UM
BEIJO
DADO
MAIS
TARDE
(RE)LENDO E (RE)ESCREVENDO O
MUNDO
Eloísa
Porto Corrêa (UERJ)
Introdução
Um
beijo
dado
mais
tarde,
projeto
estético
revolucionário
e
ousado
de Maria Gabriela Llansol,
entre muitas outras
questões, problematiza e polemiza,
sem
intenções de
esgotar,
vários
conceitos relacionados ao
processo
comunicativo
entre os
seres,
como
língua e
linguagem,
texto e
contexto,
leitura e
escrita,
entre
outros.
O
primeiro
conceito
a
ser
problematizado é o da
própria
Língua,
em
seguida
e
em
conseqüência
dele, inúmeros
outros
conceitos
também
serão
questionados. A
língua
humana,
na
narrativa,
aos
poucos
é rebaixada de
seu
posto
hegemônico
de
sistema
de
linguagem
mais
completo
e
complexo,
revelando-se
falho,
arbitrário
e
incapaz
de
expressar
com
exatidão
as
necessidades
de
cada
falante.
Paralelamente a este fato, outras
linguagens não convencionais vão sendo experimentadas e se mostrando capazes de
exprimir mensagens com bastante propriedade, ainda que de cunho mais subjetivo,
estético ou plástico. De maneira que estas linguagens, ora desprestigiadas e
relegadas a um injusto segundo plano, revelam-se eficientes complementadoras e
aliadas da língua na dificílima e ingrata tarefa de expressar.
Assim, a língua deixa de ser um sistema tão
fechado, excludente e auto-suficiente para se abrir aos encantos e contribuições
que outras linguagens possam dar ao processo comunicativo. A parceria ora selada
entre língua e linguagens implica num enriquecimento e também numa fatal
amplificação do conceito de texto. Este deixará de se resumir a um conglomerado
de palavras, para ganhar outras imagens, outros sons, cheiros, gostos, etc...
Enfim, transforma-se o mundo num grande texto, cheio de mensagens em linguagens
várias, aguardando apenas para serem lidas.
(Re)ler
o
mundo
Na
obra de Maria Gabriela Llansol,
ler
não é
simplesmente
percorrer
com a
vista o
que está
escrito, proferindo
ou
não as
palavras,
mas conhecendo-as (FERREIRA,
1999, s.v.),
conforme define o
dicionário da
língua portuguesa
Novo Aurélio
Século XXI e
como se costuma
empregar o
termo na contemporaneidade.
Ler ganha uma abrangência
muito maior em Llansol, porque rompe com as fronteiras do papel e da linguagem
verbal, como se viu, para ganhar o mundo e explorar as infinitas linguagens
não-verbais com que este pode transmitir mensagens. Concepção que não se
restringe a Um beijo dado mais tarde, mas se observa em toda a sua obra,
como nos Apontamentos da Rua de Namur (ARN).
I ––––––––––– o
encontro
inesperado do
diverso é
assistir o
belo a
comunicar
com o
silêncio; a
fraccionar a
imagem nas
suas diversas
formas;
ajudá-las a
levantar o
véu
para
que se mostrem
mutuamente na
beleza
própria, e
fechar os
olhos
para
que se
não rompa
a
delicada
tela
desta
vida,
ou então falar.
Talvez assim:
Uma
cena
erótica
simples
em
que a
luz dos
pinheiros se
proteja
sobre a
Presença.
Tal uma
sensação de
pânico
posta à
raiz do
prazer
que
eu tenho
em
encontrá-la; e
em
ser
levada
por
ela desta
terra ––––––––––––
para uma
terra
não
queimada pelas
palavras;
(...)
porque sinto,
porque quero,
e
porque crio
em
linguagem,
ou
em
outro
sinal, o
pensamento do
fulgor
que
já estava
criado. (ARN,
p. 135)
A
necessidade
de
incluir,
ao
lado
da
língua
humana,
outras
linguagens
não-verbais,
torna
em
possível
expressão
(aguardando
para
ser
percebida)
tudo.
