UM
CONFRONTO
ENTRE
DUAS
VARIEDADES
DO
LATIM
FALADO
O SERMO PLEBEIUS
VERSUS
SERMO
URBANUS
Maria Cristina da S. Martins
(USP)
INTRODUÇÃO
Este
artigo tem
como
objetivo
comparar duas
variedades da
língua
latina
falada: o sermo plebeius e o sermo
urbanus.
O sermo
plebeius é tradicionalmente
conhecido
como
latim
vulgar.
Este
latim pertencia a uma
população
que
era
muito
pouco
ou
quase
nada escolarizada, e
por
isso
mostra
um
conjunto de
inovações
gramaticais
que
não seguem as
normas do
latim
literário (clássico).
O
latim
vulgar
não sucede ao
clássico; teve
origem
nos
meios
plebeus de Roma e
cercanias, sendo
essencialmente,
como afirma Maurer Jr. (1959: 5), “o
latim
falado
pela
plebe
romana,
embora
muito de
seus
característicos se infiltrassem no
seio da
classe
média e
até das
classes
mais
altas,
sobretudo na
época imperial.”
O sermo urbanus,
também
conhecido
como
sermo quotidianus,
era
a
língua
falada
pela
aristocracia
de Roma,
cuja
forma
escrita
constitui o
latim
literário,
ou
clássico.
Esse
era
o
latim
da
alta
sociedade
de Roma, detentora do
poder
e interessada
em
resguardar
os
costumes,
o
patrimônio
cultural e as
tradições.
Segue-se daí o
interesse
dessa
classe
em
conservar
uma
linguagem
mais
pura
e
correta.
A
língua
falada é
difícil de
ser extraída e
seguida
em
seu
conjunto.
Suas primeiras
manifestações podem
ser
vistas nas
comédias de Plauto e
em De Agri
Cultura,
de Catão. Encontramos algumas
indicações da
língua
falada, representante do sermo urbanus,
através das
obras
que admitem
certa
liberdade de
expressão,
como as
correspondências de
Cícero.
Um
conhecimento
mais
direto do
latim
que deveria
ser
falado
pela
grande
massa da
população do
Império
Romano,
nos é
dado
pelos
escritos de
pessoas
humildes,
muito
pouco escolarizadas,
em
cujos
escritos praticamente
não há
influência da
língua
literária.
Diferenças
entre o sermo plebeius e o sermo urbanus
estão
presentes na
pronúncia, no
vocabulário, na
sintaxe, e na
morfologia. A
distância
que separava o
latim
vulgar do
latim
culto
era a
princípio
pequena,
mas
já podia
ser
vista a
partir
do séc. IV a.C. O
vocabulário
era,
em boa
parte o
mesmo,
sobretudo o
que servia
para o
uso da
vida
cotidiana:
coisas,
animais,
plantas, etc. O
latim
vulgar
nunca se isolou
completamente da
língua
literária,
pois
sempre houve
um
convívio
constante
entre todas as
classes,
através do
teatro, às
vezes
pela
escola e,
mais
tarde,
pela
Igreja.
Portanto, existiu
sempre uma
contribuição limitada,
porém
contínua, da
língua
clássica
para a
popular. No
período
áureo
da
literatura
latina
(da
metade do séc. Iº a.C. à
morte de
Augusto (14 d.C.)),
havia
um
uso
comum
a
que
os
escritores
se submetiam. Nesse
momento,
o sermo litterarius e o sermo urbanus diferiam
muito
pouco.
Só
depois
do
período
áureo
da
história
de Roma,
quando
se constitui
um
ambiente
escolar
e
literário
relativamente
independente
da
língua
coloquial
comum
(porque
houve uma
época
em
que
o
bom
latim
se aprendia
em
casa,
conforme
o
testemunho
de
Cícero
e Quintiliano) é
que
as
inovações
da
língua
escrita
nem
sempre
correspondem ao
uso
corrente
da
língua
falada.
Ou
seja, o sermo urbanus deu
origem
à
língua
clássica,
que
se criou
sobre
um
latim
vivo
e
falado,
de
flexão
abundante,
embora
seja
menos
polido
e estilizado do
que
este.
Conforme
enfatiza Maurer Jr
constantemente
em
seu
livro
O
problema
do
latim
vulgar,
havia duas
correntes
da
língua
falada
latina,
desde
uma
época
bastante
antiga:
uma aristocrática,
que
vai
gerar
a
língua
literária,
especialmente
em
sua
forma
clássica,
tornando-se o
instrumento
lingüístico
da
civilização
romana;
e
outra
obscura
e desprezada
por
séculos,
mas
exuberante
e
expressiva,
que
dará
origem
a
novas
línguas,
que
igualmente
tornar-se-ão ricas e cultas.
