UMA
VISÃO
TRÁGICA
NA
POESIA
RELIGIOSA
MEDIEVAL
Delia Cambeiro (UERJ)
Imaginário
medieval
e
lírica
religiosa
A
história
literária do
século XIII
apresenta uma
produção
bem
mais
numerosa do
que o
período
anterior,
além disso,
com o
surgimento das
ordens
mendicantes, a
vida
espiritual
também fez-se
mais
ativa. O
franciscanismo,
sem
dúvida,
incutindo
nos
espíritos o
sentimento de
fraternidade,
de
desprendimento
por
valores
materiais,
também
influenciaria
bastante a
consciência
leiga,
redimensionando
angústias,
dores,
inquietações,
alegrias
existenciais do
homem
medieval.
O
imaginário
cultural da
Idade
Média, impregnado
pelo
firme
desejo de
fé, de
esperança
religiosa na
vida
futura
plena de
felicidade,
pouco a
pouco,
propiciaria o aperfeiçoamento de
um
gênero de
capital
importância,
para a
sensibilidade
e a
expressão
cultural: a
lírica
religiosa.
Apesar de numerosas, as
produções
líricas religiosas demonstravam
rudimentar
técnica mimética.
Em
tais
composições se misturavam
imaginação do quotidiano e
configurações fantasiosas do
mundo
espiritual.
Tal
processo explica-se,
talvez,
por
esses
textos apresentarem
ainda
incipientes
técnicas
quanto ao
processo de transformação do
real.
Mesmo
que
não se evidencie a
efetiva
preocupação de manifestarem artisticamente o
mundo do
sagrado, deve-se
marcar
sua
importância
histórica,
por tratar-se
não
apenas de uma
literatura
edificante,
mas
já
um representativo
documento
em
língua “volgare”.
Bem
mais
diversa,
entretanto, é a
obra do
frade
franciscano Jacopone da Todi (1230-1306), uma das
criativas
personalidades das
origens da
literatura italiana.
A
lírica
religiosa
de Jacopone da Todi
Jacopone eternizou-se,
sem
dúvida,
como a
mais
importante
personalidade
poética das
origens.
Em
seu
perfil lírico-religioso,
já se delineava a
fisionomia de
poeta,
apesar de
alguns
vícios de
linguagem,
que, poucas
vezes, sugerem aos
leitores
modernos as mesmas
deficiências apontadas
por
críticos
em
obras
anteriores.
Suas
laudas,
não
só
pela
fecundidade,
mas
pela
técnica
melhor
desenvolvida, destacam-se daquelas compostas
pelos
que o antecederam.
Tem-se o
caso de
São Francisco de Assis,
por
exemplo,
que, tocado
pela
revelação
divina, criou
seu
extático e
único
documento de interessante colorido
dialetal, louvando o
Criador e as
Suas
criaturas.
Mesmo
que o
poema tenha deixado
marcas,
por
sua
atmosfera de
clara
reverência ao
Criador e à
criação,
sua
importância está
mais no
âmbito
religioso e cultural do
que artístico-literário.
Vários
outros
clérigos compuseram
poesias
simples, reveladoras do
sentimento
edificante do
tempo, plenas de
lendas,
visões do
outro
mundo,
persuasões cristãs,
rigoroso
ascetismo e
zelo de
religiosos, visando à
vocação
religiosa e à
formação
moral,
não ao
aprimoramento
artístico.
Apesar de
vários
religiosos constarem dos
anais da
lírica
religiosa italiana, na
qualidade
não de
renovadores
poetas, deve-se,
entretanto,
sublinhar terem
composto
documentos
escritos
em
língua
vulgar:
comportamento reivindicado
já
por Dante Alighieri e da
qual se valeu o
poeta Francesco Petrarca.
O interessante
perfil de Jacopone
sempre despertou no
leitor a
tentação de
relacionar
marcas
individuais e
temporais ao
caráter
universal e
atemporal de
sua
poesia. As
causas de
sua
dedicação à
lírica
religiosa vêm relatadas
com
registros de
cunho
histórico,
nos
manuais
literários. Dá-se, no
entanto,
que,
detalhes
pessoais,
apesar da
necessária neutralidade
crítica, suscitam
instigantes
analogias
entre
vida e à
vocação
obra. De
fato, o
vínculo
com o
mundo
particular é acentuado
pelo
fato de a
poesia desse
rebelde
não
revelar
preocupações
exclusivas de
ordem
religiosa,
mas
também
moral e
política.