Desta
forma,
em
princípio,
o
mundo
é
texto
potencial
esperando
ser
decodificado
para
que
comunicações
se efetivem:
Esses
objetos
transpostos
agora
para o
nada
desconhecido,
eram
som, eram
obediência,
eram
certamente
potencialidades de
texto
vivo,
ultrapassada a
língua
morta
em
que sonhavam.
(UBDMT, p. 99)
Certamente,
nenhuma das
definições
trazidas
pelo
Novo
Aurélio
Século
XXI (FERREIRA,
1999, s.v.)
para
o
verbete
“texto”
é
capaz
de
abarcar
a
amplitude
de significação e de possibilidades
propostas
no
excerto
anterior
para
a
palavra:
Texto
(ês) [Do lat. textu, ‘tecido’]
S. m. 1-
conjunto
de
palavras,
frases
escritas
(...) 2-
obra
escrita
considerada na
sua
redação
original
(...) 3-
palavras
bíblicas
que
o
orador
sacro
cita (...) 4-
Página
ou
fragmento
de
obra
característica
de
um
autor
(...) 5-
Texto
manuscrito
ou
impresso
(...) 6-
qualquer
texto
destinado a
ser
dito
ou
lido
em
voz
alta
(...) 7-
excerto
de
língua
escrita
ou
falada
(...) 8-
Toda
e
qualquer
expressão,
ou
conjunto
de
expressões,
que
a
escrita
fixou (...) (Novo
Aurélio
Século
XXI, p. 1956)
A consideração de um universo muito maior
de textos em diferentes linguagens: visuais, olfativas, gustativas, táteis,
auditivas, implica a necessidade de aguçar os sentidos para recebê-las, vindas
de todas as direções:
2 --- Lá, onde estás, não ouves.
Lá,
onde estás,
só podes
ler
sinais
nos
meus
lábios. Presta
atenção.
Mesmo
os
mortos,
continuam a
viver.
Nestes
textos
que
te
estou a
ler,
soletrando,
deixo cair imagens.
Sim,
sim, podem
ler-se.
Não
te vou
dizer
quais,
ou
talvez,
lá
longe, acabe
por –––––– (UBDMT,
p. 101)
Essa
concepção,
que
transforma o
mundo
em
um
enorme
texto
ou
num
mosaico
contenedor de
infinitos
microtextos, acaba
por
dilatar
o
conceito
de
texto
e de
leitura,
como
também
fizera Paulo Freire (FREIRE, 1983: 25-41)
em
suas
reflexões
sobre
a
educação.
Ler
deixa
de se
restringir
à decodificação de
textos
escritos
em
linguagem
verbal,
para
ganhar
uma
dimensão
ilimitada de possibilidades. Torna-se,
pois,
possível
ler
um
objeto,
uma
casa,
uma
obra
de
arte
(como
um
quadro,
uma
música
ou
a
estátua
de
Ana
e Miriam) e
até
um
outro
ser
vivo,
como
um
cão
ou
uma
árvore,
por
exemplo:
Todos os
objetos, na
casa, devem
estar à
volta deste,
obedecer o
livro
aberto
nos
joelhos, e à
tranqüilidade
–
ainda
sem
escrita – da
criança
que os
lê. (UBDMT, p.
25)
Foi
então
que a
árvore,
partindo do
arvoredo,
veio à
minha
casa
falar
comigo,
ou seja,
pediu-me
que a
acolhesse
ininterruptamente
para
aprender a
ler; (...)
Ela viu, no
pinhal,
um
animal desta
casa
que está
doente.
