PONTUAÇÃO: OPERADOR DA TEXTUALIDADE
Tania Maria Nunes de Lima Camara (UNISUAM)
Os sinais de pontuação datam de época relativamente recente na história da língua escrita. No sistema hoje empregado, é possível observar, porém, a permanência de alguns sinais usados desde os gregos, os latinos e a Alta Idade Média.
Segundo Houaiss, a história da pontuação revela, no mundo ocidental, como uma lenta conquista. A tradução medieval legou-nos o sistema iniciado pelos alexandrinos, enquanto o Renascimento limitou-se a herdar, em linhas essenciais, os principais signos de pontuação modernos, empregando-os num sentido progressivamente lógico-gramatical, enquanto antes se fazia preferentemente subordinado ao perfil melódico da cadeia falada e às pausas respiratórias mais nítidas.
Essas observações de Houaiss, ao lado de considerações de antigos gramáticos, deixam evidente que o emprego dos sinais de pontuação não obedecia , na sua origem, ao padrão hoje estabelecido - o lógico-gramatical. Razões de ordem melódica, prosódicas determinavam o uso desses sinais; assim, a produção do sentido fazia-se a partir de uma base ritmo-semântica, que foi, ao longo do tempo, sendo desconsiderada.
A lógica do pensamento, orientada por um raciocínio eminentemente matemático, mudou os princípios sobre os quais se deveria pautar a pontuação. A partir daí, a estruturação lógica passou a ser considerada como a base de uso da pontuação, deixando de levar em conta as questões relativas a ritmo, à lógica aparentemente desorganizada do pensamento em si.
O “Auto das Barcas”, de Gil Vicente, foi uma das vítimas dessa mudança de foco, uma vez que Luís Vicente, filho do escritor, passou a “corrigir” os textos do pai. A conseqüência desse procedimento foi a marcação melódica e entonacional foi devidamente substituída pelo padrão lógico-gramatical; ou seja, criou-se um novo texto.
Afastada qualquer possibilidade de Gil Vicente haver errado na pontuação de seu texto, a dificuldade de Luís Vicente na leitura dos textos do pai certamente decorreu do desconhecimento dessa outra maneira de organizar e separar as idéias no texto escrito. É, pois, absurdo imaginar que os “desvios” percebidos em alguns textos antigos sejam decorrentes da falta de preocupação dos escritores com os sinais de pontuação. Na verdade, o que se tem é que a escrita pautava-se em princípios diferentes daqueles de hoje, deixando distante qualquer idéia de considerar tais textos ininteligíveis.
Se tomarmos José Saramago, por exemplo, nele encontramos muitas semelhanças de seus textos e com os antigos, especialmente pela disposição em blocos e pela ausência dos sinais de pontuação. Será que Saramago também não se preocupa com tais questões de ordem formal ? Certamente que não.
Considerado signo, a relação significante-significado mostra-se presente nos textos em geral, ligada à produção de sentido.
Desse modo, pontuar, na língua escrita, é mais do que empregar sinais gráficos obedecendo a um critério estritamente lógico-gramatical, como atestam renomados gramáticos e estudiosos da língua portuguesa. Restringir a pontuação à sintaxe é limitar-lhe o emprego; é desconsiderar o seu importante papel como operador de textualidade.
Especialmente no texto literário, no qual a questão estética, a expressividade surgem como elementos ligados ao sentido,outros aspectos necessitam ser considerados. A entonação, o ritmo da fala, por exemplo, devem, pois, ser também considerados; caso contrário, corre-se o risco de não se atingir um nível pleno na leitura. De acordo com Mattoso Camara Júnior, o sistema de pontuação “desenvolveu-se de maneira cabal e coerente no uso literário das línguas ocidentais modernas.
Especialmente nos textos de autores desconstrutores, nomenclatura utilizada pelo professor Azeredo para caracterizar os textos que rompem com o padrão estabelecido, a subversão no emprego dos sinais não se mostra, certamente, como desobediência gratuita; antes, é forte instrumento de enunciação, que necessariamente não vai se pautar unicamente nas questões sintáticas.