O
latim
urbano
e
culto
transformou-se
lentamente
durante
os
séculos
que
medeiam
entre
a
época
de
Cícero,
e a de
São
Jerônimo e
Santo
Agostinho. Várias foram as
razões
para
isto,
desde
a
ruína
da
aristocracia,
que
se esforçava
por
manter
a
cultura
literária
e
escolar,
mas
também
o
aniquilamento
dos
centros
urbanos.
Quando,
no
fim
do
Império
Romano,
o
latim
culto
refugiou-se
nos
mosteiros,
perdeu
contato
com
a
sociedade,
tornando-se uma
língua
escolar,
cristalizada, praticamente
morta.
Efetivamente,
a
língua
literária
continuou no sermo ecclesiasticus e
também
no sermo profanus, e o sermo urbanus desapareceu no séc. VI. O
que
continuou
vivo
foi a rustica
romana
lingua,
o
latim
pobre
e
humilde
das
populações
campesinas.
Mesmo
quando
se
pensa
na
contribuição
do
latim
clássico
às
línguas
românicas, a
partir
do
século
X, destinado a
transformar
os
pobres
dialetos
românicos
em
ricas e
elegantes
línguas,
essa
contribuição
é
pequena,
porque
não
se
trata
de uma
herança
direta
e
contínua.
Todos
os
aspectos
gramaticais
das
línguas
românicas mostram
que
elas
são
a
continuação
direta
do
latim
popular
(sermo plebeius).
OS
TEXTOS E
SUAS
CARACTERÍSTICAS
Ao
invés de exemplificarmos as
características do sermo plebeius e do
sermo urbanus
com
exemplos isolados, decidimos
reproduzir
integralmente uma
carta de
cada
variedade. Acreditamos
que desta
forma é
possível
perceber a
língua
com
maior
clareza a
língua
como
um
todo.
A
primeira
carta, representante do sermo plebeius, é a
do
soldado tiberiano (CPL 254),
escrita
em
papiro,
do
início do
século II d.C., encontrada
em Karanis, no Egito. A
segunda
carta, representante do sermo urbanus , é de
Cícero, de 58 a.C.
A
tradução
que fazemos
das
cartas é
literal
tanto
quanto
possível.
Carta
de
um
soldado
tiberiano (CPL 254)
...dico
illi, da
mi,
dico, a(e)s paucum;
ibo,
dico, ad amicos patris mei.
Item
acu lentiaminaque
mi
mandavit; nullum assem
mi
dedit.
Ego
tamen inc ebinde collexi paucum aes ed ibi ad Varoclum et G(.)ivan et emi pauca
que
e(x)pedivi.
Si
aequm tempus esset se exiturum Alexandrie s(i)lui(t).
Item
non
mi
d(e)dit aes quam (quam) aureum matri mee in
vestimenta
(dedit). Hoc est, inquid, quod pater
tus
mi
mandavit. Quo tempus autem veni omnia praefuerunt et lana et (linum)? Matrem
meam aute praegnatam inveni. Nil poterat facere. De(i)nde pos paucos dies parit
et non poterat mihi succurrere.
Item
litem abuit Ptolomes pater
meu
sopera
vestimenta
mea, et factum est illi venire Alexandrie con tirones et
me
reliquid con matrem meam. Soli nihil poteramus facere, absentia (illius) illim
abit(u)ri. Mater mea (dicit): Spec(t)emus illum dum venit et ven(i)o tequm
Alexandrie et deduco
te
usque ad
nave.
Saturninus iam paratus erat exire illa die qu(a)ndo tam
magna
lites factam est. Dico illi: veni interpone
te
si
potes
aiutare Ptolemaeo patri meo. Non magis quravit
me
pro xylesphongium sed sum negotium et
circa
res
suas.
Attonitus exiendo dico illi: da m(i) paucum aes, ut possim venire con
rebus
meis
Alexandrie, im inpendiam. Negabit se (h)abiturum. Veni, dicet, Alexandrie et
dabo t(i)bi.
Ego
non abivi. Mater m(e)a no(n haben)s assem, vendedi(t) lentiamina (u)t veniam
Alexandrie.
...digo a
ele, dá-me,
digo,
um
pouco de
dinheiro; irei, digo, aos
amigos
de
meu
pai.
Da
mesma
forma
me mandou uma
agulha e
tecidos
de
linho, nenhuma
moeda
me deu.
Eu
finalmente
aqui e
ali reuni
um
pouco de
dinheiro e fui a Véroclo e
Givan, e comprei umas poucas
coisas
que
enviei. Se fizesse
tempo
bom,
ele
não
disse
que
iria
para
Alexandria.
