Memória e discurso – “O lampião da esquina
e a
construção da identidade homossexual

Almerindo Cardoso Simões Junior (UNIRIO)

 

Introdução

“A busca da memória social poderia corresponder, assim, a um esforço de recuperação do passado pela consciência coletiva.” (Wahling, 1997)

Este trabalho faz parte das primeiras análises feitas a partir de meu projeto de mestrado em Memória Social e Documento, apresentado a banca do Centro de Ciências Humanas da UNIRIO. Em fase inicial, pesquiso o discurso homossexual na mídia impressa, com enfoque no discurso jornalístico. O corpus constitui-se do jornalO lampião da esquina”, que circulou de 1978 a 1981. Tomo como referencial teórico a análise do discurso, em conjunto com as teorias de memória social e os estudos “queers” [1]. Procuro mostrar como o referido jornal constituiu a memória de um grupo considerado ‘marginal em pleno período de ditadura militar.

 

O lugar da memória

...para que haja memória, é preciso que o acontecimento ou o saber registrado saia da indiferença, que ele deixe o domínio da insignificância. É preciso que ele conserve uma força a fim de poder posteriormente fazer impressão. (Achard et alli: 1999)

Durante vários séculos a memória foi pensada pelo aspecto individual, como a faculdade de reter e recordar fatos passados, correspondendo a uma função psíquica. O conceito de memória social ou coletiva surge na passagem do século XIX para o século XX.

Henri Bergson foi um dos primeiros teóricos a visualizar tal concepção. Em seu livro Matéria e Memória de 1896, estabelece uma relação entre a memória individual e sua existência coletiva. Em 1898, Émile Durkheim, em Representações individuais e representações coletivas defendia o caráter simbólico da memória individual como traço de um complexo social mais amplo.

O sociólogo Maurice Halbwachs é quem consolida tais conceitos. Em seu livro Os quadros sociais da memória, de 1925 , ele demonstra a institucionalização social da memória, construtora da identidade cultural do grupo. Segundo Santos (2003):

Um de seus grandes méritos foi ter escrito sobre memória coletiva numa época em que a memória era compreendida primordialmente enquanto fenômeno individual e subjetivo. O sociólogo afirmou (...) que indivíduos se lembram de seus passados à medida que se colocam sob o ponto de visto de uma ou mais correntes do pensamento coletivo. Além disso, foi ele quem enfatizou que tudo o que nós nos lembramos do passado faz parte das construções sociais que são realizadas no presente.

Desenvolvendo estudos sociológicos sobre as classes operárias nas primeiras décadas do século XX, Halbwachs (1925) chega a conclusão de que a própria consciência de classe (podemos aqui aplicar a mesma idéia para grupos sociais) não se dá como resultado das condições materiais de existência, mas das representações coletivas. Novos valores agregavam-se ao grupo à medida que a sociedade se transformava, sendo esses valores e tradições usados em prol do grupo de acordo com as tendências e necessidades do mesmo.

Uma das críticas de outros pensadores da memória em relação a Halbwachs, porém, é que ele considera a memória enquanto um processo estanque, apaziguado, dividido em quadros sociais (Halbwachs: 1925), bastante desvinculada de conceitos éticos e políticos e não relacionada, a relações que servissem ao jogos de poder.

Vários outros pensadores, em especial filósofos, conceituaram e pensaram a memória social dentro de um aspecto mais polissêmico e transdisciplinar. Podemos citar dentre eles Deleuze, Derrida, Negri e Foucault. É neste último que vamos nos deter de forma um pouco mais demorada.

 

A análise Foucaultiana do discurso
discussões preliminares

O discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos apoderar. (Foucault 2003: 10).

Foucault em A ordem do discurso (2003), revela, logo de início, a que finalidade o mesmo se destina: “Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o desejo e com o poder”. Na verdade, toda vez que falamos, refletimos uma ideologia, um sistema de valores que nos precede. Em Foucault (2003), percebemos que o discurso está “na ordem das leis” e que o poder que lhe é conferido advém da própria instituição. No âmbito de minha análise, essa instituição é a sociedade como um todo.