Ela afirma
que
um
sopro de
vida é
leitura. (UBDMT,
p. 111-112)
Infausta pede
ao
velho
que
lhe encontre
uma
nota de
laranja
escondida nesta
sala; o
velho,
que é Aossê se
tivesse
vivido
até aos
noventa
anos, traz-lhe
um
gomo musical
do
seu
texto – uma
faixa
real de
poesia. (UBDMT,
p. 88)
Íamos
então
fazer
cópias da
noite, abrindo
a
porta da
sala de
jantar
onde se
encontravam os
quadros;
enquanto
ela contava,
eu levantava
os
olhos
para as
telas
que faziam
descer uma
noite
passiva das
paredes;
primeiramente
não víamos
nada ,
só
véus de
branco;
depois, o
que
ela dizia ia
seguindo o percurso de uma
imagem e,
elevando-se da
voz, ficava
representado
em
espaços
limitados na
parede. (UBDMT,
p. 104)
Essa leitura amplificada (dirigida a um
universo textual muito maior) beneficia tanto o “objeto lido” quanto o leitor ou
legente, ambos crescem e são iluminados pela luz do conhecimento, porque se
familiarizam, adquirem conhecimento ou ampliam-no:
–––––––– é
um
entardecer
singular
quando Miriam
e
Ana têm a
luz,
que as ilumina
apagada;
porque, ao
crepúsculo,
elas estão
sempre num
contexto de
claridade, lendo; (...) (UBDMT,
p. 82)
“Acende-lhe a
vela da
inteligência
louca”,
respondeu-me. Obedeci-lhe. E pus-me
com a
luz
apagada a
meio do
texto ––––––
que entrou na
claridade.
– “Quero lê-lo de
fim
para o
princípio.
Ajuda-me”. –
Sem
nada
ver, comecei a
encontrar-me
comigo
mesma,
levada
para os
confins do
quarto.
Ana beijou-me
a
face e
convidou-me a
sorrir: “Senta-te ao
Sol”, e
mandou-me
adormecer. (UBDMT, p.
86)
Entretanto, o conhecimento adquirido pelas
partes envolvidas no processo de leitura surge não como uma verdade única e
inquestionável, mas como maleável, plural, cumulativa e em processo de busca
contínua, infinita:
(...) Temia
lhe oferece o
e. (UBDMT, p. 94)
Vão
partir
para
outro
lugar do
meu entresser.
Dei-lhes
em
troca
gomos da
verdade e,
agora, as
imagens do
seu
suco
vesperal:
uma
verdade
móvel.
Se vier
mais
tarde
visitar-me, terá de
ser
outra,
porque os
objectos
que conheceu,
eu os despi
das
suas
artes de
assédio
fixo. (UBDMT,
p. 104)
Além de desestabilizar esse conhecimento
que sucede à leitura, valoriza o conhecimento de mundo que a precede e leva em
conta a fase (cognitiva, afetiva, histórica, etc...) em que se encontra o
leitor, respeitando-a e aproveitando-a ao máximo:
E principiou a ler:
“––––––––––––– é a
cegonha
que transporta
a
jarra no
seu
corpo;
porque há uma
jarra
com uma
cegonha
em
relevo; a
cegonha
anuncia
que há
telhados, e
chuva,
sobre a
cidade. Pára
sobre
telhados do
nosso
prédio e,
como
alguém vai
nascer
agora,
desprende a
jarra do
seu
peito ficando,
no
entanto,
gravada nela; a
jarra torna-se
preta, e
explode no
momento
em
que o
meu
pequeno
irmão
desaparece da
vida.
Reencontro-a
mais
tarde
sobre o
contador da
água e amo-a,
por
causa da
cegonha
imersa no
seu
vôo de
luto;
desde o
primeiro
instante, esta
jarra atraía o
meu
olhar e, no
escuro do
corredor,
mal se
distinguia.” (UBDMT, p. 65)
Para
tanto,
assimila e
abarca
a
emoção,
a
intuição
e a
imaginação
criadora, relegadas a
um
injusto
segundo
plano
(senão
rejeitadas)
por
aquela
concepção
esquemática e
tecnicista
de
leitura
amarrada à decodificação do
texto
verbal
escrito.
(...)
Sempre o
afecto
me pareceu o
caminho
que
me levaria ao
íntimo do
mundo
––––––––––
desejo,
inteligência,
corpo, (...) (ARN,
p. 135)
Além do
mais,
leituras realizadas no
passado (na
infância, na
adolescência, etc...)
para
fatos,
obras,
objetos
ou
seres
não
são desprezadas (diminuídas,
sobrepostas
ou
menosprezadas)
em
prol de
novas
leituras
mais amadurecidas.
Pelo
contrário, (re)leituras
ilimitadas podem
ser
feitas
em diversas
direções e
sentidos, somando-se
democrática e igualitariamente às
anteriores,
sem
que se bloqueie
em
hipótese
alguma as
novas (e
infinitas) possibilidades de (re)leituras
para o
mesmo “texto”,
“porque
Temia
lhe
oferece o e” (p. 94).