Igualmente
não
me
deu
dinheiro
a
não
ser
uma
moeda
de
ouro
à
minha
mãe
para
as
roupas.
Isto é, diz
ela, o
que o
teu
pai
me mandou.
Nesse
tempo,
porém,
tudo
teve
preferência
tanto
a
lã
como
o
linho?
Encontrei a
minha
mãe grávida.
Nada
ela
podia
fazer.
Depois de
poucos
dias pariu e
não podia
me
auxiliar (socorrer).
Também
meu
pai, Ptolomeu,
teve uma
briga
a
respeito
de
minhas
roupas,
e aconteceu de
ele
vir a Alexandria
com
os
recrutas
e
me deixou
com a
minha
mãe.
Sozinhos
nada
podíamos
fazer,
havendo de
ter
a
ausência
dele dali.
Minha
mãe (diz):
esperemos
até
que
ele chegue
então, e vou
contigo
para Alexandria e
te levo
até o
navio.
Saturnino
já estava
pronto
para
sair naquele
dia
quando
aconteceu
tão
grande
briga.
Digo a
ele: vem,
interpõe-te, se podes
ajudar Ptolomeu,
meu
pai.
Não
mais
se preocupou
comigo,
como
algo
sem
importância,
mas
com
seus
negócios
e
suas
coisas.
Saindo
atônito
digo a
ele: dê-me
um
pouco de
dinheiro
para as
despesas,
para
que
eu possa
ir a Alexandria
com as
minhas
coisas. Negou
que
ele
até
haveria de
ter.
Vem, disse
ele, a
Alexandria e
te darei.
Eu
não fui.
Minha
mãe,
não tendo
dinheiro, vendeu
os
tecidos de
linho
para
que
eu
viesse a Alexandria.
Características da
carta
que contêm
vulgarismos
Como
já foi
visto, “latim
vulgar” é o
termo tradicionalmente usado
para se
referir ao
latim
que apresentava
características
que
não obedeciam às
regras da
gramática do
latim
clássico. Do
ponto de
vista
gramatical,
normalmente se compara o
latim
vulgar
com o
latim
clássico,
que é a
língua documentada e fixada
como a
língua
escrita
padrão de uma
época do
latim. Na
carta do
soldado tiberiano verificam-se as transformações
apontadas
para o
latim
vulgar
em todas as
áreas da
gramática.
Entre
outras
coisas,
na
fonética,
a redução de
ditongos
e
hiatos;
na
morfologia,
a
tendência
do
desaparecimento
do
neutro
e a redução dos
casos
e das
declinações;
na
sintaxe,
o
predomínio
da
ordem
direta,
da parataxe e o
aumento
no
uso
de
pronomes
e de
preposições;
no
léxico,
o
emprego
de
um
vocabulário
simples,
não-erudito.
Não se deve
esquecer, no
entanto, o
caráter
contraditório dos
textos
que contêm
vulgarismos:
formas corretas e erradas coexistem
lado a
lado,
em
todos
aspectos
gramaticais.
Mas, de
um
modo
geral, é
correto
caracterizar o
latim
vulgar,
em
relação ao
clássico (literário),
como: 1)
mais
simples
em todas as
áreas da
gramática; 2)
mais
analítico; 3)
mais
concreto; 4)
mais
expressivo; 5)
mais
permeável a
elementos
estrangeiros.
Uma das
características
marcantes do
latim
vulgar
em
contraposição ao
clássico é a
perda da
quantidade das
vogais.
Vários
testemunhos de
autores
antigos, e
sobretudo o
exame das
línguas românicas, levam à
conclusão de
que, no
latim
vulgar, às
diferenças de
duração das
vogais (breves e
longas) foram-se associando
diferenças de
abertura,
que acabaram, num
segundo
momento, suplantando as primeiras.
Dicet
(linha 15) é,
aparentemente, o
futuro do
indicativo,
mas, de
fato, é o
presente do
indicativo, dicit.
Isto demonstra a
confluência
do /e/
longo
e do /i/
breve
a /e/ fechado.
A
grafia de con (linhas
8 e 14) ao
invés de cum,
que
em
latim
clássico tem /u/
breve, é uma
comprovação da
confluência
do /u/
breve
e do /o/
longo
a /o/ fechado.
· Indistinção
entre /b/ e /v/; /m e
/n/
- /b/ e /v/
- /m/ e /n/
O
uso de im
por in (linha
15) é uma
evidência
em
favor de
que
esses
fonemas
não eram diferenciados
em
posição
final. De
fato, no
português de
hoje essa
distinção
não se realiza. Mattoso
Câmara Jr. propõe
para o
português
um arquifonema
nasal /N/
em
posição
final,
que seria
apenas a
nasalidade assimilada
pela
vogal
anterior.
