MÍDIA E POLÊMICA: A TRANSGRESSÃO DA POLIDEZ
Olympio Gantos do Amaral (UENF)
O presente texto tem como objetivo proceder à análise do discurso jornalístico de uma matéria publicada na revista Veja. O artigo versa sobre a reação polêmica do presidente Lula à publicação de uma matéria no New York Times, que mostra a suposta preocupação do povo brasileiro com os hábitos etílicos do presidente e que levanta dúvidas sobre sua real capacidade de governar. Ao analisar o artigo de uma revista com abrangência nacional e internacional e grande formadora de opinião, pretendo identificar as forças que movem e direcionam sutilmente os leitores a determinadas interpretações, ainda que exista um esforço em dar a informação de maneira imparcial. Pretendo também observar o processo de comunicação dos textos da mídia, os conceitos de enunciação, estilo e gênero em Bakhtin (2000) e a Teoria da Polidez em Brown & Levinson (1999). O artigo escolhido apresenta alguns dos princípios que norteiam a Retórica do discurso jornalístico, e serve como exemplo para que todo esse processo seja entendido.
Ao escrever uma matéria para uma revista ou jornal, os jornalistas procuram observar certas leis, certas regras, como dar informação verdadeira, pertinente, suficiente, clara e não-ambígua.
Um jornalista, por exemplo, assume o contrato implicado pelo gênero textual do qual participa. Falar de “papel” é insistir no fato de que cada gênero implica os parceiros sob a ótica de uma condição determinada e não de todas as suas determinações possíveis.
A produção de textos jornalísticos segue determinadas regras e convenções, como podemos evidenciar nas redações de jornais e revistas. Uma “notícia”, em princípio, deveria apenas registrar os fatos de maneira objetiva, imparcial e descomprometida. Os adjetivos e advérbios avaliativos devem ser descartados, assim permitindo aos leitores tirarem suas próprias conclusões. Como podemos constatar na prática, essas regras nem sempre são seguidas e a própria escolha do ângulo de um relato demonstra um comprometimento do jornalista com o fato. A mesma matéria publicada na revista Veja sobre a polêmica do presidente foi publicada na revista Isto É. Consideramos Veja uma revista com posição política mais conservadora e que não se intimida ao fazer críticas mais severas a um presidente de esquerda. A Isto È, por seu turno, é uma revista conhecida por primar pela publicação de escândalos que comprometem políticos do alto escalão. Possui uma visão mais esquerdista e, ao invés de ter feito críticas severas ao presidente pelo PT, preferiu publicar uma entrevista na qual o mesmo procura defender suas decisões. Portanto, ao ler as duas matérias, constatamos abordagens, opiniões e conclusões diferentes sobre o mesmo assunto, pois são outros jornalistas escrevendo em uma outra revista. Além disso, o papel do autor é buscar uma maior aproximação com o seu texto: avaliações e modalizações marcam sua visão de mundo e recursos retóricos são ativados para atingir com maior eficiência os seus interlocutores, mesmo que muitas vezes isso comprometa a imparcialidade do texto jornalístico. Porém, se o jornalista se embrenhar por esses caminhos, cabe a ele a responsabilidade jurídica do texto assinado. O jornal e a revista, por outro lado são responsabilizados pelos conteúdos jornalísticos e políticos. É por isso que a direção da redação se reserva o direito de não publicar matérias assinadas que possam dar margem a processos judiciais.
O jornalista, ao escolher os assuntos e a forma de discuti-los com os seus leitores, também estabelece “um contrato” com estes. Isso acontece por que a informação é transmitida por uma série de negociações e códigos que envolvem os princípios de cooperação instituídos por Grice (1975): seja verdadeiro, pertinente, claro e dê a informação necessária - nem mais nem menos.
Para Bakhtin (2000: 279), os integrantes das diversas esferas da atividade humana utilizam a língua em forma de enunciados. Através do estudo do enunciado, a “unidade real da comunicação verbal”, compreende-se melhor a natureza das unidades da língua (as palavras e as orações). As fronteiras do enunciado concreto são determinadas pela alternância dos sujeitos falantes, ou seja, pela alternância dos locutores.
O texto jornalístico deve ser imparcial, sem agregar sensações, impressões ou opiniões do emissor. Mas sabemos que isso nem sempre acontece nas redações dos jornais e revistas. Conotações, atenuações, agravamentos, ênfase e transferências icônicas, que são meios retóricos a serem evitados com a finalidade de aumentar a imparcialidade, são freqüentemente utilizados pelos jornalistas.
A matéria jornalística da Veja em análise foi escrita pela jornalista Leandra Paes, na edição nº 854, de 19 de maio de 2004, vai da página 36 a 43. O assunto ganhou a capa da revista e teve como título: TEMPESTADE NO COPO e “AFASTA DE MIM ESTE CÁLICE” na abertura da matéria.
