideradas de maior prestígio social seriam designadas pelos agentivos em -ista, ao passo que as ocupações menos favorecidas pelo prestígio sócio-cultural, ou até mesmo marginalizadas, seriam designadas pelos agentivos em -eiro. Miranda (1979) sugere a existência de uma distribuição complementar entre os dois grupos de agentivos denominais (por exemplo, dermatologista / peixeiro); esta estaria fundamentada no grau de formalidade expresso pelas duas regras. Nas palavras da autora (1979: 87): “Em termos mais absolutos, as regras x-ista e x-eiro resultariam, pois, como definidoras de status. Tudo isto resultaria do traço de formalidade que marca apenas um dos sufixos”.
Formações do tipo “manobrista” podem ser previstas no léxico; nas palavras de Miranda (1979:88):
Devemos observar, ainda que tal fato não interfira em nossa análise, que a distribuição aqui proposta entre os agentivos -ista e -eiro não corresponde sempre a uma verdade por inteiro, em termos de palavras existentes: há os engenheiros e os balconistas, em vez de *engenhistas e *balconeiros. O que nos interessa, no entanto, é que em termos de processo produtivo tal distribuição vem ocorrendo entre tais regras.
A forma “engenheiro” foge ao padrão geral dos agentivos em -eiro, mas no caso de “engenheiro”, a palavra sofreu um alargamento semântico, pois era utilizada anteriormente para designar os trabalhadores dos engenhos. E “balconista”? Ao lado dessa formação existem muitas outras que parecem contrariar o prestígio sócio-cultural atribuído pelo sufixo -ista; comparem-se as formações em -ista abaixo:
· Anatomista - patologista - cancerologista - cardiologista - dietista - endocrinologista - gastrenterologista - pneumonologista - ginecologista
·
Atacadista - motorista - postalista - calista - florista - pracista - varejistaNeste ponto, cabe uma pergunta: Será que a mesma regra que forma, por exemplo, “endocrinologista” forma também “florista”?
Para responder parte desta pergunta, podemos comparar o léxico a uma grande sacola de viagem que o falante nativo carrega consigo aonde quer que vá; esta sacola é uma perene receptora de palavras e, para cada palavra que entra nessa bolsa, há uma regra que subjaz a ela. Acontece que nem todas as regras são evidentes; muitas estão ali esperando ser descobertas; basta, pois, que saibamos enxergá-las.
Segundo Miranda (1979: 84):
Se traçássemos aqui uma escala de formalidade da linguagem em relação às regras referidas na seção anterior, teríamos o seguinte quadro: “em primeiro lugar, de caráter nitidamente formal, estariam os agentivos do tipo x-o (antropólogo); em seguida viria a regra formadora dos agentivos em -ista (neurologista), com grau menor de formalidade. Um terceiro lugar vai surgir ainda se tomamos uma nova regra formadora de agentivos denominais - trata-se da regra de adição do sufixo -eiro, de caráter nitidamente informal.
Ressalte-se que os agentivos do tipo x-o concorrem com os agentivos em -ista: em biólogo / biologista, por exemplo, o falante se utiliza muito mais da primeira, em detrimento da segunda.
Quanto ao caráter informal do sufixo -eiro, há que se notar que o elemento formativo -ariu -, que integrava os nomes em latim clássico, em geral, alterou-se em -eiro ao passar para o português, na época da constituição deste idioma. Talvez esse processo de popularização do sufixo tenha contribuído para o caráter informal da regra que o adiciona aos nomes.
Traços semânticos dos agentivos
Observe-se agora o seguinte grupo de profissões:
·
Lingüista - psicolingüista - foneticista - semanticista - latinista - bacteriologista - oftalmologista - ortopedista - otorrinolaringologista - radiologista - sanitaristaAlém do traço “ocupação”, “ofício”, as palavras têm em comum o traço semântico [+ especialidade], bem como o elevado status social. Não obstante o número de formações em -ista que contrariam o padrão geral de seu grupo (por exemplo, ascensorista), uma quantidade substancial de formações ratifica este padrão. Se queremos correlacionar grau de formalidade e status social, não podemos perder de vista os estudos de Miranda (1979) a esse respeito; essa autora postula dois processos morfológicos distintos para a formação dos agentivos em -ista.
Segundo Miranda (1979: 69),
(...) Em A as formas de base das categorias adjetivo e nome [- concreto], [- comum], após operação de acréscimo do sufixo, vão ter como saída as categorias sintáticas de Nome ou Adjetivo, com o sentido geral de ‘partidário de x-ismo’, onde X corresponde ao sentido da base, mas numa acepção de ‘conceito’, ‘teoria’, etc.
