A LINGUAGEM E O DISCURSO LITERÁRIO ESCOLAR
PERSPECTIVAS PARA UMA INTERAÇÃO
ENTRE O TEXTO E O LEITOR

Alexandre José P. C. de Assis Jácome (UFF)

 

Chega mais perto e contempla as palavras.

Cada uma

tem mil faces secretas sob a face neutra,

e te pergunta, sem interesse pela resposta,

pobre ou terrível, que lhe deres:

Trouxeste a chave?

(Carlos Drummond de Andrade)

 

INTRODUÇÃO

No ensino da língua materna, a literatura sempre teve o seu lugar, seja para ensinar normas e prescrições, seja para trabalhar períodos histórico-literários.

Entretanto, percebe-se que nem um nem outro modo de trabalho permite que o aluno exerça o papel de leitor eficientementeou seja, o de leitor que compreende o que . Há diversos problemas e, muitas vezes, as questões propostas noslivros didáticosnão conseguem resolvê-los. Em recente pesquisa[1], a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) constatou que 67% dos estudantes brasileiros na faixa de 15 anos de idade foram classificados como analfabetos funcionais.

Assim, esta comunicação se propõe a apontar alguns dos fatores que podem interferir no exercício da leitura e, sendo mais específico, da leitura na linguagem literária, haja vista a sua maior possibilidade de sentidos em relação a mesma linguagem em contextos diários e científicos.

São diversas as perspectivas que podem ser tomadas numa pesquisa como esta. Deste modo, delimitar-me-ei somente em algumas delas. Entretanto, é imprescindível uma visão multidisciplinar, englobando estudos que privilegiem tanto a questão da linguagemcomo é o caso da Lingüísticaquanto da literaturacomo ocorre com a Teoria Literária. Como bem ensina o lingüista romeno Eugenio Coseriu, “não se podem separar os ensinos da linguagem e da literatura porque a linguagem e a literatura constituem (...) uma forma única de cultura, embora com dois pólos diferentes dessa forma” (1993, p. 30). O mesmo lingüista também demonstra que, no ensino superior, que visa formar especialistas, estes pólos podem ser estudados separadamente, mas, nos ensinos fundamental e médio, não.

Em relação às contribuições dos estudos lingüísticos para esta pesquisa, utilizaremos as da Lingüística Geral baseada no citado autor Eugenio Coseriu e no lingüista português Herculano de Carvalho.

Com relação aos estudos da Teoria Literária, nossas orientações estarão pautadas nos fundamentos apresentados pelo teórico inglês Terry Eagleton acerca dos estudos da Estética da Recepção.

 

CONTRIBUIÇÕES DOS ESTUDOS LINGUÍSTICOS

No exercício da leitura, seja literária ou não, parte-se sempre de um texto. Cabe, então, salientar o que vem a ser um texto e qual é a sua constituição na perspectiva estudada.

Como bem nos mostra Herculano de Carvalho, o texto é um produto, resultante de uma atividadeque se distingue por ser ela imprescindível para a existência da vida humana em sociedade: a linguagem. Sendo a linguagem uma atividade com finalidades próprias, seja cognoscitiva ou interativa, ela é posta em prática pelo homem através do chamado ato de fala – a realização da atividade verbal. – que resulta no produto citado – o texto. Até aqui, temos ainda o texto em sentido amplo, incluído-se a sua modalidade oral. Quando este texto produzido no ato de fala é fixado graficamente, temos o texto escrito, em sua acepção mais comum.

Contudo, como ressalta Herculano de Carvalho, não se pode fixar o ato de fala em sua totalidade, poisnão ficam fixados certos elementos e circunstâncias que acompanham o ato de fala, que o condicionam e determinam e que o tornam plenamente significativo” (1979, p. 232) – os chamados contextos ou correlatos situacionais[2].

Ler, nesta perspectiva, é uma reconstituição intencional , mas não perfeita, dos atos de fala, pois os contextospela impossibilidade de fixá-los, salvo alguns textos específicos, como os teatrais – tendem a ser recriados ou refeitos cognitivamente. Constata-se, assim, a função ativa que o interlocutor tem que exercer perante o texto.

Neste aspecto encontra-se a interação texto / leitor, visto que, na leitura, ou reconstituição dos atos de fala, este leitor necessita do seu conhecimento interno para a (re) construção dos contextosindispensáveis para a realização plena da função significativa do texto, segundo Herculano de Carvalho.

Eugenio Coseriu, por sua vez, ensina que, no exercício da linguagem, seja na produção ou recepção de textos, fazemos uso de três saberes, ou conhecimentos, implícitos mas perceptíveis no ato de fala: o saber elocucional, relacionado ao chamado conhecimento de mundo; o saber idiomático, ou lingüísticoacerca do idioma ou língua histórica utilizada; e o saber expressivo, também conhecido como o conhecimento sobre as modalidades textuais, em sua ampla concepção.