Essa relação faz com que discurso apresente-se como uma configuração de poder e perigos. Desejado, que é forte elemento social, dá ao sujeito vez e voz, aparição perante a sociedade, ao mesmo tempo sendo elemento repressor e manipulador, invariavelmente utilizado e produzido por quem detém o poder, coagindo as minorias ou todo aquele que produz uma fala contrária, que

em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade. (2003: 09)

Como mantenedor de poder, o discurso também apresenta , segundo Foucault, procedimentos de exclusão:

a)       Interdição (a palavra proibida) – O reconhecimento de que cada discurso deve ocupar um lugar específico, ou que não se tem o direito de falar de tudo em qualquer circunstância;

b)       Separação (a segregação da loucura) – Para falar de separação, Foucault contrasta razão e loucura. O autor analisa o discurso do louco (aquele cujo discurso não merece ser ouvido), fazendo um levantamento do uso da palavra desde a Idade Média. Esta era reconhecida como o lugar da separação no discurso do louco e sua palavra era considerada ruído[2], sendo-lhe dado reconhecimento no teatro. Nos dias de hoje essa separação em relação ao discurso do louco ocorre de outro modo: através dos aparatos médico e psiquiátrico, o que também se mostra como uma relação de cesura para se ouvir esse tipo de discurso.

c)       Rejeição (a vontade de saber) – Busca pela verdade que se inicia com Platão a atravessa toda a nossa tradição cultural judaico-cristã-ocidental. Trabalha com a noção de verdadeiro ou falso, embora esta seja perigosa, segundo Foucault. O sentido de verdade é hoje considerado arbitrário, em perpétuo deslocamento, sustentando por um sistema de instituições que o impõe e reconduz, as vezes sob opressão e até violência. Essa “ vontade de verdade assim apoiada sobre um suporte e uma distribuição institucional tende a exercer sobre os outros discursos (...) uma espécie de pressão e como que um poder de coerção.” (2003: 18).

Convém ressaltar que esse exercício representa a fala da contradição: essa vontade de verdade está de fato, a serviço do poder. aparece aos nossos olhos a verdade que interessa a ideologia dominante. Foucault fecha brilhantemente esse item com o seguinte comentário:

Assim, aparece aos nossos olhos uma verdade que seria riqueza, fecundidade, força doce e insidiosamente universal. E ignoramos, em contrapartida, a vontade de verdade como prodigiosa maquinaria destinada a excluir todos aqueles que, ponto por ponto, em nossa história, procuraram contornar essa vontade de verdade e recolocá-la em questão contra a verdade, justamente onde a verdade assume tarefa de justificar a interdição e definir a loucura. (2003: 20)

O discurso passa a ser reconhecido então como um ordenador do sistema social Vale ressaltar que ordenar essa sociedade significa enquadrar, e aqueles que não se enquadram em determinado conceito social, e que não refletem o discurso dominante, tornam-se marginais, não tomando a palavra no sentido de bandido, mas sim daqueles que vivem à margem da sociedade e do discurso/ pensamento vigente da maioria da população, sendo portanto execrados ou não reconhecidos enquanto cidadãos. Essa parcela da população passa a perfazer então a fala do louco. Seu discurso não merece crédito, não merece ser ouvido. É mister deixá-los de lado, esquecidos, ou fazer com que, a qualquer preço, repitam e reflitam o discurso da maioria.

 

E havia um lampião na esquina
Memória e discurso no Brasil da ditadura

Por se tratar de um trabalho em fase inicial, as análises feitas até então referem-se aos números 0 (abril de 1978), 1 (maio de 1978) e 2 (junho de 1978) do periódico.