Com
tudo
isso, modifica-se
radicalmente a
postura do “ledor”,
tornado
em
ativo,
criativo,
irreprimível e
irrequieto legente,
bem
como amplia-se o
conceito de
leitura. Amplificação esta,
proposta
pela
obra Llansoliana,
que, na
verdade, consiste numa
retomada e
alargamento da
definição
etimológica da
palavra:
ler se dizia
em
latim legere,
que significava 'colher',
segundo Evanildo Bechara (www.redacao.com.br/id/05/artigo1.htm),
que veio sofrendo severo estreitamento com o passar dos tempos.
Assim,
tudo
comunica,
tudo
passa
mensagens,
o
meio
é
composto
de
textos
em
linguagens
simultaneamente
visuais,
auditivas, olfativas, táteis e gustativas: as
paisagens
(citadinas
ou
naturais)
e
cenas
(cotidianas
ou
não),
um
quadro,
uma
música,
o
canto
alegre
de
um
pássaro,
um
cão
triste,
uma
árvore
seca
clamam
para
serem
entendidos,
cuidados,
amados,
respeitados,
mas
nem
sempre
(ou
quase
nunca)
são
lidos. Ao
contrário
do
que
possa
parecer,
entretanto,
o
processo
de
leitura
é iluminador,
mas
interminável,
presenteia as
partes
com
o
conhecimento,
que
é mutável,
mas
tão
recompensador
que
se
torna
uma
eterna
busca
inquieta
para
o legente.
(Re)escrever
o
mundo
Da
mesma
forma
que
o
verbo
ler
ganha
uma amplificação de
sentido
na
obra
de Llansol, o
ato
de
escrever
também
não
se restringe à
conceituação
que
figura
no
dicionário:
Escrever. [Do lat.
scribere.] V. t. d. 1-
Representar
por
meio de
escrita (...)
2-
Redigir
ou
compor (obra
literária,
científica,
etc.) (...) 3- Exprimir-se
por
escrito (...)
4-
Descrever
ou
narrar
por
escrito (...)
5-
Lançar
multa (...) 6-
Inform.
Comunicar
ou
introduzir (informações)
em alguma
parte da
memória (...)
7-
gravar,
insculpir,
inscrever (...) (FERREIRA,
1999, s.v.)
Face à escrita exclusiva e
discriminatória humana-verbal que, como já foi dito, não se abre para outras
linguagens, para outros vivos, para minorias, para o mundo, só resta a esta
“escritora” (aqui se referindo à escritora ficcional, ou seja, a narradora que
escreve o livro e problematiza o processo de escrita), que se pretende
inclusiva, abrir a sua escrita e a si própria para novas possibilidades
lingüísticas e representativas.
A
rapariga
que temia a
impostura da
língua
ainda
não
tinha nascido,
mas na
sua
alma
em
branco
presenciou
aquele negror,
e achou-o
quase
igual à
escrita
habitual dos
homens. (...)
(UBDMT, p. 21)
Em Um beijo dado mais
tarde, assim, é possível escrever em (uma ou várias) linguagens gestuais,
visuais, auditivas, gustativas, olfativas... Linguagens estas muitas vezes
manuseadas pelo artista para criar obras de arte (plástica, musical, pictórica,
teatral, etc.). Entre estas linguagens, inclui-se a escrita verbal, como mais
uma das possibilidades, importantíssima para a narradora, é claro, visto que se
trata de seu material de trabalho, mas nunca tirana sobre as demais:
Para
que a
língua
não fosse
mais
impostora, criou
nos
objetos uma
máscara; faço deles
quimeras,
que
ninguém
sonha
que
palavras
são.(...) (UBDMT,
p. 18)
Isto porque a criança que
aprende a ler em todas as linguagens possíveis, paralelamente também vai
transferindo para a escrita as propriedades das outras linguagens, que se unem à
língua verbal:
Ela escreveu
sobre
quê, ao
desenhar
esses
gemidos
que se
acumulam
sobre as
páginas do
teu
bloco.
São
hordas,
errantes
que se movem
vinculados a uma
força
primitiva,
Témia,
chuva miudinha
de
pedra
com
projeção de
sombras
gigantes.