·
Sonorização das
consoantes surdas intervocálicas
Como se sabe, a
tendência a
sonorizar as oclusivas surdas intervocálicas
não acontece
em
toda România, o
que determinou a
sua
cisão
em
dois
grandes
domínios
lingüísticos.
Três
critérios
lingüísticos,
especialmente
fonético e morfológicos, estabelecidos
por Matteo Bartoli, definem a România
Ocidental (abrangendo o rético
ocidental -valáder, puter, engadino, sobresselvano
-
central
ou dolomítico e friulano -, o sardo, o
francês, o
provençal, o
catalão, o
castelhano e o
português) e
Oriental (compreendendo o
romeno, dalmático e italiano).
Na
carta
do
soldado
tiberiano, temos uma
evidência
de
que
a
sonorização
das
consoantes
surdas intervocálicas
já
ocorria.
Isto
é demonstrado
pelo
uso
de /d/
pelo
/t/, na
grafia
da
conjunção
et
como
ed (linha
3). Depreende-se, nesta
ocorrência,
que
deveria
haver
junção
de ed + ibi (edibi), formando
um
só
vocábulo
fonético,
porque
assim
se pode
explicar
um
/t/ intervocálico sonorizado
em
/d/.
·
Preferência
por
formas
mais
sonoras,
mais
encorpadas
com
mais
conteúdo
fonético,
às
formas
pequenas,
inexpressivas: abivi (linha
23)
por
ibi
ou
ivi
·
o
uso
de factum est (carta
1,
linhas
13-4),
junto
ao
infinitivo
(factum est illi venire)
como
uma
construção
impessoal,
no
sentido
de “aconteceu”.
·
a
confusão
entre
os
casos
ablativo
e
acusativo,
como
se
vê
pelo
uso
da
preposição
cum regendo o
acusativo:
con matrem meam (carta
1,
linhas
14-5 ) (cf.
con
rebus
meis,
carta
1,
linha
23);
Na
carta do
soldado tiberiano
já é
possível
ver
claramente
que
em
latim
vulgar, a
ordem das
palavras se tornou
mais
fixa e
mais
próxima das
línguas românicas do
que do
latim
clássico:
(linhas
12-13)
Item
litem abuit Ptolomes pater
meu
sopera
vestimenta
mea, et factum est illi venire Alexandrie con tirones et
me
reliquid con matrem meam.
Também
meu
pai,
Ptolomeu, teve uma
briga
a
respeito
de
minhas
roupas,
e aconteceu de
ele
vir
a Alexandria
com
os
recrutas
e
me
deixou
com
a
minha
mãe.
·
Uso de
pronomes
pessoais,
sem
ênfase
nem
antítese, próprias do
latim
clássico:
(linha
2):
Ego tamen inc ebinde collexi
paucum aes “eu
finalmente
aqui e
ali reuni
um
pouco de
dinheiro”
(linha
16):
Ego non abivi “eu
não fui”
·
Surgimento do
pronome
pessoal de 3ª
pessoa,
baseado
em ille:
(linha
1) ... dico illi, da
mi, dico, a(e)s paucum “digo a
ele, dá-me, digo,
um
pouco de
dinheiro”
(linha
8) ... factum est illi venire Alexandrie “aconteceu a
ele (lhe)
vir a Alexandria”
(linha
10): Spec(t)emus illum dum venit “esperemos
até
que
ele chegue”
·
Indicativo
pelo
subjuntivo
No
período Dico illi: veni interpone
te
si
potes aiutare Ptolemaeo patri meo
(linha 9), caracteristicamente
vulgar e paratático, a
oração
si
potes aiutare é uma
condicional
potencial,
em
que a
condição e a
conseqüência
são indicadas
como
possíveis
ou
prováveis. A
oração
condicional
ou protase deveria
estar, à
maneira do
latim
clássico, no
presente do
subjuntivo e
não no
presente do
indicativo:
si possis aiutare Ptolomaeo patri
meo.
Evidentemente, deixamos de
mencionar muitas outras
características, próprias do
latim
vulgar,
que
também
são encontradas nesta
carta. No
entanto, esta
pequena
amostra
já
nos permite
vislumbrar
várias transformações pelas
quais
a
língua
vulgar
passou, e
que
depois
farão
parte
das
línguas
românicas.
O sermo urbanus de
Cícero:
Ad
Familiares
XIV,4 – 58 a.C[9].
Tullius s.(alutem
d.(icit) Terentiae et Ciceroni suis.
1.
