A ESCRITA MIGRANTE DE SÉRGIO KOKIS
Renato Venâncio Henriques de Sousa (UERJ)
A expressão “escrita migrante”, citada no título de nossa comunicação, alude à produção de autores estrangeiros radicados na província francófona de Quebec, no Canadá, e que utilizam o francês em suas obras. Esses neo-quebequenses, como são denominados, são ora emigrantes, ora exilados, que vivem em sua maioria em Montreal, metrópole aberta a todos os pertencimentos identitários, “cidade sonhada do trans” GRAVILI, 2000: cf. p.146). Com efeito, Montreal, como uma pequena Nova York, abriga comunidades das mais diversas origens: chinesa, “latina” (entenda-se latino-americana), italiana, judaica, haitiana, portuguesa... Não se pode esquecer que se trata de uma cidade cindida em duas, onde se encontram regiões majoritariamente francófonas e outras, com uma grande concentração de anglófonos. Uma tal situação lingüística que poderíamos denominar de “babélica”, não deixa de ser instigante e estimulante como “material” passível de fecundar a produção literária.
Segundo Eurídice Figueiredo,
O efeito corrosivo dessa literatura que se convencionou chamar de migrante ainda está para ser elaborado, digerido e metabolizado. Escritores como Émile Ollivier, Sérgio Kokis, Stanley Péan, Marco Micone, e Dany Lafferière recriam, através de suas ficções, memórias de seus países de origem, quiçá muito mais sonhadas do que propriamente vividas. Vozes dissonantes vindas de várias partes do globo se inserem agora na literatura do Quebec, criando um fenômeno de transculturação jamais visto antes no Canadá, que tradicionalmente acolhia imigrantes oriundos sobretudo da França e do Reino Unido. (PORTO, 2000: 83)
Os textos da escrita migrante são marcados pela experiência do exílio, pelo desejo de narrar o itinerário de perdas e danos que levaram esses homens e mulheres a deixar para trás sua terra natal, sua língua, sua cultura, enfim sua história, que renasce como ficção, freqüentemente de caráter autobiográfico, pelo viés da escrita migrante. Literatura sem fronteiras, urdida à margem, na interseção dos discursos de formação da literatura dita nacional, no caso, a literatura quebequense. Esta última, na esteira do debate promovido pelas instâncias legitimadoras da instituição literária, num esforço de redefinição de seus próprios contornos, acolherá, não sem alguns escorregões e apelos à especificidade étnica da prata da casa, caso extremo de preconceito literário no limite do racismo, os textos outros, as dicções dos outros.
Nos anos oitenta, diversos críticos quebequenses vão se interessar pela produção dos escritores migrantes. Eles acabarão por interrogar-se sobre os desafios e riscos representados pelo surgimento de uma escrita que afeta e questiona tanto a instituição literária quanto a sociedade como um todo. Desde então, percebe-se que
la mosaïque des cultures, concentrées majoritairement dans la ville de Montréal, entraîne donc une redéfinition de l’identité québécoise. Dans la conscience publique s’impose le constat de l’hétérogénéité culturelle du Québec. (GAUTHIER, 1997: 32)
O nome de Sérgio Kokis, escritor brasileiro de língua francesa radicado no Canadá ou escritor canadense de origem brasileira... (como se pode notar, os problemas colocados por estes autores “alophones”, “neo-quebequenses” ou coisa que o valha, começam na tentativa de enquadrá-los em termos de pertencimento a uma dada literatura nacional), como dizíamos, o nome de Sérgio Kokis parece impor-se, naturalmente, aos estudiosos brasileiros da literatura quebequense contemporânea. A publicação de seu primeiro romance, Le pavillon des miroirs (KOKIS, 1994), em 1994, texto que está no centro de nossa reflexão teórica, irá projetá-lo no cenário literário do Quebec. A consagração do público e da crítica materializa-se em quatro prêmios: Grand Prix du livre de la ville de Montréal 1994, Prix de l’Académie des lettres du Québec 1994, Prix Québec-Paris 1995 e Prix Desjardins du roman du Salon du livre de Québec 1995. Além de autor de romances e de ensaios sobre estética, Kokis dedica-se também à pintura.