São
homens
inanimados,
privados do
mínimo
livre
arbítrio.
São
desenhos das
figuras da
natureza,
seu traçado
por
escrita
desenhada. A
imagem de
leitura
para
que se
encaminham
são a
sua
própria
morte. (UBDMT, p. 28)
A
escrita pode
ser concebida,
portanto,
como
escrita desenhada,
como
imagem de
leitura.
Assim,
para
quadros e
esculturas
já
não se
estranha
mais a
existência de
um
escritor, se
este for
entendido
como o
artesão de
tais
textos.
Também se
torna
possível o
tratamento de
um
banquete
como
um
texto,
em
que o
artista (Cozinheiro/a)
expressa
mensagens,
lidas/sentidas
pelos leitores-degustadores,
como ocorre
em Le Festin de Babete,
que
também é
um
texto
cinematográfico lido
pela narradora.
Sob esta
perspectiva,
quando Maria Adélia faz
em
casa uma
comida
ou uma
arrumação
ela
também está construindo/escrevendo
textos
que podem
passar
mensagens
para Temia, Felipe, etc....
Desta
maneira,
manusear uma
linguagem
para
gerar
um
texto,
ainda
que não-verbal, é
escrever.
Logo, essa
escrita amplificada pode
conceber inúmeras
formas não-convencionais de
texto,
como
um
gesto, uma
música,
um
jardim
ou
um
objeto.
É
preciso, no
entanto,
ressaltar
que o
discurso da narradora,
adulta portadora de uma
escrita
verbal recheada de
recursos
não
verbais –
como
linhas
retas,
lacunas,
quebras de
sintaxes, etc. –, é
construído
para
falar de uma
escrita,
em
que
verbal e não-verbal se misturam
nos
experimentos
lingüísticos da
criança Témia, da
rapariga
que temia a
impostura da
língua,
entre outras (versões
passadas da
própria narradora
ou
não).
A potencialidade dessa
escrita nem sempre verbal vai além da artesania de “textos em primeira mão” e,
curiosamente, passa também por uma espécie de reciclagem, de “reedição” de
textos, como nas obras de Andie Warol, que recontextualizava objetos do
quotidiano, tidos por muitos como insignificantes, transformando-os em arte.
––––––––––––– é a
cegonha
que transporta
a
jarra no
seu
corpo;
porque há uma
jarra
com uma
cegonha
em
relevo; a
cegonha
anuncia
que há
telhados, e
chuva,
sobre a
cidade. Pára
sobre
telhados do
nosso
prédio e,
como
alguém vai
nascer
agora,
desprende a
jarra do
seu
peito ficando,
no
entanto,
gravada nela; a
jarra torna-se
preta, e
explode no
momento
em
que o
meu
pequeno
irmão
desaparece da
vida.
Reencontro-a
mais
tarde
sobre o
contador da
água e amo-a,
por
causa da
cegonha
imersa no
seu
vôo de
luto;
desde o
primeiro
instante, esta
jarra atraía o
meu
olhar e, no
escuro do
corredor,
mal se
distinguia. (UBDMT, p. 65)
Da mesma forma que Andie,
Témia neutraliza o contexto em que se insere dado objeto - no caso a jarra – e,
ao recontextualizá-lo, transforma-o em um novo texto de segunda mão, ou seja,
ela não destrói outras possibilidades de leitura passadas e nem futuras, mas
escreve/inscreve/insculpe sobre o objeto uma nova possibilidade de leitura (com
base na sua realidade daquele momento). Assim, ao mesmo tempo em que lê o
objeto, escreve nele suas memórias.
A escrita na obra de Llansol,
portanto, aparece como a marca de uma leitura ou de leituras efetuadas, que não
eliminam novas possibilidades de leituras e ainda suscitam-nas, somando-se a
elas.
– Tive
desejos de
vir
murmurar
para a
cadeira de
leitura.
–
Com uma
voz
mais
baixa do
que
ler.
–
Com a
voz de
escrever – disse
talvez a
segunda
discípula.
Com
um
fio de
voz, e
um
dia de
crepúsculo, no
ódio e no
amor
que
sobe esta
escarpada
montanha,
eu
vos
uno
para
sempre.