A revista apresenta toda a polêmica criada pelo assunto usando o velho ditado popular: “tempestade num copo d`água”. Foi uma forma inteligente de chamar a atenção do público para uma questão que já vinha sendo amplamente discutida, em função da polêmica que vinha causando.
A matéria aborda o drama em que o presidente se envolveu a partir de artigo publicada no New York Times pelo jornalista Larry Rohter. Na verdade, não fica muito claro se a jornalista se refere aos possíveis problemas etílicos do presidente ou à grande confusão em que ele se envolveu.
A matéria de New York Times causou desconforto e indignação tanto dos políticos da base aliada quanto da oposição. Ela se referia “à preocupação nacional sobre o consumo etílico do presidente”. No âmbito internacional, nem o mundo, mesmo incluindo os americanos, pareceram ter dado muita importância ao assunto. É fato que esse problema está bem longe de ser um assunto internacional de grande interesse num país cujas tropas estão envolvidas numa invasão pra lá de tumultuada. No Brasil do desemprego, das denúncias semanais de corrupção envolvendo políticos e da violência urbana de níveis alarmantes, a matéria de Larry Rohter pouco foi comentada pela população. Talvez todos os problemas enfrentados pelos brasileiros associados a um desapontamento causado pelas promessas não cumpridas do atual presidente tenham ferido muito mais o sentimento nacional do que um artigo publicado nos Estados Unidos - e reproduzido por um jornal brasileiro de grande circulação - que pudesse comprometer a imagem do país.
Assim, quando todos já quase não comentavam mais sobre o artigo de Larry Rohter, o governo tomou uma decisão intempestiva e quase inédita no Brasil: expulsar o jornalista do New York Times, de 54 anos, que trabalha no Brasil desde os anos 70. O último caso ocorreu em 1970 no governo do ditador general Emilio Garrastazu Médici. Estávamo, à época, no auge da repressão política e da censura. O ditador expulsou um correspondente da agência de notícias France Presse por ter publicado no exterior a lista dos presos políticos que um grupo guerrilheiro queria libertar em troca da soltura do embaixador suíço seqüestrado. Não demorou muito para que a matéria do New York Times, até então quase esquecida, voltasse à tona com repercussão mundial. Desta vez a veracidade da matéria publicada por Larry Rohter não era tão questionada, mas sim a decisão inesperada e autoritária do presidente de expulsar o jornalista. A liberdade de imprensa estaria ameaçada pela volta da censura ao Brasil? - muitos se perguntavam. É lógico que todos sabiam que isso era impossível na democracia em que vivemos hoje, mas os fantasmas da ditadura militar (incluindo a censura) ainda são um trauma para a sociedade brasileira, em especial para o jornalismo. Lula teria se aproveitado de uma lei na constituição brasileira que visa proteger a imagem da soberania nacional quando esta for ameaçada. Ainda que o argumento seja fraco e a interpretação da lei muito discutível, o presidente recorreu à constituição brasileira para tomar esta decisão, muito diferente do seu antecessor da Era Militar.
A jornalista Leandra Paes parece não ter se preocupado muito com os meios retóricos para tentar escrever um texto imparcial. Passagens como: “Numa cena que só a esquizofrenia petista parece capaz de exibir, até ...”, “Por obra e graça da reação descabida do governo, o assunto acabou ganhando dimensão planetária”, e “Lula não tem apenas assessores tresloucados a aconselhá-lo” demonstram que a jornalista utiliza-se de agravamentos e ênfase durante todo o artigo. Isso demonstra que ela pretendia chamar a atenção do público leitor para o assunto. Até mesmo porque o assunto atinge diretamente o próprio jornalismo ao relatar a decisão do presidente em expulsar um jornalista do país. Os adjetivos de grande valoração utilizados no início do artigo para descrever as ações tresloucadas dos assessores do presidente são atenuados no final do mesmo. Portanto, a jornalista ainda busca, através de meios retóricos, a imparcialidade esquecida no início da matéria. A passagem “Marcio Thomaz Bastos esforçou-se com sucesso para não manchar sua biografia de jurista e democrata com a nódoa do banimento de um jornalista” demonstra que, ao relatar as ações sensatas de alguns assessores, Leandra Paes busca um equilíbrio com pretensões de imparcialidade.
Por ser a comunicação verbal uma relação social, submete-se também às regras de polidez.
A Teoria da Polidez, embora discuta os ataques a face dos indivíduos que se comunicam verbalmente, focaliza, de modo especial, as estratégias para a proteção das faces.