A
mais comentada
passagem da
existência de Jacopone –
para
alguns,
quase uma
lenda – relata a
morte da
mulher,
entre os
destroços de
parte de uma
casa,
durante uma
festa
em
que se encontravam. A
reputação de
marido
aventureiro
não o impediu,
contudo, de
experimentar
profunda amargura, ao descobrirem
um
cilício,
sob as
vestes da
mulher.
Esse
fato, provavelmente
não
apenas uma
lenda, parece tenha convertido, de
verdade, o
então
advogado tudertino,
que se dedicou, a
partir daí,
com acentuado impenho, à
poesia, à
vida
religiosa e
moral.
Convém
assinalar,
ainda,
sua participação na
corrente dos
Espirituais
franciscanos, de
rígida
orientação, e
seu
comportamento de
oposição ao
Papa Bonifácio VIII,
que favorecia a
corrente dos Conventuais,
ou seja, os
franciscanos
mais
tolerantes.
Durante
sua
prisão, endereçou
aguda
sátira
contra
seu
oponente, chamando-o,
em uma de
suas
composições “Locifero novello”, “lengua di
blasfemia” e afirmando
que o
Sumo
Pontífice levava
vida
escandalosa,
como
qualquer
mortal. Ficou encarcerado de 1298 a 1303, sendo
libertado
pelo
Papa Benedetto
XI.
Medida
e
desmedida
na
lírica
de Jacopone da Todi
É
certo
que
sua
forte
personalidade
se refletiu
em
suas
laudas
com
intemperança
sentimental,
com
expressões
tantas
vezes
exacerbadas,
em
que chegava a
agradecer
ou a
desejar a
dor, a
fim de
ver sanados
seus
males. O
verbo
inflamado culminou na agressividade
expressiva de
algumas
composições,
nem todas
muito fáceis
de serem provadas
quanto à
autenticidade.
Seu
intenso
misticismo,
acrescido de inflamada
prédica,
geraram
também
verdadeiro
fascínio. A
unidade
artística da
obra de
Jacopne da Todi,
entretanto, se
manifesta, de
forma
irônica, na
desmedida
tanto do
pessimismo
como do
misticismo.
Suas
manifestações
de
excepcional
temperamento
de
poeta é
evidente,
mas,
tal
desmedida –
representada
por
excessiva
humildade,
fúria e “divina
pazzia” – enfraquece
em
alguns
momentos o
poder das
palavras,
freqüentemente
repetidas e,
portanto,
esvaziadas da
carga
semântica.
A
lírica de
tema
pessimista e
místico
são, de
fato, tocadas
por
tal
vício poético.
Nas primeiras, o
Eu
lírico
imprime,
em
geral, a
idéia de
humilhações e
destruição da
carne.
Já as de
tonalidade
mística
ficaram encharcadas de
excessivo
desejo de
ultrapassagem do
estado
físico e de
conseguir uma
difícil
união
total
com o
mundo do
divino.
Assim,
em
tais
laudas,
interferem
imprecisões
realistas e
idealistas,
sugerindo uma
certa
dificuldade de
cantar a
exaltação de
sua
alma
ansiosa de
sagrado,
frente às
vulgaridades e
às
tristezas
mundanas.
É de
consenso
geral a
visão
crítica de
que as
laudas
de
exaltação da
divindade encerram
maior
peso poético
do
que as de
recusa da
vida
material.
Marcantes
mostram-se aquelas plenas de
ardor, de verdadeira
embriaguês
mística,
pois foram trabalhadas
com
palavras ao
mesmo
tempo
vigorosas e ternas.
Com
certeza,
Jacopone é
melhor
poeta
quando
consegue
ultrapassar o
objetivo
único de
expressar-se
em
impalpável
abstração
mística,
ou
em
doloroso
realismo
pessimista.
Talvez
por
isso,
sua
poesia
Pianto de la Madonna de la passione del figlio Jesù Christo,
escrita
em
vulgar e
em
forma de
drama, misture
tons
pessimistas e
sentimentais,
sem atirar-se
a escatológicos
termos e
imagens.