(...) (UBDMT, p. 59)
Escrever consiste em
registrar leituras particulares de mundo (em papéis, objetos, paisagens, seres,
cenas, etc...), que suscitarão novas leituras e (re)leituras, em novos leitores
e em (re)leitores, que se ampliarão e multiplicarão em infinitas possibilidades.
Leitura e escrita não se dissociam e são um cruzamento de duas vias de mão
dupla, pois quem escreve está registrando leituras de mundo e quem lê está se
insculpindo no lido, escrevendo-se nele e marcando-o com as suas características
do momento, a cada leitura que faz.
Assim, há sempre a abertura,
palavra e movimento constante em todas as direções e atos do livro: a leitora
que se abre para o mundo, a escrita que se abre para qualquer novo leitor
inscrever-se (com suas novas leituras) sobre ela, os objetos que se abrem para
novos usos simbólicos, a casa que se abre para o exterior, tudo se dispõe, pulsa
e conduz ao caminho mais louvado da obra: o desconhecido. Abertura e
desconhecido são dois caminhos indissociáveis e atraentes na obra.
–
Ana – diz
Myriam -, vamos à
página
seguinte e
deixemos esta
aberta. Há,
numa
outra,
um
jovem
desconhecido
que
nos
espera. (...) (UBDMT, p.
59)
A abertura busca o
conhecimento do desconhecido, a convivência e a familiarização com ele, caminho
este que conduz à sua inclusão, outra palavra-chave na escrita de Llasol.
A inclusão, o acolhimento (a leitura) de todo o desconhecimento/desconhecido faz
com que a criança Témia leia insaciavelmente tudo quanto lhe passe pelos
sentidos. E é também essa busca de familiarização com o desconhecido, de
inclusão, de acolhimento, que faz com que a menina inscreva por toda a casa o
irmão, oportunizando a ele a vida, que lhe fôra negada. Uma vida móvel e
diferente, mas ainda assim uma afirmação (um sim) e não a corroboração do não.
Uma possibilidade afirmativa.
Escrever consiste no caminho
para uma positivação dos negativos. Ou seja, após a leitura/iluminação dos pólos
negativos, a escrita busca a transformação das experiências não-jubilosas em
conhecimento, em sabedoria, que as tornará júbilo e, por isso, positivas agora.
Assim, escrever não é simplesmente criar, mas transformar por/com/em amor:
(...) a
hora da
leitura, nas
grades da
janela
abraçada à
cabeça da
sua
própria
maturação, preparando o
ato de
amar
que
era o
ato de
escrever (...) (UBDMT, p.
95)
Enquanto o ato de ler se
apresenta como a possibilidade de criticar, de pensar o lado positivo e o
negativo do que se lê, escrever se mostra um ato mais do que transformador:
positivador. Ler é pensar, criticar, refletir. Escrever é agir, transformar,
positivar, insubmeter-se, a partir da reflexão.
Esta vontade insubmetível
de positivação inclusiva se inicia num micro-espaço, num micro-contexto que,
por mais insignificante e não-convencional que possa parecer, vai se tornar
hábito e vai se alastrar para níveis cada vez mais macros (da imaginação da
criança, para um objeto, para a casa, para o jardim,... ... para o livro, para o
mundo) até se espalhar pelo mundo, em forma de livro, que a narradora escreve.
Este potencial transformador
é a condição sine qua non para que o processo educativo seja completo,
segundo Paulo Freire:
Um dos
saberes
primeiros,
indispensáveis
a
quem está
chegando a
favelas
ou a
realidades
marcadas
pela
traição a
nosso
direito de
ser, pretende
que
sua
presença se vá tornando
convivência,
que
seu
estar no
contexto vá
virando
estar
com
ele, é o
saber do
futuro
como
problema e
não
como
inexorabilidade. É o
saber da
História
como
possibilidade e
não
como
determinação.
O
mundo
não é. O
mundo está
sendo.
Como
subjetividade
curiosa,
inteligente,
interferidora na
objetividade
com
que
dialeticamente
me relaciono,
meu
papel no
mundo
não é
só o de
quem constata
o
que ocorre,
mas
também o de
quem intervém
como
sujeito de
ocorrências.