Os agentivos em B, por outro lado, têm como forma de base e output sintático a categoria Nome e traduzem o sentido aproximado de ‘especialista em X’. Os nomes de base são marcados pelos traços: (A) [+ concreto] ou (B) [[- concreto] ^ [ + especialidade]].
Podemos depreender do grupo A o paradigma x-ismo / x-ista, o que equivale a dizer que para uma formação em x-ismo (budismo), há uma forma previsível em x-ista (budista) e vice-versa. Vejamos o que diz Said Ali (1964:243-244) a respeito dos sufixos -ismo e -ista:
-ismo: (...) serve este elemento formativo sobretudo para dar nome a doutrinas religiosas, filosóficas, políticas, artísticas: (...) politeísmo, budismo, (...), etc.; -ista: (...) a sua primeira aplicação foi aos partidários das doutrinas e sistemas acima referidos. Este mesmo uso perdura ainda hoje para a maioria dos nomes em -ismo de formação moderna: (...) budista, darwinista, positivista, materialista (...), etc.
Agora registrem-se as palavras que integram o mesmo campo associativo de “doutrina” (Dicionário de sinônimos e Antônimos e Idéias Semelhantes, 1961: 165):
Crença: fé, credulidade, crédito, confiança, segurança, presunção, esperança, convicção. Persuasão: princípio, certeza, opinião, ponto de vista, concepção, impressão, conclusão. Doutrina: dogma, artigo de fé, normas, princípios, artigos, cânones, evangelho, profissão de fé, credo, confissão, propaganda, pregação, declaração, enunciação. Credibilidade: plausibilidade, probabilidade. Fidedigno: de confiança, digno de fé, crível, acreditado, satisfatório, insuspeito, confiante, certo, positivo, seguro, tanto quanto dois e dois são quatro, satisfeito, convencido, convicto. Crer: acreditar, aceitar, ter por certo, dar fé, pôr crédito, dar crédito, assumir que, presumir, considerar, confiar em, ter confiança.
Analisando as palavras supramencionadas, podemos perceber de pronto a força expressiva que há nelas. Note-se, inclusive, que se chamarmos “comunista” a um comunista, decerto ele não se sentirá ofendido (mesmo que o nosso tom de voz expresse rejeição à palavra), pois é fiel as suas idéias e ideologia, caso contrário, não se teria intitulado como tal. Repare-se que a carga de força expressiva que cada palavra deste campo associativo carrega é extraordinariamente positiva; acrescente-se a isto a significativa porção de conhecimento exigida daquele que adere a tal ou qual doutrina, para que o faça com a consciência que essa adesão implica. É muito estranho, por exemplo, um indivíduo que afirme categoricamente que é budista, e não saiba sequer quem foi Buda, ou até saiba, mas desconheça sua filosofia de vida, princípios e crenças. Além disso, para ser partidário de uma doutrina ou sistema, não é bastante simpatizar com este ou aquela; são necessários amplos conhecimentos e, porque não, um certo grau de intelectualidade ou inteligência? Afinal, muitas dessas doutrinas e sistemas são de extrema complexidade e exigem que o adepto seja dotado de grande capacidade de raciocínio, saiba problematizar a realidade que o cerca, questioná-la em seus alicerces e argumentar coerentemente a favor de sua ideologia.
Por todos esses motivos, não seria absurdo dizer que o prestígio sócio-cultural expresso pela grande maioria dos agentivos em -ista parece advir daí ou, pelo menos, ser reforçado por essas características que inferimos sobre o paradigma da relação x-ismo / x-ista. Note-se que, mesmo que postulássemos uma regra de neutralidade, como sugere a existência de manobrista / manobreiro, por exemplo, dificilmente apareceriam formações do tipo budeiro*, esquerdeiro*, comuneiro* etc., a menos que o falante queira atribuir a tais formas um sentido pejorativo, conforme atestam formações tais como sambeiro* (em lugar de sambista), noveleiro, flauteiro etc.; observe-se aí mais um uso do sufixo -eiro, qual seja o de atribuir um sentido pejorativo às formas, quando empregado em lugar de -ista.
Vejamos agora as formações “tenista” e “alpinista” (esta não está em nosso corpus); talvez possamos depreender daqui algumas considerações importantes. Miranda (1979) inclui a primeira forma no grupo B, dos agentivos em -ista, e ressalta, além do traço [+ concreto] da base, que, apesar de sua inserção no padrão geral de seu grupo (o que faz com que o sentido geral seja mantido), há nesta forma uma especificação de sentido, pois “tenista” não é o especialista em tênis, mas o que joga tênis. Por outro lado, o alpinista é aquele que pratica o alpinismo; pode-se notar de pronto aqui a relação x-ista / x-ismo. Não obstante, a forma “alpinista” não está inserta no paradigma subjacente aos agentivos do grupo A; note-se que “alpinismo” não é doutrina nem sistema político; portanto, a mesma regra que forma, por exemplo, “vanguardista” não forma “alpinista”. A menos que se descubra um poder ainda maior de generalização para as regras formadoras dos agentivos do grupo A, a forma “alpinista” deverá ser previsível em outro paradigma.