Alguns
historiadores da
literatura italiana
discutem o
patrimônio
lírico
construído
por Jacopone,
afirmando pertencerem
suas
poesias
mais à
história
religiosa do
que à
história da
literatura. No
entanto,
especialistas
da
obra do
poeta
franciscano
afirmam
que
sua
lírica
já assinala,
já prenuncia
tematicamente a
ópera de Dante
Alighieri. A
defesa da
obra do
tudertino baseia-se no
fato de
que
também o
autor da
Commedia, opondo-se da
mesma
forma à
corrupção
humana e
tomado
pela
idéia da
perfeição
divina,
exprimiu
em
arte de
concepção
mais elaborada
e
incomparável,
os
mesmos
sentimentos
que moveram a
criação
poética
em Jacopone.
Breve
olhar
sobre
a
questão
dos
gêneros
Desde a
Antigüidade, os
gêneros
literários
provocam inúmeras
polêmicas
quanto ao
problema da
conceituação.
Platão é estimado
como sendo a
primeira
consciência a
despertar
para essa
questão,
entretanto, a
Poética,
de Aristóteles, formulou o
estudo dos
gêneros
refletindo
seus
pontos
formais e
conteudísticos.
Muitos
são os
juízos
dirigidos aos
critérios
aristotélicos
da
célebre
divisão
lírico,
épico e
dramático,
por
dificultar a classificação
de
certas
obras. Ao
longo dos
séculos,
inúmeras e rigorosas
discussões
tentaram a
revisão dos “modelos”
propostos
pelo filósofo,
entretanto, a
sua
Poética
continuou
texto
básico na
questão dos
gêneros.
No séc. XX Emil Staiger,
em
Conceitos
fundamentais
da
poética,
apesar de
não
interferir na
célebre
divisão tripartida, aborda
a
matéria
com
grande
inovação,
conceituando os
gêneros
substantiva
ou
adjetivamente.
Os
substantivos
lírica,
épica e
drama
são
classificações relativas à
forma;
já a
adjetivação
lírico,
épico e
dramático
busca uma
definição
quanto à
essência, ao
estilo da
obra.
Com a
perspectiva
filosófica da
linguagem de
E. Staiger formula-se
efetivamente a
possibilidade de o
texto
literário
participar de
um
gênero
por
sua
especificidade, de
outro
por
sua
atmosfera.
Durante a
leitura das
laudas de
Jacopone da Todi, percebe-se,
com
base
nos
conceitos
acima
sintetizados, a
existência de
sugestões
trágicas
em
parte da
lírica
religiosa do
rebelde
franciscano.
Tal é o
caso da
Ballata “De la contemplazione de la
morte ed
incinerazione contro la superbia”, pertencente ao
seu
Laudario.
Humana
experiência
do
trágico
na
lírica
de Jacopone da Todi
Para se
considerar
um
elemento
trágico nessa
Ballata,
ou
em
outro
texto
lírico, é
importante
compreender a
literatura
como uma
visão
aberta da
existência.
Tal
entendimento a
respeito do
fenômeno
literário
enriquece
ainda
mais a
investigação
sobre o
tema proposto
para
este
artigo.
Da
mesma
forma
que a
tradição
crítica situa
a
tragédia
como
derivação do
estilo
dramático,
também pode-se
refletir
sobre
alguns
acontecimentos
ou
certa
visão de
mundo e
denominá-los
trágicos,
sem
que
correspondam ao gênenro
específico.
Essa seria uma
forma de
tentar alcançarem-se
marcas
universais da
experiência e
do
autoconhecimento
humanos.
O
trágico,
em
verdade, evidencia
um
acontecimento
triste, uma
perda
irreparável,
uma
condição
irreversível.
O
termo
distingue e enobrece
situações
que expressam
uma
fundamental
contradição
entre os
mais
profundos
desejos de
plenitude do
ser
humano e o
universo
em
que
ele vive e é
derrotado. O
termo
tragikon,
portanto, é
passível de
ser aplicado
em
relação à
vida e
não
apenas à
literatura,
ou
melhor,
ser aplicado à
literatura
com uma
outra
relação.
Para o
campo
existencial,
trágico
sugere,
então,
um
desacordo
entre o
homem e o
mundo
previsto
expresso de
forma
dolorosa,
angústias
metafísicas a
respeito do
lugar do
homem no
universo e as
tensões daí
derivadas.