Nascido no Rio de Janeiro, em 1944, o escritor exerceu diversas atividades, que vão do jornalismo à política, passando pelo magistério, pelo comércio e pela aviação internacional. Formado em Filosofia pela Faculdade Nacional de Filosofia, em 1966, Kokis participou ativamente das lutas estudantis que sacudiam a universidade brasileira, vindo a sofrer perseguições policiais durante a Revolução de 1964. Em 1967, publica um ensaio intitulado Franz Kafka e a expressão da realidade (KOKIS, 1967). Bolsista do governo francês na Universidade de Estrasburgo, de 1967 a 1968, onde aprofunda seus estudos em Psicologia e metodologia fenomenológica, Kokis transfere-se para o Canadá, país do qual é cidadão naturalizado desde 1975 e onde vive até hoje. Doutorado em psicologia, o autor de Le pavillon des miroirs, trabalhou como psicólogo clínico de 1969 a 1996, quando passou a se dedicar exclusivamente à literatura e às artes plásticas.
O romance de Kokis, escrito na primeira pessoa, se estrutura em capítulos que oscilam entre o passado do país de origem, reinventado/recuperado pela memória do adulto e o presente da enunciação, no qual o artista exilado no país de adoção, reflete sobre o sentido das imagens e dos fantasmas que povoam suas lembranças e suas telas no ateliê transformado em sala de espelhos deformantes. Considerando que o narrador intra-diegético é escritor e pintor, como o próprio Kokis, que cria um romance “a partir de algumas verdades autobiográficas”, Eurídice Figueiredo fala de “memórias ficcionais”. “Alternando o passado no Brasil como o presente no Canadá, seu alter ego retrata a situação do exilado, do imigrante que transita pela transculturação, pela hibridização, pelo nomadismo.” (FIGUEIREDO & PRATI, 1997: 48) Como outros textos da chamada escrita migrante, o texto de Kokis põe em cena a questão da escrita do exílio, mas, sobretudo, chama a atenção para aquilo que, na e pela escrita, participa da perda, dos desvios de língua e de identidade. Como escreve Régine Robin:
...L’écriture serait trajet, parcours, cette objectivation qui viendrait à tout instant rappeler qu’il y a de la perte, qu’on n’écrit jamais que dans cette perte, que rien ne viendra combler le manque, mais que l’acte d’écrire, l’impossibilité d’écrire dans l’écriture même est la tentative toujours déçue et toujours recommencée de dénouer la perte, l’apprivoiser, la mettre à distance; la tentative de suturer tout en sachant que l‘on ne peut y arriver.
Écrire c’est toujours jouer, déjouer la mort, la filiation, le roman familial, l’Histoire. (ROBIN, 1993: 10)
Com a publicação da tradução para o português de Le pavillon des miroirs (A casa dos espelhos, KOKIS, 2000), de autoria de Marcos de Castro, o público brasileiro pode, a partir de agora, julgar o talento deste escritor. Como se trata de um relato em parte autobiográfico, ele dá visibilidade ao país de origem, através da evocação de histórias da infância e adolescência do narrador, nas quais estão presentes momentos marcantes de toda uma época vistos pelo prisma de um jovem carioca de origem humilde.