A formação “tenista” está inscrita no grupo B de agentivos denominais em -ista, pois o tênis, além de esporte, pode ser considerado uma profissão; há os tenistas profissionais que participam de torneios, inclusive internacionais, e recebem remuneração por isto; já a forma “alpinista” não sugere profissão, somente esporte ou “hobby”. Note-se, todavia, que para se praticar alpinismo, não é suficiente ter vontade de: há que se ter um instrutor; para isto, existem as escolas de alpinismo. Um fato curioso: o instrutor de alpinismo, que também é alpinista, é um profissional e tira seu sustento de sua profissão. Esse fato nos leva a seguinte indagação: deveríamos “dividir” em duas a forma “alpinista”? E se assim fosse, “alpinista-instrutor” poderia enquadrar-se no grupo B dos agentivos em -ista, mas e o “alpinista-aluno”? Ao par dessas questões, repare-se ainda a força expressiva da palavra “alpinista”; integram o mesmo campo associativo dessa formação palavras como “força” e “saúde”, pois uma pessoa franzina, de compleição delicada e saúde precária, dificilmente poderá escalar montanhas. Dessa forma, há um forte sentido positivo que reveste a palavra, em oposição à pejoratividade atribuída a certas formações pelo sufixo -eiro. Estas considerações inegavelmente reforçam a oposição existente entre os sufixos -ista e -eiro.
Miranda (1979), em sua análise dos agentivos do grupo B, afirma que os nomes de base são marcados por dois traços, a saber: [+ concreto] ou [[- concreto] ^ [+ especialidade]]; além disso, estes agentivos revelam o sentido geral de “especialista em x”. Essa leitura semântica de “especialista em x” merece algumas considerações; observem-se os grupos de agentivos abaixo:
· Oceanografista - contabilista - cientista - traumatologista - ortodontista
·
Foguista - maquinista - faturista - linotipista - copista - marmorista - eletricistaVeja-se agora a definição de “especialista”, segundo Aurélio B. de H. Ferreira (1986: 701): “(...) 1. Pessoa que se consagra com particular interesse e cuidado a certo estudo. 2. Pessoa que se dedica a um ramo de sua profissão. 3. Pessoa que tem habilidade ou prática especial em determinada coisa. (...)”.
Se tomarmos a acepção 3 da definição supra, poderemos tranqüilamente igualar os dois grupos de agentivos; esta acepção pode inclusive abarcar formas como “leiloeiro”, “toureiro”, “tintureiro” etc.; afinal, as profissões de leiloeiro, toureiro, tintureiro e muitas outras em -eiro, em diferentes graus, exigem habilidade e prática especial; imagine-se, por exemplo, um leiloeiro que não tivesse uma habilidade toda especial em lidar com o público e, por conseguinte, “vender o seu peixe”?
Mas a coisa não é tão simples assim; se compararmos os agentivos dos dois grupos acima, veremos que há um certo distanciamento entre eles, distanciamento este que se aprofundará se compararmos ambos os grupos com os dois que seguem:
· Carroceiro - leiteiro - lavadeira - cesteiro - boiadeiro - porteiro - vaqueiro
·
Ascensorista - florista - recepcionista - balconista - droguista - telefonista - calistaPara facilitar, vamos chamar de grupo 1 o encabeçado pela formação “oceanografista”, de grupo 2 o que se inicia pela formação “foguista”, de grupo 3 o das formações em -eiro e finalmente, de grupo 4 o que começa com a forma “ascensorista”.
O grupo 1 inscreve profissões que requerem, no mínimo, um curso universitário; incluam-se neste rol, entre outras, as especialidades médicas que, em sua esmagadora maioria, têm os agentivos correspondentes em -ista. Já os agentivos do grupo 2, além da enorme defasagem de status em relação ao grupo 1, não exigem curso universitário, necessitam, sim, de uma técnica que pode, ou não, ser adquirida por meio de um curso técnico. Dessa forma, comparando os grupos 1 e 2 de agentivos em -ista, não se pode negar a presença do traço [+ especialista], mas também há que se reconhecer a existência de graus de especialidade, fato este que, embora não interfira no sentido geral expresso pelos agentivos em -ista (do grupo B de Miranda), deveria ser formalizado. Note-se que isto sugere uma extensão da regra formadora desses agentivos, pois, efetivamente, há especificações de sentido reveladas por inúmeras formações, e não podemos fechar os olhos para elas.