Assim, colocados na condição de signos lingüísticos, o papel dos sinais gráficos amplia-se, passando a sr vistos como significantes capazes de evocar significados, não só aqueles que o autor intenta, como também os construídos pelo leitor, em seu processo de interação.
Segundo Coseriu, se há no discurso literário um desvio proposital da norma, seu efeito é essencial à tessitura da obra. Portanto, vírgulas, reticências, dois-pontos, pontos de exclamação, entre outros sinais, obedecendo, ou não, aos padrões sintáticos habituais, são extremamente relevantes e, por isso, devem ser olhados com cuidado, especialmente pelo professor na sala de aula, já que um dos propósitos do ensino da língua portuguesa, tanto no ensino fundamental quanto no ensino médio, deve ser o desenvolvimento da sensibilidade, levando o aluno a ser capaz de perceber e utilizar, quando necessário, os recursos que potencializam a expressão lingüística. Assim sendo, qualquer estreitamento de visão poderá comprometer esse objetivo maior.
Se, muitas vezes, é possível perceber o pouco espaço que a seleção de vocabulário, a predominância de uma dada classe de palavra, a estruturação e extensão dos períodos, ou seja, a língua portuguesa em si, como expressão, ocupa quando do trabalho do professor com o texto literário, mais, ou totalmente, envolvido com a relação do texto com uma determinada escola literária, muito evidente é a ausência do assunto Pontuação nesse mesmo momento. Aliás, observar a pontuação de um dado texto quase nunca figura como propósito de algum momento da aula.
Trabalhando o texto literário na sala de aula, percebe-se que o aluno, de modo geral, envolve-se diretamente com aspectos relativos ao que comumente se chama “interpretação do texto”, na medida em que se prende diretamente ao conteúdo. Somente quando habilmente conduzido, é capaz de destacar algum fato gramatical e relacioná-lo ao sentido.
A pontuação do texto quase nunca é indicada como relevante. Tal procedimento certamente é reflexo do descuido com que é tratado o uso dos sinais gráficos.
Minha condição de professora de ensino médio faz meu olhar mais cuidadoso em relação a esse aspecto. A pontuação deve ocupar lugar de destaque igual àquele dado a outras questões lingüísticas; o aluno deve ser capaz de perceber a pontuação como um dos fatores relevantes da textualidade, em qualquer gênero textual, literário ou não, buscando explicar-lhe o emprego.
Segundo Cardoso (2003), existe uma estreita relação entre a trama textual e o emprego de sinais gráficos; ou seja, “a pontuação é o indicador de superfície do grau de distância ou de ligação entre os constituintes da representação mental subjacente ao texto”.
Ao lado de ser ferramenta de ordem essencialmente textual, mostra-se como um componente necessário para a produção de sentido, especialmente no texto literário, qualquer que seja a base estabelecida pelo escritor: sintático-semântica ou rítmico-semântica .
A abertura para outros padrões de uso, ao lado das marcas históricas já consideradas, justifica-se pelo fato de imaginar o ato criador submetido a uma camisa-de-força gramatical, entendido como único procedimento possível, seria fechá-lo, cristalizá-lo de tal modo, que o criador passaria o mero repetidor.
Ampliar, pois, o ângulo de visão no tocante ao emprego dos sinais gráficos é vital para que o aluno, especialmente no ensino médio, quando estabelece contatos mais sistemáticos com o texto literário, perceba de maneira plena os recursos que a língua portuguesa oferece, na condição de matéria-prima para a materialização das potencialidades lingüísticas.
Alguns exemplos do que está sendo aqui considerado podem ser apresentados nos textos a seguir.
Cidadezinha Qualquer
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar ... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus. (CUNHA, 1979: 11)
Em “Cidadezinha Qualquer”, Carlos Drummond de Andrade, mesmo não sendo considerado um escritor que tenha na ruptura com o padrão estabelecido sua marca maior, utiliza a pontuação com finalidade expressiva.