Correspondendo a esses três saberes, há três conteúdos implícitos no produto resultado da realização da linguagem – o texto. São eles: a designação, que é a referência à realidade; o significado, o conteúdo de um signo ou de uma expressão lingüística; e o sentido, que é o conteúdo próprio de um texto específico, que vai além do significado e da designação e relaciona-se às intenções, aos propósitos, às implicações, etc., que cada texto apresenta. Deste modo, no ato da leitura, busca-se algo que está além da designação e do significado – busca-se o sentido. A mera decodificação não proporciona a leitura eficaz, principalmente tratando-se do texto literário, pois, como salienta Coseriu a respeito deste gênero,

O plano do sentido é, por assim dizer, duplamente semiótico, porque nele um significante e um significado de língua constituem uma primeira série de relações, seguida de outra série, em que o significado de língua passa, por sua vez, a sersignificante para o conteúdo do texto ou sentido. [...] O plano do sentido e do significado são sempre diferentes, mas, assim como o significado pode coincidir com a designação, o sentido pode coincidir com o significado. Neste caso, o texto é tão somente comunicativo, informativo, empírico ouvital’, e não artístico ou literário. (1980, p. 99)

Todavia, o que muitas vezes ocorre na leitura dos jovens leitores dos ensinos fundamental e médio é a falta dessa segunda semiose: o aluno sabe o significado, mas não encontra um sentido para o texto. Conseqüentemente, a leitura torna-se cansativa e desinteressante, principalmente pelo desconhecimento dos tão importantes contextos relacionados ao texto literárioque deveriam fazer parte do seu saber elocucional e expressivo, ou, no mínimo, apresentados pelo professor.

Paralelamente, Herculano de Carvalho aponta como um dos principais problemas relacionados à leitura a não intencionalidade, por parte do leitor, em entender o texto, reconstruindo o ato de fala e seus contextos. Pesquisas recentes[3] também apontam que os jovens preferem despender seu tempo em outras atividades alheias à leitura, como a televisão, por exemplo, e que 57% dos jovens brasileiros pesquisados não leram nenhum livro nos últimos seis meses, ou, pior, nunca leram! Observa-se que, ao lado do problema lingüístico, encaramos também uma questão social.

Em suma, verifica-se que o não entendimento de um texto ocorre por razões que vão além de uma possível não identificação dos designados na leitura: falta um maior engajamento, causado pelo insuficiente saber elocucional – o conhecimento de mundo – adequado à modalidade expressiva em foco – o literário, como infere-se em relação aos estudos lingüísticos apresentados.

 


 

CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA LITERATURA

Partindo de um outro ponto de vista, em que, como citado na Introdução, privilegia o caráter literário do texto, temos a Teoria da Literatura, que, por sua vez, abarca diversos estudos. Numa perspectiva histórica, houve momentos em que a Teoria da Literatura privilegiou o autor como no período romântico – em outros, o texto como o New Criticism, e mais recentemente, alguns estudos dirigiram-se para o leitor, segundo o teórico inglês Terry Eagleton. Como pretendemos apontar as possíveis causas da leitura literária ineficaz, torna-se necessário um estudo que também inclua as percepções que o próprio leitor – no nosso caso, os jovens alunos – tem em relação ao texto literário. Neste aspecto, Eagleton apresenta os estudos da “Teoria da Recepção ouEstética da Recepção” , que tem por objetivo examinar o papel do leitor na literatura, afinal, “os textos não existem nas prateleiras das estantes: são processos de significação que se materializam na prática da leitura.” (EAGLETON, 2003, p.102). Ainda sobre este estudo, o autor complementa:

Embora raramente percebamos, estamos sempre formulando hipóteses construtivas sobre o significado do texto. O leitor estabelece conexões implícitas, preenche lacunas, faz deduções e comprova suposições – e tudo isso significa o uso de um conhecimento tácito do mundo em geral e das convenções literárias em particular. O texto, em si, realmente não passa de uma série de “dicas para o leitor, convites para que ele sentido a um trecho da linguagem. [...] O leitor “concretiza” a obra literária, que em si mesma não passa de uma cadeia de marcas negras numa página. (grifo meu)

Assim, na perspectiva abordada pela Teoria da Recepção, o texto constitui-se por uma série de “indeterminações”, lacunas que deverão ser preenchidas pelo leitor, tendo como substância para esse preenchimento os próprios conhecimentos que possui. À medida que lemos, “deixamos de lado suposições, revemos crenças, fazemos deduções e previsões cada vez mais complexas; cada frase abre um horizonte que é confirmado, questionado ou destruído pela frase seguinte.” (ibidem, p.106)

Entretanto, esse preenchimento não é gratuito. Eagleton, ao citar um dos precursores do estudo da Estética da Recepção, Wolfgang Iser, afirma que

Para ler, precisamos estar familiarizados com as técnicas e convenções literárias adotadas por uma determinada obra; devemos ter certa compreensão de seuscódigos”, entendendo-se por isso as regras que governam sistematicamente as maneiras pelas quais ela expressa seus significados. (ibidem, p.107)

ou seja, através da ativação do seu conhecimento interno, o leitor deverá estar a par de certos códigos e contextos inseridos na obra.