Compreendido dessa
maneira, o
trágico
não se
mostra
apenas
um
conceito
estético,
mas uma
categoria
metafísica,
capaz de
descrever
ou
insinuar
um
estado da
condição
humana.
Assim, o
horizonte de
interpretação
trágica
estende
seu
campo de
visão, vagando
do
estético
para o antropológico e
metafísico.
Seu
enfoque
torna-se
psicológico,
não define,
como se
vê, unicamente
o
gênero
literário,
mas a
essência da
condição
humana, tantas
vezes
implicada
em
contextos
catastróficos.
A Ballata
proposta neste
trabalho será comentada
sob essa
ótica.
Tal
poesia
alude à
desmedida
entre o
humano e o
divino
que se
espressa no
ódio do
Eu
lírico
pela
vida,
pela
vaidade,
pela
miséria de
homens
aviltados na
corrupção da
carne. Essa
condição gera
também
ambições
corruptas, sugerindo o
poema
um
memento
homo,
em
que se
encontram
temas e
imagens
típicas da
Idade
Média,
tais
como, o
triunfo da
Morte, apresentado de
forma
horrenda,
grotesca,
pela
atmosfera
sarcástica.
Com a
linguagem
utilizada
sob essa
ambiência, o
Eu poético
corta, destrói
qualquer
tentativa de
delicadeza
referente às
coisas
humanas, à
vida
terrena,
que, a
seus
olhos, revelam
o
pecado
irreparável,
mas
possível de
ser alcançado,
pelo
arrependimento
e
simplicidade
de
alma.
Na referida
lauda, o
Eu
lírico aponta
para uma
outra
dimensão da
existência,
afastada das
vulgaridades
mundanas,
princípio
gerador de
egoísmos e de
fantasias
que levam o
homem à
perdição. A
perda da
alma é
um dos
temores do
homem
medieval,
que deveria
pisar na
Terra
preocupado
em
ganhar e
não
perder
sua
vida
futura.
A
lauda se
desenvolve na
forma de
contraste
entre a
voz de
um
vivo –
ou seja, o
Eu
lírico –
dirigindo-se ao
morto. O
sarcasmo do
severo
interlocutor
poético se
choca
com o
tom
humilde e
resignado do
homem,
que,
mesmo
tardiamente,
encontrou a
verdade da
vida.
Já no
título do
poema, a
palavra
incinerazione significa
um
ato de
humildade,
em
que se esparge
uma
certa
quantidade de
cinzas
sobre a
cabeça.
A resignação, a
existência de
um
caminho
único de
salvação, o
resultado
irreparável e
irreversível,
quando
não observadas
essas
regras, formam
a amosfera
trágica
disseminada no
poema.
Deve-se
sublinhar a
linguagem
empregada
nessa
lauda,
reforçando a
semântica
trágica
relativa à
alma
que
não pode
mais salvar-se
pela
impossibilidade de
sair das
trevas do
mal e do
pecado,
portanto, a
extrema
tensão dessa
alma permanece
inconciliável.
Todos
esses
pontos
destacados
durante a
breve
leitura da
citada
lauda de
Jacopone da Todi e a
sintética
consideração
teórica a
que se
procedeu sugerem
que, de
fato, perpassa
em
sua
lírica uma
humana
experiência do
trágico. A
maneira
como
tal
experiência
foi
vivida e
expressa
em
versos
empresta
outro
significado à
obra desse
franciscano.
Sob
esse
prisma de
investigação,
certamente
ela se
desvela de
forma
diversa
para o
olhar
crítico de
especialistas
ou
apenas
para o de
simples
leitores
amantes da
arte, da
cultura e da
literatura da
Idade
Média, nesse robótico
século XXI.
BIBLIOGRAFIA
LIBERA, Alain de.
Pensar na
Idade
Média. Trad. Paulo
Neves.
São Paulo:
Editora 34,
1999.
MOST, Glenn W. “Da
tragédia ao
trágico” in
Rosenfield K. H. (org.).
Filosofia
&
literatura: o
trágico.
Rio de
Janeiro: Jorge
Zahar, 2001.
STAIGER, E.
Conceitos
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da
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Rio de
Janeiro:
Tempo
Brasileiro, 1982.