O jornalO lampião da esquina” apresentava enfoques um tanto quanto inovadores para o discurso homossexual da época: em primeiro, tratava-se de um dos primeiros jornais impressos destinados a essa parcela da população, que a maioria dos existentes até então eram mimeografados. Apresentava poucas figuras, uma diagramação nada inovadora, sóbrios tons de vinho ou verde, e uma sequência de textos que demandava uma leitura atenta. Não buscava fazer o que o próprio jornal chama de “colunismo social” (O lampião, nº 0, p.5). Sua leitura , entrelaçando informações culturais, como dicas de filmes, livros ou espetáculos (O lampião , nº 0, p12,13), trazia artigos de contexto mais denso como o papel da mulher, a perseguição aos homossexuais no período Nazista, ou – tocando num assunto polêmico – a questão do prazer sexual. (O lampião, nº 0, p. 4,5).A edição de número 1, mantém o clima polêmico ao trazer um artigo onde um padre fala da relação igreja e homossexualidade (nº 1, p. 7). O editorial da edição experimental, traz bem explicitamente os objetivos do jornal:

Mostrando que o homossexual recusa para si e para as demais minorias a pecha de casta, acima ou abaixo das camadas sociais; que ele não quer viver em guetos, nem erguer bandeiras que o estigmatizem; que ele não é um eleito nem um maldito; e que sua preferência sexual deve ser vista dentro da condição psicossocial da humanidade como um dos muitos traços que um caráter poder ter, Lampião deixa bem claro o que vai orientar a sua luta: nós nos empenharemos em desmoralizar esse conceito que alguns nos querem impor que a nossa preferência sexual possa interferir negativamente em nossa atuação dentro do mundo em que vivemos. (O lampião. Editorial, nº 0)

Pelo fato de ter circulado num período de ditadura política, onde não havia muita liberdade para a imprensa mais ainda para uma imprensa considerada “marginal”- o jornal brinca com as palavras fazendo uso de metáforas e jogos de linguagem , com o intuito de confundir e /ou brincar com o leitor mais desavisado, ou alguém que não fizesse parte do referido contrato de comunicação (para maiores explicações, ver Charaudeau: 1996[3]). Como exemplo disso, posso citar :

em 1400 Leonardo da Vinci (que entendia das coisas) escreveu : “Haverá um dia em que os homens conhecerão o íntimo do animal e, nesse dia, um crime contra um animal será considerado um crime contra a humanidade. (O lampião , nº 0)

O ensaio referia-se a recém proclamada Declaração Universal dos Direitos dos Animais. O trecho entre parênteses apresenta claramente duplo sentido: podemos nos referir a inteligência / sensibilidade de Leonardo da Vinci, prevendo algo que aconteceria muitos séculos depois ou relacionarmos essa frase a uma suposta condição homossexual.

A seguir, mais um exemplo:

Exclusivo: Garcia Lorca também assume” (Frase de chamada de capa – nº 0)

Embora o leitor possa pensar que tal frase refira-se a condição homossexual de Garcia Lorca, ao lermos o texto, percebemos que o mesmo nunca assumiu uma suposta condição homossexual. A reportagem refere-se, portanto, a uma peça teatral denominada “El Público”, que embora escrita quarenta anos antes, no fim dos anos setenta é encenada, devido, principalmente, as cenas de nus.

Os períodos são em sua grande maioria longos e compostos, denotando uma certa complexidade de leitura. Não se trata de um jornal para leitura de lazer. Tem-se a impressão de um periódico que busca criar / estruturar uma comunidade consciente de seus direitos e com argumentos convincentes e plausíveis que possibilitassem a aparição da comunidade homossexual enquanto algo positivo, e não pejorativo como era visto até então (ou até hoje).

Ao mesmo tempo em que apresenta reportagem mais sérias e formais, o jornal também apresenta termos de cunho mais popular, perpassando uma imagem séria, mas ao mesmo tempo debochada. O intuito, provavelmente, é mostrar através da linguagem , que o homossexual, embora sempre visto como irreverente, debochado, irresponsável, pode também assumir posturas sérias quando as mesmas se fazem necessárias, ou mais ainda, quando a sua idoneidade está em jogo. Percebo então uma busca de proximidade com o leitor, onde este possa reconhecer o jornal como uma instituição confiável, legítimo e digno de credibilidade. Essa troca é importante inclusive para a manutenção do periódico. É o leitor quem vai comprá-lo, assiná-lo e anunciar nele.