O grupo 3, por seu turno, se quisermos falar em termos do traço [+ especialista], está bastante distanciado dos grupos 1 e 2; diria até que há um enorme abismo entre eles. De imediato, podemos notar que é inconteste a inexistência do traço [+especialista]; ao contrário, estas formações parecem revelar o traço [+ manual] e não será preciso dizer que, em termos de prestígio sócio-cultural, têm pouco ou nenhum. Ressalte-se que as formações “boiadeiro” e “vaqueiro” talvez sejam mais valorizadas nas áreas rurais se conjugadas, por exemplo, a “fazendeiro” (que, referentemente ao status, foge ao padrão geral de seu grupo).
Os agentivos listados no grupo 4 fogem completamente ao padrão geral estabelecido pelo grupo B de Miranda (1979), tanto em termos de status como em relação ao sentido geral de “especialista em x”.
Com base nas conclusões de Miranda (1979), Pauliukonis (1981) formula uma nova regra - a terceira - para a formação dos agentivos em -ista que abarca não só os do grupo 4, mas também vários outros. Esta regra foi assim formulada: certos nomes de profissões podem ser substantivos ou adjetivos predicativos, formados pelo acréscimo do sufixo -ista a uma base nominal, pertencente à classe mais ou menos concreta e mantêm o traço semântico de: “receptor, atendente, que trabalha com o público”. Após citar os exemplos pertinentes, a autora afirma ainda que são formadas também por esta regra “(...) de um modo geral, profissões que apresentam um traço de “performance” perante o público: artistas em geral, pugilistas, humoristas, equilibristas, malabaristas, trapezistas etc.”.
Tais profissões não possuem como marcante o traço “especialidade” e nem possibilitam a relação -ista / -ismo. Trata-se, todavia, de um padrão lexical bastante produtivo que registra a relação tranparência semântica / produtividade, pois o sentido é definido sem ambigüidade pelos falantes. Como vimos, não entram no esquema proposto pelas duas regras de Miranda (1979); concluímos então tratar-se de mais uma regra de formação de palavras, cuja análise estrutural indica que esses nomes em -ista são nomes de profissões com os traços de: “servir, receber pessoas, atender, falar para o público”.
Essa nova regra de formação de agentivos em -ista cobre um número significativo de formas que, de outro jeito, estariam a descoberto; esse fato é corroborado pela inegável produtividade do padrão lexical envolvido. Aqui, porém, há algumas considerações que podem ser depreendidas, à medida que examinamos algumas das formações do grupo 4 e outras já citadas pela autora, à luz desta nova regra.
Se analisarmos atentamente as formações do grupo 4, vamos perceber de imediato algo parecido com os graus de especialidade sugeridos ao compararmos os grupos 1 e 2; vejamos: os traços estabelecidos pela autora realmente procedem e, de posse deles, podemos condensá-los em um único traço, qual seja o “relacionamento com o público”; se considerarmos um grau maior de abstração depreendido desse traço, diremos pura e simplesmente que há uma relação com o público. E é justamente aí que está o ponto-chave, já que há formas e formas de se relacionar com o público; por outras palavras, há diferentes modos de relação com o público. Vamos comparar, por exemplo, o balconista com o ascensorista: o primeiro dirige-se ao público com muito mais freqüência do que o segundo; a forma de se dirigir também é completamente diferente, pois o trabalho do ascensorista é muito mais mecânico, aliás, é quase automático, tanto que seria o caso de questionarmos se este agentivo poderia realmente enquadrar-se nessa nova regra. Não obstante, se compararmos um elevador com ascensorista e outro sem este profissional, perceberemos que a regra realmente subjaz à formação desse agentivo; basta pensarmos que elevadores que têm ascensorista, principalmente os automáticos ou os não equipados adequadamente, oferecem uma segurança muito maior e, precisamente aí, podemos visualizar o já mencionado traço; portanto, há uma relação; diferente, mas há. Dessa forma, não é o elevador que oferece a segurança, mas a pessoa que está habilitada para manejá-lo, inclusive nas situações de emergência. Observe-se ainda que até a simpatia ou o humor alterado do balconista serão muito mais perceptíveis ao público do que estes mesmos comportamentos por parte do ascensorista. Esse fato igualmente decorre da forma diferente de se relacionar.
Por outro lado, os profissionais que trabalham no circo (malabaristas, trapezistas etc.), já mencionados pela autora, indiscutivelmente apresentam-se para o público, mas geralmente não se comunicam com este e, muitas vezes, até mesmo o “muito obrigado” resume-se a um movimento de cabeça. O comentarista e o radialista falam para pessoas que não vêem e não ouvem. No caso do radialista, se um ouvinte liga para a rádio, há um momento de comunicação bilateral, mas não é, por exemplo, como a telefonista que, na grande maioria das vezes, não vê, mas ouve todo o tempo aquele que necessita de seus serviços.