Ego minus
saepe do ad uos litteras quam possum, propterea quod cum omnia mihi tempora sunt
misera, tum uero, cum aut scribo ad uos aut uestras lego, conficior lacrimis sic
ut ferre non possim. Quod utinam minus vitae cupidi fuissemus! Certe nihil aut
non multum in uita mali uidissemus. Quod
si
nos ad aliquam
alicuius commodi aliquando recuperandi spem
fortuna
reseruauit, minus est erratum a nobis; sic haec
mala
fixa sunt,
ego uero
te quam
primum, mea vita, cupio uidere et in tuo complexu emori, quoniam neque dii quos
tu castissime
coluisti, neque homines, quibus
ego semper
seruiui, nobis gratiam rettulerunt.
2.
Nos Brundisii
apud M.
Laenium Flaccum dies XIII fuimus, uirum optimum, qui periculum fortunarum et
capitis sui prae mea salute neglexit neque legis improbissimae poena deductus
est quo minus hospitii et amicitiae ius officiumque praesteret. Huic utinam
aliquando gratiam referre possimus! Habebimus quidem semper.
3. Brundisio profecti sumus a.d. II. K. Mai.;
per Macedoniam
Cyzicum petebamus. O
me perditum,
afflictum! Quid nunc rogem
te ut venias,
mulierem aegram et corpore et animo confectam? Non rogem? Sine
te igitur
sim? Opinor,
si agam:
si est spes
nostri reditus, eam confirmes et rem adiuues; sin, ut
ego metuo,
transactum est, quoquo
modo
potes ad
me fac uenias.
Vnum hoc scito:
si
te habebo, non
mihi uidebor plane perisse. Sed quid Tulliola mea fiet? Iam
id uos uidete;
mihi deest consilium. Sed certe, quoquo
modo se res
habebit, illius misellae et matrimonio et famae seruiendum est. Quid? Cicero
meus quid aget?
Iste uero sit in sinu semper et complexu meo. Non queo plura iam scribere;
impedit maeror.
Tu quid egeris
nescio; utrum aliquid teneas an, quod metuo, plane
sis spoliata.
4. Pisonem, ut scribis, spero fore semper nostrum.
De familia
liberata nihil est quod
te mouerat.
Primum tuis ita promissum est,
te facturam
esse ut
quisque esset meritus; est autem in officio adhuc Orpheus, praeterea magnopere
nemo; ceterorum seruorum ea
causa est ut,
si res a nobis
abisset, liberti nostri essent,
si obtinere
potuissent; sin ad
nos
pertinerent, seruirent praeterquam oppido pauci. Sed haec minora sunt.
5.
Tu quod
me hortaris ut
animo
sim
magno et spem
habeam recuperandae salutis,
id uelim sit
eius modi ut recte sperare possimus. Nunc miser
quando tuas
iam litteras accipiam?Quid ad
me perferet?
Quas
ego
exspectassem Brundisii,
si esset
licitum
per
nautas, qui
tempestatem praetermittere noluerunt. Quod reliquum est,
sustenta
te, mea
Terentia, ut
potes
honestissime. Viximus, floruimus; non uitium nostrum sed uirtus nostra
nos adflixit;
peccatum est nullum, nisi quod non
una animam cum
ornamentis amisimus. Sed
si hoc fuit
liberis nostris gratius
nos uiuere,
cetera, quamquam ferenda non sunt, feramus. Atque
ego, qui
te confirmo,
ipse
me non possum.
6. Clodium Philhetaerum, quod ualetudine
oculorum impediebatur, hominem fidelem, remisi. Sallustius officio uencit omnes.
Pescennius est perbeneuolus nobis;
quem semper
spero tui fore obseruantem. Sicca dixerat se mecum fore sed Brundisio discessit.
Cura, ut
potes, ut
ualeas et sic existimes,
me uehementius
tua miseria quam mea commoueri. Mea Terentia, fidissima atque optima uxor, et
mea karissima
filiola et spes reliqua nostra, Cicero, ualete. Pr. K. Mai. Brundisio.
Túlio
saúda os
seus
Cícero
e Terência
1.
Eu
vos envio
cartas
menos
freqüentemente
do
que posso,
porque todas
as
minhas
condições
são adversas,
mas
quando
vos escrevo
ou leio as
vossas (cartas),
sou atormentado pelas
lágrimas de
tal
modo
que
mal as posso
suportar. Oxalá fôssemos
menos
apaixonados
pela
vida!
Com
certeza na
vida
não
conheceríamos
nada
ou
não
muito do
mal.
Pois, se a
sorte quis
nos
guardar
para o
futuro alguma
esperança de
recuperar
um
dia
um
pouco de
felicidade,
teríamos errado
menos;
mas se os
meus
males
são
imutáveis,
eu quero
te
ver,
minha
vida, o
mais
rápido
possível e (acabar
de)
morrer
em
teus
braços,
pois
que
nem os
deuses,
que
tu veneraste
com
tanta
castidade,
nem os
homens, a
quem
eu
sempre servi,
nos mostraram
reconhecimento.