Não sou
apenas
objeto da
História,
mas
seu
sujeito
igualmente.
(...) (Pedagogia
da
Autonomia, p.
85)
E para se chegar a este vigor
transformador foi muito importante, sem dúvida, que não se reprimissem na
criança (na adolescente, na mulher ou em qualquer outra fase: na pessoa) seus
potenciais e seus saberes outros particulares, por mais excêntricos que pudessem
parecer a um adulto ou a uma outra individualidade.
A
definição
etimológica –
segundo Bechara: 'gravar',
'fazer uma
incisão (www.redacao.com.br/id/05/artigo1.htm)
– é,
portanto,
mais abrangente do
que os
usos
atuais
que se fazem
para a
palavra e,
não coincidentemente, a
que
mais se aproxima da
escrita
proposta
em
Um
beijo
dado
mais
tarde.
Assim, como a língua que
renasce, renova-se na primeira página a partir da incisão sofrida, também a
escrita, que é/faz incisão, pode promover renascimentos: do irmão, dos seres, da
igualdade entre os vivos, do respeito às diferenças... de um outro mundo cada
vez melhor, mais justo, mais positivo.
Conclusão
A
castração da
língua na
primeira
página do
livro pode
suscitar
muitos
problemas,
dentre os
quais a
arbitrariedade da
língua e a
sua
incapacidade de
expressar
com
exatidão o
ser, a
tirania da
língua (e do
homem
que a concebeu e manipula)
para
com
outros
seres e
suas
linguagens,
bem
como a
tirania da
língua do
homem
para
com
outros
homens subalternizados,
entre tantas outras possibilidades. Desta
maneira, a
língua
erudita rebaixa a
coloquial. As
línguas
verbais rebaixam as
linguagens não-verbais. As
línguas humanas rebaixam as
linguagens da
Natureza. A
língua limita a
expressão do
ser. E
assim
por
diante, refletindo o
sistema de
dominação
que o
ser (des)humano impõe ao
planeta.
Estas
tristes
constatações, no
entanto,
não
são
apenas desencantadas
conclusões ao
final de uma
obra,
mas
pelo
contrário
são
motes,
inícios
ou
reinícios.
Conclusões
que geram férteis
reinícios e
não estéreis
finais.
Problemas
que buscam
soluções.
Soluções estas
que
serão
beijos
dados
mais
tarde nestes
problemas.
Beijos
que possibilitarão
beijos,
porque
todo
problema é uma
ruptura. O
início do
livro,
assim, é
um
reinício. O
fim de
um
ciclo,
que
não é
um encerramento,
mas o
início (abertura)
de uma
trajetória, de uma
busca de
saídas (aberturas)
e,
portanto, a
abertura de uma
abertura.
A abertura, portanto,
será um movimento perpetuado insistentemente durante toda a obra, na tentativa
de desatar todos os nós, dissipar mágoas, amenizar as marcas da tirania da
língua e do ser humano. Movimento este oposto à arrogância e à dominação tirana,
que fecha portas, cerceia seres e se encerra sobre si mesma. Assim,
gradativamente tudo se abre, tudo se amplifica. A Língua se abre a outras
linguagens. O leitor se abre para outros textos. A leitura se abre ao mundo. O
texto se abre e se amplia em possibilidades e em significado. O mestre se abre
aos ensinamentos do discípulo. O mestre se abre para sua eterna condição de
discípulo. O discípulo se abre para os ensinamentos do mundo. A escrita abre
novas possibilidades de leitura. O escritor se abre para novos recursos e
técnicas. O ser humano se abre aos outros seres, ao mundo e ao novo. A própria
abertura assim se abre em novas aberturas infinitas.
Sendo
assim, a
abertura se
mostra uma
eficiente
saída (ou o caminho
para achar a saída) para a positivação de todo e qualquer problema. Todas as
limitações podem ser remediadas e amenizadas pela abertura. Abertura que
acolhe e inclui ilimitadamente: seres, suas linguagens, idéias... o novo e o
velho, enfim tudo. Abertura que impede apenas uma coisa: o fechamento. Através
da abertura nenhum processo se fecha nunca, mas transforma-se num contínuo rumo
ao infinito do sempre.
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