Larry Rohter ao redigir sua matéria, fez um ataque direto à face negativa de Lula, ou seja, atingiu a imagem que o presidente quis omitir do público. Presidentes, assim como quaisquer homens públicos, procuram manter uma boa imagem. Apesar de sabermos que Lula é conhecido por quebrar protocolos e em certas ocasiões ultrapassar o limite do “beber socialmente”, a busca para melhorar sua imagem começou há muitas eleições passadas. Para isso, um dos melhores marketeiros do país, Duda Mendonça, foi contratado. Ficavam assim definidos quais os traços de caráter Lula deveria apresentar ao seu público. Seria dele a responsabilidade de construir uma boa imagem sem que precisasse falar de si mesmo. O importante não seria o que ele deveria falar mas como a enunciação deveria ser feita. Assim os co-enunciadores atribuem ao orador um caráter e uma corporalidade, o que envolve traços psicológicos e físicos. À essa atribuição chamamos de Ethos:
Não se trata das afirmações elogiosas que o orador pode fazer sobre sua própria pessoa no conteúdo de seu discurso, afirmações que, contrariamente, podem chocar o ouvinte, mas da aparência que lhe conferem o ritmo, a entonação, calorosa ou severa, a escolha das palavras, dos argumentos...[...] É na qualidade de fonte de enunciação que ele se vê revestido de determinadas características que, por ação reflexiva, tornam essa enunciação aceitável ou não. (Ducrot, 1984: 201)
Portanto, ao analisarmos o artigo de Larry Rohter, percebemos que houve a transgressão da Polidez, pois as faces não foram preservadas. Essa transgressão poderia resultar num processo jurídico contra ele.
Poderíamos dizer que as fontes de Larry Rohter não eram confiáveis, o que levou o jornalista a cometer um equívoco. Mas é difícil acreditar que isso tenha ocorrido, pois o texto é muito comprometedor ao afirmar que supostas gafes do presidente foram cometidas quando ele excedeu seu limite etílico. Estaríamos, portanto, correndo o risco de sermos prejudicados por ações insensatas de um presidente que pode estar ou não bêbado em momentos decisivos para o país. Portanto, houve real intenção de difamar a imagem do presidente no exterior, o que poderia trazer prejuízo à imagem do país.
Lula procurou restaurar sua imagem ao tomar conhecimento do artigo. Umas das estratégias usadas para sua defesa foi a negação do fato de que tinha problemas com a bebida. Logo depois, o presidente partiu para o ataque aos acusadores que, por coincidência ou não, são americanos. O fato de estes serem americanos agravou a polêmica, pois o governo atual tem uma política de oposição ao poder hegemônico dos Estados Unidos no mundo. Alguns assessores mais esquerdistas do presidente enxergaram o episódio como um verdadeiro ataque americano à credibilidade e imagem do Brasil (leia-se governo Lula) no exterior. Quando Lula tomou a decisão de expulsar o jornalista, procurou ser firme na decisão, pois sabia que voltar atrás poderia mostrar mais ainda o lado vulnerável de seu governo: a falta de entendimento interno. Portanto, a carta de reparo de Larry Rohter enviada ao presidente foi um verdadeiro alívio, pois só assim o governo poderia rever sua decisão sem sofrer um desgaste ainda maior. Tais estratégias como negação do fato e ataque aos acusadores, fazem parte da restauração da reputação quando ocorre a transgressão da polidez na mídia.
O jornalista americano atingiu a imagem que tínhamos do presidente, ou seja, as atribuições de caráter e corporalidade que demos a ele. Mas foi o próprio Lula quem se encarregou de atacar a mesma imagem que ele tanto se esforçou em criar.
Alguns dos jornalistas mais influentes como Marcelo Beraba da Folha de São Paulo, Merval Pereira do O Globo e José Coelho Sobrinho da Escola de Comunicação e Artes da USP consideraram a expulsão um atentado à liberdade. Todos chegaram à mesma conclusão a que a jornalista da revista Veja chegou em seu artigo: Lula poderia ter encontrado uma solução mais cabível a um líder democrático. Inclusive as sugestões propostas pela jornalista consideram que o presidente deveria ter agido com humor e até com um pouco de ironia a inverdade publicada. Se seus conselhos finais comprometeram ainda mais a imparcialidade do texto, é algo a ser discutido, mas não poderíamos deixar de concordar com ela.
Referências bibliográficas
BARROS, N. C. Estratégias de ataque à face em gêneros jornalísticos. In: MEURER, J. L. Gêneros Textuais. Florianópolis: EDUSC, 2002.
MAINGUENEAU, D. Análise de Textos de Comunicação. Rio de Janeiro: Cortez, 2002.
ARISTÓTELES. Arte Retórica. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [s/d.].
DUCROT, O. Le dire et le dit. Paris: Minuit, 1984.