2. Ficamos 13
dias
em Bríndise,
na
casa de M.
Lênio Flaco,
um
homem
ótimo,
que
para
me
salvar, desprezou os
perigos
que ameaçavam
os
seus
bens e
sua
vida, e
que
não deixou de
cumprir o
dever
sagrado de
hospitalidade
e
amizade
devido a
sanções de uma
lei
perversa.
Oxalá possamos
um
dia
retribuir-lhe o
favor! Teremos
pelos
menos
sempre essa
expectativa.
3. Partimos de Bríndise
dia 30 de
abril;
dirigíamos-nos a Cízico,
através da
Macedônia. Ai
de
mim,
desorientado,
Que
aflição!
Por
que
razão
agora
te pediria
que viesses,
pobre
mulher
doente, enfraquecida de
corpo e de
espírito?
Eu
não pediria?
Ficar,
portanto,
sem a tua
presença?
Penso
em
que
condições
agirei:
caso haja
esperança de
nossa
volta,
que a
confirmes e encaminhes a
situação; se
ao
contrário,
como
eu temo,
não der
certo,
dê
um
jeito, de
toda
forma
que puderes,
de
vir
me
encontrar. Uma
coisa
eu sei: se
te tenho
perto de
mim,
não parecerei
completamente
perdido.
Mas o
que acontecerá
com
minha
Tuliazinha?
Vós é
que precisais
ver;
porque
eu sou
incapaz de
decisão.
Certamente,
porém, de
qualquer
modo
que a
situação se
configurar,
é
preciso
ajudar
tanto no
casamento
como no
bom
nome dessa
pobrezinha. O
que fará
meu
Cícero?
Que
este esteja
sempre no
meu
colo e
nos
meus
braços.
Já
não posso
mais
escrever; a
tristeza mo impede.
Não sei o
que
tu tens
feito, se
guardaste
algo
ou, o
que temo,
que tenhas
sido
completamente
espoliada.
4. Espero
que Pisão,
como escreves,
venha a
ser
sempre
nosso[15].
Quanto à
libertação dos
escravos,
não há de
que
te
inquietar.
Em
primeiro
lugar, os
teus receberam
a
promessa de
que
tu haverias de
tratá-los de
acordo
com os
méritos de
cada
um;
ora, e
só há Orfeu
que execute
seu
ofício,
fora
ele
ninguém.
Quanto aos
outros
escravos, o
caso é
que se fossem
vendidos
em
leilão,
eles se
tornariam
nossos
libertos, se
pudessem
aceitar; ao
contrário, se
pertencessem a
nós,
além de
tudo uns
poucos
serviriam à
cidade.
Mas estas
coisas
são
detalhes.
5.
Tu
que
me exortas a
que
eu tenha
disposição de
espírito
que tenha
esperança de
recuperar a
saúde,
desejo
que seja
assim,
que possamos
esperar de
verdade.
Mas
agora,
infeliz,
quando
receberei uma
carta tua? O
que
ela trará
até
mim?
Eu as teria
esperado
em Bríndise,
se fosse consentido
pelos
marinheiros,
mas
não quiseram
perder o
tempo
favorável. De
resto,
mantém-te,
minha
Terência,
como podes,
com
muita
dignidade.
Vivemos, brilhamos
não fomos
vítima do
nosso
vício,
mas da
nossa
virtude;
não houve
tropeço
cometido, a
não
ser
que tivéssemos
perdido a
vida,
juntamente
com
seus
ornamentos.
Se,
porém, foi
mais
grato a
nossos
filhos
nós vivermos
isso,
ainda
que sejam
coisas
não
suportáveis, toleremos.
Ora,
eu
te
conforto,
mas
não posso
fazê-lo
comigo
mesmo.
6. Enviei de
volta Clódio
Filetero,
um
homem
fiel,
mas o
estado de
saúde de
seus
olhos o
atrapalhava. Salústio sobrepuja
todos no
trabalho. Pescênio é
muito
amigo
nosso; espero
que há
ser da
mesma
forma
contigo. Sicca
disse
que ficaria
comigo,
porém
me deixou
em Bríndese.
Cuida-te,
tanto
quanto
possível, de
tua
saúde e crê
que
eu
me comovi
mais
com a tua
infelicidade
do
que
com a
minha.
Minha
Terência, a
melhor e
mais
fiel das
esposas, e
minha
querida
filhinha, e
Cícero, a
minha
última
esperança,
adeus.
Dia 30 de
abril, de
Bríndise.