Por todas essas diferenças, talvez fosse interessante que as especificações semânticas de cada regra contivessem um número maior de traços. Vamos explicitar isto por meio da análise de mais um traço, qual seja o traço “manual”. Veja-se primeiramente a definição extraída do Aurélio (1986: 1084): “(...) 1. Relativo a mão: habilidade manual. 2. feito com as mãos: trabalho manual. 3. Que é manobrado ou acionado com as mãos: máquina manual. (...)”.
Se tomássemos a acepção 1 da definição supramencionada para representar o traço, muito possivelmente, teríamos problemas, pois o traço assim delimitado praticamente iguala um cirurgião-dentista a um sapateiro, por exemplo, pois ambos trabalham a maior parte do tempo (senão quase todo) com as mãos e mais: ambos necessitam de habilidade manual para os tipos de trabalho que executam; acrescente-se ainda que, de um modo geral, todos os tipos de profissão fazem uso das mãos em grau maior ou menor e também de formas diferentes. De posse desses dados, vamos observar um fato interessante; veja-se a lista de agentivos que segue:
·
Luveiro - confeiteiro - copeiro - doceiro - pasteleiro - salsicheiro - cozinheiro - chapeleiro - motorista - trapezista - malabarista - gasista - médico-legistaSe nos guiarmos pela acepção 1 da definição de “manual”, diremos sem medo de errar que todos os agentivos desta lista exibem esse traço e o médico-legista mais do que todos, pois seu trabalho exige grande habilidade manual. Dessa forma, um único traço praticamente iguala todos esses agentivos, que são formados por regras distintas entre si. Por outro lado, se elegermos um outro traço, por exemplo, “intelectual” e conjugarmos esse traço ao “manual”, teremos duas especificações semânticas para a mesma regra, fato este que além de não interferir no poder de generalização da regra, delimita mais precisamente as especificações semânticas de cada profissão, pois a presença desses dois traços juntos eliminará, um a um, todos os agentivos listados, à exceção de “médico-legista”, pois não podemos atribuir o traço “intelectual” aos demais agentivos da lista. Da mesma forma, se comparamos, por exemplo, endocrinologista / desenhista / taxidermista, o sentido geral de “especialista em x” está mantido, mas note-se aqui três gradações diferentes de especialidade; se elegermos os traços “curso universitário” e “curso técnico”, por exemplo, o endocrinologista teria como um de seus traços o de “curso universitário”; o desenhista poderia ter qualquer um dos dois e o taxidermista não teria nenhum desses (pelo menos, nunca ouvi falar em “curso técnico de taxidermia”).
Para esclarecer melhor o que está sendo sugerido, vamos comparar os traços “especialista” e “penetrável”. Há oposições que são graduais e é justamente esse tipo de oposição que vai nos interessar no momento. Não existe uma oposição binária entre os graus de penetrabilidade da matéria, ao contrário, há uma gradação que pode ser assim explicitada: [1p] = [1 penetrável], [2p] = [2 penetrável] e [3p] = [3 penetrável]; vejam-se os exemplos que seguem: com base nesta classificação, o oxigênio é [1p], o leite é [2p], uma caneta é [3p] e uma substância qualquer é [p], o que equivale a dizer que a substância não é necessariamente sólida, líquida ou gasosa. Temos, pois, três graus de penetrabilidade para a matéria. Agora, podemos retornar ao traço “especialista em x”; da mesma forma que o traço “penetrável”, há uma gradação no traço “especialista” para os agentivos em -ista formados pela regra da qual se depreende este traço como sentido geral para esses agentivos, conforme podemos perceber nos exemplos dados. Assim, hipoteticamente, poderíamos atribuir o grau 1 para “curso universitário” (= 1E) e 2 para “curso técnico” (= 2E); note-se que “E” = “Especialista”. Dessa forma, endocrinologista seria [1E], desenhista seria [E], ou seja, não necessariamente “curso universitário” ou “curso técnico” e para taxidermista teria que se criar uma outra especificação e atribuir um grau a esta que poderia ser, por exemplo, [3E]. Para os agentivos em -eiro teríamos [
$], que significa “ausência do traço”.Particularmente, com relação às profissões, temos um campo vasto e fecundo; o SENAI, por exemplo, é uma verdadeira “caixa de surpresas” para a descoberta de novos traços, pois oferece fartura de cursos profissionalizantes rápidos (duração de alguns meses); além disso, há programas preparatórios de mão-de-obra, de forma que muitos traços para os agentivos em -eiro poderiam ser assim descobertos. Para agentivos em -ista, traços do tipo “curso universitário com especialização”, “curso universitário sem especialização”, “curso técnico” (qualquer um com duração de cerca de 3 anos) seriam mais adequados. Para os agentivos em -eiro, traços do tipo “curso profissionalizante” (com duração de alguns meses), “preparatório de mão-de-obra” e “aprendizagem de campo” (no próprio emprego), igualmente, seriam mais apropriados; curiosamente, o sema hipotético “curso profissionalizante” poderia servir para alguns agentivos em -ista (taxidermista?). Desnecessário dizer que todos estes semas obedeceriam a uma escala de gradação, conforme sugerido anteriormente.