Deste modo, infere-se que o leitor em fase escolar necessita de conhecimentos outros que vão além da decodificação escrita, como foi verificado também nas teorias lingüísticas apresentadas. No caso da leitura literária, esses conhecimentos tornam-se mais urgentes, principalmente no caso da chamadaliteratura clássica”, onde os contextos e os códigos utilizados por autores de outras épocas tendem a ser diferentes das conhecidas ou utilizadas pelos jovens estudantes.

 

CONCLUSÕES PRELIMINARES

A presente pesquisa não pretendeu definir uma causa única para os problemas que dificultam o desenvolvimento da leitura literária do jovem na fase escolar longe está do nosso objetivo, pois seria querer comentar dificuldades cujas causas vão além das exposições dos campos das teorias lingüísticas ou literárias.

Contudo, esta simplificada pesquisa que não quer ser simplista – aponta para uma causa que se verifica num processo anterior ao da interação entre o texto e o leitor, haja vista que, sem ela, esta interação nem chega a ocorrer: a aprendizagem da língua materna. Entretanto, não é a leitura e o ensino da língua que enfrentam problemas, como bem salienta o Professor Carlos Eduardo Falcão Uchôa, “vai mal antes a escola, o ensino em geral, a sociedade, o Estado brasileiro” (2000, p. 63). Como citado, antes de um problema lingüístico ou pedagógico, estamos diante de uma questão social.

Mas, retornando a nossa pequena contribuição para a resolução de colocações tão amplas, vemos que faltam competências aos alunos como o saber elocucional e expressivo, conforme Coseriu, ou o conhecimento tácito do mundo em geral e das convenções literárias em particular, segundo Eagleton – para que haja uma verdadeira interação com o texto literário, valendo citar uma outra pesquisa, esta apresentada pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb), realizada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Anísio Teixeira (Inep / MEC)[4], apontando que 42% dos alunos do 3º ano do Ensino Médio encontram-se em estágios críticos ou muito críticos quando o assunto é leitura, apresentando grandes dificuldades diante da interpretação de diversos gêneros literários.

Em outras palavras, isto significa dizer que a escola pode não estar cumprindo com o seu papel satisfatoriamente, que é, entre outros, o de desenvolver no aluno a capacidade da leitura autônoma dos diversos gêneros textuais, conforme os Parâmetros Curriculares Nacionais.

Para desenvolver tal competência, é necessário que o ensino da língua materna alcance patamares além da descrição gramatical, imposições normativas ou estudos descontextualizados. É urgente, antes, um ensino produtivo da língua, (cf. Uchôa) que busque não somente a expansão do saber idiomático ou linguístico, mas também dos saberes elocucional e expressivo que englobam, por sua vez, diversos outros conhecimentos explicitados pelo estudo da teoria da recepção. Em síntese, é necessário que o professor de português seja, acima de tudo, um professor de linguagem que, segundo o Professor Uchôa, deve estimular o aluno a “saber ordenar as idéias, a conhecer o mundo e a conviver com situações discursivas diversas” (2000, p.69). Porém, aprofundar as fundamentações necessárias para um ensino produtivo da língua, objetivo do professor de linguagem, vai além dos nossos objetivos propostos aqui.

Enfim, entre o texto e o leitor, são variados os fatores que impedem uma tão almejada interação... mas, caso o aluno chegue mais perto e contemple as palavras, não esperemos que ele nos faça indagações: é nosso dever não somente dar-lhe uma chave, como também convidá-lo a entrar.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CARVALHO, J. G. Herculano de. Teoria da linguagem. Coimbra: Atlântida, Tomo I, 1979.

COSERIU, Eugenio. Do sentido do ensino da língua literária. Trad. Evanildo Bechara. In Confluência, Revista do Instituto de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, n. 5, 1993.

––––––. Lições de lingüística geral. Trad. Evanildo Bechara. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1980.

EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Trad. Waltensir Dutra. São Paulo: Moderna, 2003.

UCHÔA, Carlos Eduardo Falcão. Fundamentos lingüísticos e pedagógicos para um ensino abrangente e produtivo da língua materna. In Confluência, Revista do Instituto de Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, n. 19, 2000.


 


 

[1] o PC. Mas aula antes. O Globo, Rio de Janeiro, 09 ago. 2004. Caderno Informática etc., p. 2.

[2] Em sua obra, Herculano de Carvalho, baseado nos estudos de Eugênio Coseriu, explicita cinco espécies de contexto: a situação, o contexto idiomático, o contexto verbal, o contexto extra-verbal e o universo de discurso.

[3] O QUE pensa o jovem brasileiro. O Globo, Rio de Janeiro, 21 maio 2004. Caderno A1, p. 10.

[4] A EXPLOSÃO do Ensino Médio. Revista do Ensino Médio, Brasília: MEC, ano II, n. 4, 2004, p. 5.