A
carta de
Cícero dificilmente
nos revelaria
peculiaridades próprias do
latim
vulgar,
como as
que foram encontradas na
carta do
soldado tiberiano. O
que temos
em
Cícero é
um
estilo
simples e uma
ordem
mais
natural,
além de algumas
formas e
expressões de
caráter
familiar.
Em
geral, as
características do sermo urbanus,
que se opõem à
língua
literária, mostram a continuidade de uma
tendência
popular
muito
antiga.
Normalmente os
fenômenos
característicos de
língua
falada, acabam sendo
recorrentes e
assim aparecem
em diversas
fases da
língua.
Passemos
agora às
características desta
carta de
Cícero
que merecem
destaque.
Evidentemente,
alguns
aspectos
serão abordados,
sem
que se pretenda
esgotar o
assunto.
O sermo
urbanus
enquanto
língua
culta e
elegante possui
um
sistema flexional e
sintático
que se assemelha à
língua
clássica.
Porém,
enquanto a
língua
clássica restringiu o
emprego de
formas afetivas e expressivas, o sermo urbanus
permite-se empregá-las. Desta
forma, faz
uso de multiplicidade de
procedimentos,
que
visam a
dar
expressividade ao
texto.
Os
aspectos
da
oralidade
detectados
em
Cícero
estão
principalmente
na
sintaxe
e no
vocabulário.
No
vocabulário do
sermo urbanus aparecem
palavras
estrangeiras,
principalmente
gregas,
sempre
condenadas no
latim
clássico.
Usam-se
diminutivos,
prefixos
intensivos,
advérbios,
adjetivos
no
grau
superlativo e
interjeições.
Também empregam-se
mais
palavras da
vida
cotidiana do
que no
latim
literário e faz-se
um
uso
mais
extensivo de
pronomes
pessoais no
nominativo e de
possessivos.
São
exemplos do
que acabamos de
mencionar as
seguintes
ocorrências:
Karissima
(§ 6),
que,
ela
grafia
com
k, demonstra a
influência
grega.
Per é
um
prefixo
intensivo,
em
perbenevolus (linha
), usado
para
dar
mais
expressividade ao
texto.
Também
visam a
dar
mais
expressividade ao
texto,
o
emprego
de
advérbios
-plane,
adjetivos
no
grau
superlativo -, fidissima (§ 6,
linha 7) - e
interjeições,
como O - O
me perditum (§ 3,
linha 2), o afflictum! (§ 3,
linha 2). Aparecem
também
diminutivos –
misellae
(§ 3,
linha
10), Tulliola (§ 3,
linha
8), filiola (§ 6,
linha
8) e
possessivos
com
sentido
afetivo – Tulliola mea (§ 3,
linha 8), mea Terentia (§ 5,
linha 6).
É
também
uma
característica
do sermo urbanus
fazer
um
uso
mais
extensivo
de
pronomes
pessoais
e de
possessivos,
próprios
da
língua
falada,
que
deseja
ser
mais
direta,
concreta
e
expressiva.
Toda
morfologia
clássica,
tanto
nominal
quanto
verbal, se apresenta no sermo urbanus.
Isto é, o
sistema
em
grande
parte herdado do
indo-europeu,
apesar de algumas simplificações, conservou-se no
sermo urbanus,
devido à
consciência da
aristocracia de
que fosse preservado o
patrimônio cultural.
Não se observam
confusões
entre as
declinações e os
casos,
que denunciariam alterações
fonéticas,
como vimos
acontecer na
carta
com
vulgarismos.
Com
relação ao
verbo,
como
era de se
esperar,
como
língua
culta e
exuberante, observam-se todas as
nuances
que caracterizam
não
só os
diversos
tempos
verbais,
mas
também os
aspectos e os
modos. Há
um
uso
bastante
elevado da
morfologia
passiva e de
verbos
depoentes,
que o
latim
vulgar praticamente os desconhece.
São
exemplos: conficior (§ 1,
linha 2), uidebor (§ 3,
linha 4), medĭtor (§ 1,
linha 6), impediebatur (§ 6,
linha 1). As
formas verbo-nominais
como,
por
exemplo, recuperandi (linha
4), pertencem à
língua
culta (sermo urbanus e sermo litterarius),
mas
não ao
latim
vulgar (sermo plebeius).
Na
sintaxe, há
predominância do
verbo no
fim da
frase, se
bem
que o sermo urbanus (como
o sermo litterarius) seja uma
língua de
ordem
livre. Esta
predominância é uma
herança
antiga, pertencendo
também a outras
línguas do
ramo ítalo-céltico, ao
qual o
latim faz
parte,
como
também ao osco e o umbro. É
igualmente uma
característica
sintática do sermo urbanus, na
construção da
frase e do
período,
frases curtas,
sem o
intrincado
sistema de
orações encaixadas,
próprio do
latim
literário e
ainda a
ausência de
disjunções.