Vamos agora retornar ao traço “manual”, pois há um ponto importante a ser ressaltado: a definição operacional. As definições dicionarizadas nem sempre refletem a intuição dos falantes; Pauliukonis (1981: 8) afirma que os agentivos em -eiro designam “profissões ligadas a atividades manuais, braçais”; observe-se que esta caracterização contrasta com a acepção 1 da definição de “manual” extraída do Aurélio (1986). Se definíssemos o traço “manual” como “atividade braçal”, logicamente o cirurgião-dentista não mais teria este traço. Repare-se aí a importância de definirmos operacionalmente cada traço; por outras palavras, operacionalizar um traço significa defini-lo e delimitá-lo com a maior precisão que se possa alcançar (lembremo-nos de que estamos lidando com muitos traços subjetivos). O traço “manual” assim definido (atividade braçal) não pode ser conjugado ao traço “intelectual” e, com isto, retornamos à nossa velha e conhecida oposição “-ista x -eiro”. Vejamos o que nos diz Miranda (1979: 88) a respeito das paráfrases para cada um destes sufixos:
Existe uma outra possibilidade de análise para tais regras: seria a de atribuir a -ista uma agentividade [+ intelectual] e a -eiro uma agentividade [- intelectual], ou seja, enquanto as formas em -ista seriam cobertas pela paráfrase “especialista em x”, a paráfrase para as formas em -eiro teria que ser algo como “que faz algo em relação a x”.
Vejam-se os pares abaixo:
·
Vidracista / vidraceiro; florista / floreiro; manobrista / manobreiro; cartazista / cartazeiro; marmorista / marmorário; fazendista / fazendeiroNestes pares, não basta dizer que temos estruturas lexicais compostas de base + afixo; também não podemos afirmar que há uma uniformidade de sentido em cada conjunto de agentivos somente porque cada conjunto é formado por um mesmo sufixo; ao contrário, há muitas diferenças aqui, muitas perguntas a serem feitas e poucas respostas. Em princípio, o único par que parece refletir a oposição -ista x -eiro é “cartazista / cartazeiro”. Os pares “manobrista / manobreiro” e “florista / floreiro” têm formas sinônimas (segundo o Aurélio, 1986), mas, não obstante, os agentivos do primeiro par parecem ser usados indistintamente, ao passo que no segundo par a norma consagrou somente o primeiro agentivo do par. E aí está a primeira pergunta sem resposta: a que se deve esse fato? Já o par “fazendista / fazendeiro” nos oferece duas formações que só têm em comum a base (e, mesmo assim, na forma, porque aqui temos “fazenda” em duas acepções distintas); por outras palavras, à exceção da forma da base, não há absolutamente nada em comum entre os dois agentivos do par; no entanto, estes designam duas ocupações de status, respectivamente, nas áreas urbana e rural. O par “mamorista / marmorário” revela agentivos dados como sinônimos pelo dicionário; apesar disso, não posso afirmar se estas formas são usadas indistintamente ou não; minha intuição de falante pouco ou nada me diz a esse respeito. Finalmente o par “vidracista / vidraceiro” mostra agentivos que designam ocupações distintas, mas que têm relação com o significado da base; um sema que poderia ser atribuído ao primeiro agentivo deste par seria [+ arte]; este poderia ser mais um traço para diversas ocupações; logicamente, dentro do que foi sugerido aqui, com relação a um maior número de especificações semânticas para cada regra.
Já havia sugerido anteriormente uma possível regra de neutralidade subjacente a certos agentivos para explicar o uso indistinto de certas formações que têm a mesma base, sufixos diferentes e são dadas como sinônimas; pergunto-me agora se a eufonia não seria também responsável (entre outros possíveis fatores) pela escolha de uma forma em detrimento de outra; a formação “floreiro”, embora dicionarizada, soa mal aos meus ouvidos (repare-se que este agentivo não foi consagrado pela norma); por outro lado, quando imagino “gaseiro”* em lugar de “gasista”, penso em “fabricante de gaze” (note-se que, em língua escrita, a forma teria que ser “gazeiro”*).