Na primeira estrofe, há um único sinal de pontuação: o ponto final, no fim da estrofe. Os sintagmas “casas entre bananeiras”, “mulheres entre laranjeiras”, “pomar”, “amor” e “cantar”, que, segundo a gramática, deveriam estar separados por vírgula, pelo fato de serem elementos de uma enumeração, dado o efeito pretendido por meio da organização descritiva da referida estrofe, tal uso não se verifica. Essa “desobediência” gramatical deve certamente estar relacionada a uma questão de conteúdo, e efetivamente está: a apresentação da cena como um todo; um retrato em que os elementos estão proximamente dispostos, constituindo uma unidade de forma e de sentido.
Na segunda estrofe, cada um dos três períodos, que constituem os versos, apresenta um ponto final. Tal procedimento remete ao fato de cada cena ocorrer a seu tempo, em separado, o que leva à associação com o ritmo lento da vida da cidade.
Na última, o conteúdo semântico do sintagma “devagar” amplia-se com uso de reticências logo a seguir. O olhar das janelas é, dessa maneira, mais vagaroso do que a caminhada do homem, do cachorro ou do burro.
Portanto, a pontuação não se mostra relevante unicamente quando se apresenta como ruptura do modelo lógico-gramatical. Afinal, a construção sintática não está destituída de sentido e, por isso, também deve ser considerada.
José Saramago, escritor anteriormente citado, também surpreende o leitor quanto ao emprego dos sinais gráficos.
O fragmento apresentado estabelece ruptura em relação ao padrão instituído. De um lado, a construção em bloco, tal como foi anteriormente citada, assemelhando-se à forma dos textos medievais; de outro, o uso especialmente “escasso” do ponto final. O texto não separa os períodos da maneira como normalmente se observa, mesmo quando o autor faz uso de períodos longos, com muitas orações subordinadas. Aqui, é possível perceber que os recortes feitos pelos pontos finais remetem à organização de blocos de sentido, envolvendo orações relacionadas por um conteúdo comum. É como se o final de cada período só pudesse ser estabelecido a partir do conjunto de orações que o forma.
Desse modo, o ritmo é aqui um elemento extremamente relevante para o sentido de cada uma dessas partes, remetendo à fala, que também se organiza em blocos de sentido, blocos esses percebidos pela entonação e pela linha melódica .
Em Saramago, não se pode, pois, limitar a pontuação à sintaxe, sob pena de não se conseguir estabelecer o sentido.
Além do seu nome próprio de José, o Sr. José também tem apelidos dos mais correntes, sem extravagâncias onomásticas, um do lado do pai, outro do lado da mãe, segundo o normal, legitimamente transmitidos, como poderíamos comprovar no registro de nascimento existente na Conservatória se a substância do caso justificasse o interesse e se o resultado da averiguação pagasse o trabalho de confirmar o que já se sabe.
No entanto, por algum desconhecido motivo, se é que decorre simplesmente da insignificância da personagem, quando Sr. José se lhe pergunta como se chama, ou quando as circuns - tâncias lhe exigem que se apresente, Sou Fulano de Tal,nunca lhe serviu de nada particular o nome completo, uma vez que os interlocutores só retêm na memória a primeira palavra dele. José, a que depois virão a acrescentar, ou não, depen - dendo do grau de confiança ou de cerimônia, a cortesia ou familiaridade do tratamento. Que, diga-se já, não vale o de senhor tanto quanto em princípio pareceria prometer, pelo menos aqui na Conservatória Geral, onde o facto de todos tratarem dessa maneira, desde o conservador ao mais recente dos auxiliares de escrita, não tem sempre o mesmo significado na prática das relações hierárquicas, podendo mesmo observar-se, nos modos de articular a breve palavra e segundo os diferentes escalões de autoridade ou os humores do momento, modulações tão distintas como sejam as da condescendência, da irritação, da ironia, do desdém, da humildade, da lisonja, o que mostra bem a que ponto podem chegar as potencialidades expressivas de duas curtíssimas emissões de voz que, à simples vista, assim reunidas, pareciam estar a dizer uma coisa só. (SARAMAGO: 1997: 19)
O fragmento apresentado estabelece ruptura em relação ao padrão instituído. De um lado, a construção em bloco, tal como foi anteriormente citada, assemelhando-se à forma dos textos medievais; de outro, o uso especialmente escasso do ponto final. O texto não separa os períodos da maneira como normalmente se observa, mesmo quando o autor faz uso de períodos longos, com muitas orações subordinadas. Aqui, é possível perceber que os recortes feitos pelos pontos finais remetem à organização de blocos de sentido, envolvendo orações relacionadas por um conteúdo comum. É como se o final de cada período só pudesse ser estabelecido a partir do conjunto de orações que o forma.