Isto pode
ser
visto
nos
seguintes
exemplos: (6º §)
Sallustius officio vencit omnes. (...) Sicca
dixerat se mecum fore sed Brundisio discessit. Salústio no
trabalho sobrepuja a
todos.
(...) Salústio sobrepuja
todos no
trabalho. (...) Sica disse
que
ele ficaria
comigo,
porém
em Bríndese
me deixou.
Repare-se
que o
trecho é de
fácil
tradução, e
que esta pode
ser
feita conservando a
mesma
ordem
que se apresenta no
original.
Todavia, neste
período, o
estilo
elegante e
gramaticalmente
correto do
latim
culto se observa
com o
emprego da
oração
substantiva
infinitiva,
que se constrói
com o
verbo no
infinitivo e o
sujeito no
caso
acusativo,
dependente do
verbo dicere: se mecum fore. Merece
destaque
igualmente o
emprego do
infinitivo
futuro - fore - do
verbo
esse. O
emprego das
formas
nominais dos
verbos
não
pertence à
língua
falada na
variedade
vulgar. O
que se
encontra deste
tipo de
construção nas
cartas
com
vulgarismos faz
parte do
que restou da
educação
escolar
que teve o
soldado tiberiano.
Como dissemos
mais
atrás,
quando falamos do
vocabulário, nas
cartas de
Cícero, observa-se a
tendência a ampliar-se o
uso do
pronome
pessoal
sujeito,
pelo
desejo de expressividade. Na
língua
clássica, o
uso de
pronomes
pessoais no
nominativo,
como se sabe,
tinha uma
característica enfática. Nesta
carta, transparece o
sentimento de
solidão de
Cícero,
que
talvez o
leve a
expressar a
sua
separação da
família
através dos
pronomes
pessoais.
Ego aparece 6
vezes
como
sujeito,
tu, 3
vezes,
vos, 1
vez. É
claro
que,
enquanto uma
língua
que permite a
omissão do
sujeito, o
pronome
pessoal, nesta
função,
não aparece
sempre.
Até
hoje a
maioria das
línguas românicas - sendo uma
notável
exceção o
francês - admite
que o
sujeito esteja
elíptico. A
interpretação do
pronome
ausente se dá
através do
sistema de
concordância
presente na
morfologia
verbal (pessoa e
número), e
pelo
universo discursivo.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Os
aspectos
característicos das
cartas do sermo plebeius e sermo urbanus
e os
pontos
que
aqui mostramos
são uma
pequena
amostra da
fonte
inesgotável representada
por
textos deste
tipo. A
partir de
tudo
que se apontou neste
artigo,
com a comparação dessas duas
variedades da
língua
latina
falada, pôde-se
perceber
que,
entre o
latim
plebeu e o
latim
elegante das
classes
altas, havia uma
cisão
profunda. Na
verdade, devemos
supor
que a
distância
era,
sem
dúvida,
ainda
maior do
que os
textos
escritos
nos permitem
entrever,
principalmente
com
relação ao
que deveria
ser
realmente
falado pelas
pessoas
que escreviam
textos
com
vulgarismos.
Já
entre o sermo urbanus e o sermo
litterarius, o
latim
clássico, a
diferença
não
era
tão
grande.
Simplesmente, o sermo urbanus
não apresenta os refinamentos e a estilização do
latim
literário.
Acreditamos
que se mostrou, de
um
modo
concreto, a
partir da comparação de
fatos
lingüísticos e
gramaticais,
que existiam duas
variedades de
língua
falada: uma
exuberante e
rica
gramaticalmente,
muito
semelhante ao
latim
clássico,
mas
que
não apresenta a estilização deste, e
outra
pobre
em
recursos
gramaticais,
mas
rica
em concretude,
em expressividade.
Do
ponto de
vista do
latim
vulgar, esperamos
ter contribuído
para
deixar
claro
que esta
era uma
língua
falada
por
pessoas
que
não dominavam a
variedade
culta,
por
isso,
além de
ser
mais
simples
em
todos os
níveis
gramaticais, observa-se o
caráter
contraditório de
suas
fontes,
onde
formas corretas e erradas coexistem.
Sobre o sermo urbanus, a
existência desta
variedade tem sido esquecida. O
que se
vê,
mais comumente, é o
ensino do
latim
clássico
como uma
língua
artificial,
oposta à
falada na
variedade plebéia.
Assim, cremos
que
também contribuímos
para
deixar
mais
evidente
que o
latim
clássico
não foi uma
criação de
gramáticos e
letrados, e
nem uma
imitação do
grego,
como tantas
vezes se
vê afirmado,
mas uma
língua
literária
que teve
como
modelo uma
língua
culta
falada.
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