Observem-se os grupos abaixo:
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Peixista* / peixeiro ; balconeiro* / balconista; massageiro* / massagista; tinturista* / tintureiro; livrista* / livreiro; telefoneiro* / telefonista; engenhista*/ engenheiro; eletriceiro*/ eletricista; modeiro* / modista; cozinhista* / cozinheiro; cambeiro* / cambista; sapatista* / sapateiro; recepcioneiro* / recepcionista; barbista* / barbeiroOs agentivos marcados por um asterisco são formações estranhas aos nossos olhos e ouvidos; eu diria até mesmo que algumas delas parecem atribuir uma forte pejoratividade ao “profissional” supostamente designado. Parece-me que a eufonia, de certa forma, reflete o gosto do falante por tudo aquilo que é bom e belo para os seus sentidos. Talvez aí, tenhamos mais um caminho para nos enveredar nessas pesquisas.
Vamos agora retornar ao sufixo -eiro e sua extraordinária produtividade. Nas palavras de Said Ali (1964: 242):
Nem sempre se tira o nome de pessoa diretamente do nome do objeto ou objetos materiais em que se ocupa. Pode filiar-se também a nomes de ofícios em -aria, como marceneiro, serralheiro que se prendem aos vocábulos marcenaria, serralharia. Pode também ser um termo introduzido do estrangeiro, como joalheiro.
Esse trecho de Said Ali servirá de base para expressar meu pensamento. Vejamos; quando Miranda (1979) fala da relação paradigmática geral x-ista / x-ismo e dos agentivos em -ista que se incluem nesta relação, cita Basílio (1991: 74) e ressalta que essa autora, atenta aos diversos tipos de relação paradigmática, descreve esse tipo de relação lexical; esta descrição se dá do seguinte modo: “(b) [xy] ßà [xw]; (b) “Expressa a relação entre duas entradas lexicais formadas por duas RFPs. sistematicamente relacionadas”.
Miranda (1979:79), com base nessa descrição, afirma que dada uma forma em x-ista pode-se prever a forma correspondente em x-ismo e vice-versa. Afirma ainda que
(...) - o de verificar em que medida uma compreensão maior dos diferentes tipos de relações paradigmáticas do léxico poderia contribuir na análise dos fenômenos relativos à produtividade lexical.
(...) a relação paradigma / produtividade, sugerida por Basílio, aparece como um fator essencial na determinação da produtividade das regras morfológicas aqui descritas.
Os agentivos em -eiro têm base nominal e, entre suas formas, as que nos interessam têm sua produtividade marcada basicamente pelos traços [+ humano], [+ concreto] e [- formal]. Tomando por base estes agentivos e unindo às de Miranda as palavras de Said Ali, vamos chegar aos seguintes resultados:
(A) Nome do objeto > nome de pessoa: livro > livreiro; sapato > sapateiro; peixe > peixeiro; sorvete > sorveteiro... x > x-eiro
(B) Nome de pessoa < > nome de ofício: sapateiro < > sapataria; livreiro < > livraria; pasteleiro < > pastelaria; peixeiro < > peixaria; padeiro < > padaria; queijeiro < > queijaria; seleiro < > selaria; vidraceiro < > vidraçaria... x-eiro < > x-aria
Vamos agora analisar (A) e (B); (A) nos revela uma regra de formação de agentivos em -eiro: dada uma base nominal (livro), basta que adicionemos a ela o sufixo -eiro e está formado o agentivo que traduz o sentido geral “que faz algo em relação a x”; de (B) podemos depreender uma relação paradigmática geral do tipo x-eiro / x-aria; note-se que a entrada lexical x-aria traduz o sentido geral de “lugar onde se faz ou se vende x”. Os agentivos em -eiro listados em (B), entre outros, incluem-se nesta relação; além disso, dada uma forma em x-eiro (marceneiro) pode-se prever a forma correspondente em x-aria (marcenaria) e vice-versa. Observe-se que temos neste paradigma duas regras bastante produtivas, fato este que confirma as análises de Basílio a respeito da relação paradigma / produtividade. Deve-se notar, todavia, que muitas formações não se incluem neste paradigma; veja-se, por exemplo, “alfaiataria” / “alfaiate” (e não “alfaiateiro”*); além disso, há formações em -aria que não traduzem o sentido geral já mencionado (“portaria”, “engenharia”); estas sugerem que, independentemente da relação paradigmática x-eiro / x-aria, existe na língua uma (ou mais) regra que adiciona -aria a bases, sem que isto implique uma inserção no padrão de relação x-eiro / x-aria.