Desse modo, o ritmo é aqui um elemento extremamente relevante para o sentido de cada uma dessas partes, remetendo à fala, que também se organiza em blocos de sentido, blocos esses percebidos pela entonação e pela linha melódica.
Em Saramago, não se pode, pois, limitar a pontuação à sintaxe, sob pena de não se conseguir estabelecer o sentido.
Outro exemplo a considerar foi extraído de Heloísa Seixas.
... Pensou de repente no avô. Era um homem engraçado. Muito falante, gostava de contar histórias (...) Coisas do mundo dos homens. Outro dia mesmo ele dissera uma frase engraçada. Que a História era como a vista cansada. Quanto mais se afasta, melhor se consegue enxergar.
O menino não entendera direito, mas ficara com aquilo na cabeça. Era inteligente, seu avô. Gostava dele. Mas não sabia se concordava com isso de enxergar melhor à distância... (SEIXAS: 2003)
O trecho acima apresentado foi extraído do conto Miniatura. Ao lê-lo, como se portaria um aluno acostumado a ver a pontuação como elemento estritamente sintático?
Muito provavelmente tal aluno apontaria vários “erros”: período iniciado pela conjunção que; vírgula separando sujeito de predicado; período iniciado por mas.
Desse modo, não estará ele apto a conceber a pontuação atrelada a tempo da memória, imagem do referente, tópico e comentário, frase fragmentária como recurso de expressividade, todos fatores determinantes das escolhas feitas.
Portanto, trabalhar com o aluno a Língua Portuguesa é dar a ele todas as oportunidades possíveis de modo a fazer dele um leitor e um autor proficientes. Para tanto, é necessário que a sala de aula seja um laboratório onde as mais diferentes experiências possam ocorrer, no sentido de atingir a abrangência pretendida com o estudo da língua. Nesse aspecto, o emprego dos sinais de pontuação deve ser extremamente valorizado, na medida em que importantes matizes traz ao texto, especialmente ao literário. Desse modo, não pode o estudo da pontuação prender-se ao padrão lógico-sintático estabelecido pela gramática. Ao contrário, outras formas de pontuar devem ser apresentadas, obedecendo aos aspectos rítmico-semânticos, por exemplo, no intuito de dar ao aluno condições de perceber nos sinais gráficos um instrumento primoroso na produção de sentido.
REFERÊNCIAS
BECHARA, Evanildo. Moderna gramática portuguesa. Rio de Janeiro: Lucerna, 1999.
BERARDINELLI, Cleonice. Antologia do teatro de Gil Vicente. Rio de Janeiro: Grifo,1971.
CAL, Ernesto Guerra da. Lengua y estilo de Eça de Queiroz. Universidade, 1954.
CARDOSO, Canciònila Janzkovski. A socioconstrução do texto escrito: uma perspectiva longitudinal. São Paulo: Mercado das Letras, 2003.
COSERIU, Eugenio. O homem e sua linguagem. Rio de Janeiro: Presença, 1987.
CUNHA, Celso. Regularidade e irregularidade na versificação do primeiro “Auto das Barcas” de Gil Vicente. In: Língua e verso. Lisboa: Sá da costa, 1984. (José Olympio. O melhor da poesia brasileira. Rio de Janeiro, 1979).
SARAMAGO, José. Todos os nomes. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
SEIXAS, Heloísa. “Miniatura”. Domingo. Rio de Janeiro: Jornal do Brasil, 13 de julho de 2003.