Exemplos de uma menor formalidade seguem abaixo:

Pelo amor de Deus, bicho, não vamos começar assim: ‘Quando foi que você chegou ao Brasil, etc... ‘ (nº 2, p.5 – trecho de uma entrevista – o entrevistado se incomoda com a formalidade das questões).

Como é isso de transar[4] na cadeia? Não vigilância, não controle? (Trecho da mesma entrevista)

Ora, Nica, por quem sois! Então você acha que a gente ia fugir com o dinheiro das assinaturas? O número um atrasou um pouco porque foi preciso dar um sobrenome ao jornal (‘Da Esquina’), para evitar problemas de propriedade industrial (Seção Cartas na mesa Resposta ao leitor, nº 2).

 

Conclusão

Mesmo sendo abordado de forma superficial, e em apenas 3 de seus 37 números, em parte pelo pouco tempo de pesquisa e também pela limitação de espaço, procurei traçar um panorama inicial , com o objetivo de apresentar o periódico e destacar sua importância enquanto elemento de legitimidade e credibilidade (Charaudeau, 1996) junto a comunidade homossexual da época. Sua linguagem séria, seu texto muitas vezes denso, mas associado a uma ironia refinada e a busca de interlocução com o leitor promoveram como um passeio por múltiplos espaços e/ou identidades – ao mesmo tempo que procurava afirmar a postura do homossexual enquanto cidadão participante da sociedade, brincava com o discurso e com a ‘máquina do poder’. Sua proclamação por liberdade , não sexual, mas também política e de atitudes, desafiando posturas muito estabelecidas não pode e não merece permanecer oculto , escondido sob o tapete, na memória apenas de um grupo específico. O jornalO lampião da esquina” é manifesto vivo da recente história do Brasil e deveria fazer parte da memória de toda uma nação.

 

Bibliografia

ACHARD, Pierre et alli. Papel da memória. Campinas: Pontes, 1999

CHARAUDEAU, Patrick. “Para uma nova análise do discurso.” In: CARNEIRO, Agostinho Dias (org.). O discurso da mídia. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1996.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 9ª ed. São Paulo: Loyola, 2003.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

JAGOSE, Annamarie. Queer theory. An introduction. New York: University Press, 1996.

LAMPIÃO. Rio de Janeiro: Lampião, 1978.

SANTOS, Myrian Sepúlveda dos. Memória Coletiva & Teoria Social. São Paulo: Anna Blume, 2003

WEHLING, Arno et alli. Memória social e documento: uma abordagem interdisciplinar. Rio de Janeiro: Universidade do Rio de Janeiro, 1997.


 


 

[1] O termo “queer” era usado até meados dos anos 60 como alcunha das mais depreciativas para os homossexuais. Com a recente visibilidade dos estudos gays e lésbicos, o termo teve seu sentido modificado cultural e socialmente, abarcando hoje esse tipo de estudo. Lembrando “A ordem do discurso” de Foucault e outros teóricos da análise do discurso, podemos perceber como o uso de determinados termos oualcunhas”, está amplamente ligado ao universo cultural e social de determinado grupo, podendo ter seu sentido mudado a representatividade social do(s) grupo(s).

[2] Segundo Roman Jacobson, ruído é toda interferência no processo comunicativo, ou toda palavra mal interpretada, fazendo com que o receptor tenha dificuldades ou não consiga decodificar o que é transmitido pelo emissor.

[3] Um dos primeiros aspectos retratados por Charaudeau(1996) é o fato de que as novas tendências no estudos de análise do discurso consideram impossível conceber a língua como algo fragmentado, estruturado em micro partes, sendo tomadas como aspectos isolados . É fundamental vê-la como processo de interação, algo que torna a relação significativa entre emissor e destinatário, transformado-os em parceiros. É como se assinassem um contrato:  Um contrato de comunicação.

[4] Vale ressaltar que, segundo Norimar Júdice em sua tese de doutorado Verbo e voz na escrita do homem e da mulher(Coordenação dos cursos de Pós-Graduação em Letras, UFRJ, 1997), transar é um verbo tipicamente usado na escrita de homens.