Considerações finais
Além do corpus deste trabalho (anexos 1 e 2), procurei ratificar o discurso de Miranda por meio de uma aplicação prática (anexo 3). Essa aplicação se deu por meio de uma pesquisa, em que a análise dos resultados só fez fortalecer minha convicção em relação às conclusões da autora. A pergunta 3, por exemplo, com formações relativamente desconhecidas, teve resultados praticamente unânimes: os falantes associaram preferencialmente o agentivo em -eiro ao “operário” e o agentivo em -ista ao “especialista”.
Não obstante os anexos 1, 2 e 3 corroborarem as conclusões de Miranda, o número de exceções (também previstas pela autora) foi bastante significativo. Ao longo do trabalho, as “fugas” aos padrões gerais estabelecidos foram inúmeras; parte delas pôde ser inscrita em uma terceira regra de formação para os agentivos em -ista; todavia, muitas ficaram a descoberto. Para estas, transcreveremos aqui as palavras de Camara Jr. (1970:17-18):
De qualquer maneira, a invariabilidade profunda, em meio de variabilidades superficiais, é inegável nas línguas. Nos termos do grande lingüista contemporâneo Roman Jakobson, “o princípio das invariantes nas variações” (Jakobson 1967, 185) é a chave de toda descrição lingüística. É ele que cria o conceito de “padrão” (ing. pattern), cuja depreensão numa língua dada é o objetivo central da gramática descritiva de tal língua. (...) isso não quer dizer que a gramática descritiva seja um bloco monopolítico. Há sempre exceções e elas têm de ser levadas em conta. Em toda a gramática, ao lado da “regularidade”, há as “irregularidades”.
Mas, antes de tudo, como já aqui ressaltamos, elas são fatos de superfície. Em profundidade elas obedecem a padrões particulares, que se coordenam com o padrão, ou regra geral, dito “regularidade”.
Acredito ter feito algumas contribuições por meio deste trabalho quando sugeri que as especificações semânticas de cada regra deveriam conter um número maior de traços, pois, como vimos, seu poder de generalização continuaria intacto e é inegável a existência de graus de especialidade, bem como de diferentes graus de relacionamento com o público (para a terceira regra de formação dos agentivos em -ista). Esse fato, conjugado à operacionalização de cada traço, estaria, desse modo, traduzindo uma maior adequação desses agentivos à realidade.
Se quisermos avançar passos na ciência, temos que ousar; por esse motivo, sugeri a existência de uma possível regra de neutralidade subjacente a certas formações (de mesma base, sufixos diferentes e dadas como sinônimas; exemplo: “manobrista / manobreiro”) para explicar seu uso indistinto. Os resultados de duas das perguntas do anexo 3 (questões 2 e 9) parecem insinuar-se nessa direção.
Do trabalho como um todo, depreende-se, finalmente, que os sufixos não são simplesmente “peças de encaixe” que se conectam e desconectam, aleatoriamente, a uma base. Ao contrário, obedecem a padrões lexicais bem definidos e estão inscritos em paradigmas e microparadigmas que asseguram sua produtividade. Esses paradigmas e microparadigmas são intuitivamente percebidos pelos falantes nativos, com relação ao padrão geral x-ista / x-ismo.
As regras formam as palavras; todavia, nem sempre o sufixo sozinho associado a uma base responde pelo conteúdo semântico atribuído à palavra formada: há que se ter em conta o conhecimento de mundo do falante, suas crenças e experiências.
Por todos esses motivos, as “peças de encaixe” integram um “quebra-cabeça” muito mais complexo do que as aparências sugerem e é por isso que precisamos ousar sempre se quisermos inovar neste campo.
Referências Bibliográficas
CAMARA Jr. J. M. Estrutura da Língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1970.
FERREIRA, A. B. de H. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986.
FLORENZANO, E. Dicionário de sinônimos e antônimos e idéias semelhantes. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1961.
MIRANDA, N. S. Agentivos deverbais e denominais: um estudo da produtividade lexical no português. Dissertação de Mestrado em Lingüística apresentada à UFRJ. 2º. Semestre de 1979.
OLIVEIRA, H. F. de. Traços semânticos. Apostila elaborada para o curso de Mestrado em Língua Portuguesa da UFRJ. 1º. Semestre de 1993.
PAULIUKONIS, M. A. L. A produtividade dos sufixos formadores dos nomes de profissões em português. Trabalho final apresentado à Prof. Margarida M. Basílio, no curso Teoria Lexical do Português. Rio de Janeiro: UFRJ, 1º. Semestre de 1981.
SAID ALI, M. Gramática secundária e gramática histórica da língua portuguesa. Brasília: UnB, 1964.