Percebe-se com freqüência no texto de Kokis, a presença da língua portuguesa como um ruído, uma música em surdina, a solapar o estatuto da língua literária. Neste sentido, pode-se pensar o trabalho do tradutor neste caso como o “negativo” do texto em francês, o que não se aplicaria a outros textos escritos em francês, ainda que por “estrangeiros”. Naturalmente que esta idéia não resiste a um exame rigoroso, sendo antes um pretexto para se ler o ato tradutório como o ato de “repor”, muito além da perda e da traição tão freqüentemente aludidos. Trata-se, para o tradutor de Kokis, de corrigir pequenas imprecisões e deslizes da memória, trata-se também e sobretudo de traduzir não apenas de uma língua para outra, mas entre-línguas (o melhor da tradução, como na leitura em geral está nas entrelinhas). Entretanto, a escrita, a leitura e a tradução são hiper-ativas de nascença, não sabem parar quietas no mesmo lugar, daí ser necessário voltar às imagens de instabilidade, de falta, falha, fenda, vazio da escrita e escrita do vazio. Recorremos, mais uma vez, a Régine Robin, que ao se referir à complexidade da questão da identidade cultural no Quebec, fala da “non-coïncidence de la langue et de la langue, non seulement de la langue et de sa traduction dans une autre langue, non seulement des mots et des choses, mais de l’énonciateur avec lui-même, mais des mots à eux-mêmes” (ROBIN, 1993: 12, grifo nosso).
A especificidade da escrita migrante, sua vinculação a, no mínimo dois universos culturais e lingüísticos, aponta para um “estrabismo” e, em alguns casos, para uma “esquizofrenia” da identidade migrante. A referência à esquizofrenia com relação à condição do escritor exilado aparece não apenas entre os críticos, mas é utilizada pelos próprios autores. Estes últimos, ao relatarem sua vivência do exílio na língua do Outro, no caso o francês, são levados a considerar, ainda que idealmente, a existência de dois públicos leitores: o de sua terra natal e o de seu novo país. Vivendo literariamente falando das imagens do passado, os escritores migrantes do Quebec, esses malabaristas da palavra, parecem querer equilibrar suas lembranças sobre o fio tênue de um presente provisório. Daí essa sensação de se viver cortado da realidade, evocada por Émile Ollivier, escritor da diáspora haitiana em Montreal:
Cette schizophrénie, on va la rencontrer probablement tout au long de ma production. J’ai tendance à dire que je suis Haïtien la nuit, Québécois le jour. Et je pense effectivement que c’est une situation de schizophrénie... c’est-à-dire de quelqu’un qui est coupé de la réalité. Je suis coupé de la réalité haïtienne, mais je le suis également de la réalite québécoise. Encore que ces deux réalités travaillent mes fantasmes, travaillent mes désirs, mes joies... mes travaux et mes jours (JONASSAINT, 1986: 88).
Em Le pavillon des miroirs percebe-se o esforço de Kokis em tentar diminuir a distância que separa o universo retratado no livro, do leitor de língua francesa, ao mesmo tempo em que multiplica as referências históricas, culturais e lingüísticas desconhecidas para o “leitor não-iniciado”. Ao falar da realidade brasileira num romance escrito em francês, ele vai provocar uma desterritorialização da língua, uma vez que o leitor francófono desconhece as referências culturais, sociais e históricas presentes no texto, bem como as palavras e expressões de que o autor lança mão para recriar seu passado numa língua estrangeira.
Eurídice Figueiredo (FIGUEIREDO, 1996: 236), distingue quatro procedimentos empregados pelo autor, a saber: 1. a nomeação de uma geografia urbana, principalmente em relação à cidade do Rio de Janeiro, jamais nomeada, mas abundantemente descrita, além de outras cidades e capitais, quando da viagem do narrador ao Nordeste; 2. as referências à cultura popular (o carnaval, as festas religiosas) e à cultura oficial (desfile de 7 de setembro); 3. a inserção de palavras do português, explicadas ou traduzidas em notas de rodapé, por exemplo: dépêche por despacho (de macumba), zone por zona (de prostituição), lance-parfum por lança-perfume; 4. uso de expressões brasileiras que evocam idéias populares, crendices ou estereótipos traduzidas para o francês, numa tentativa de reterritorialização, como se percebe nos seguintes exemplos: “Le nègre, lorsqu’il ne salit pas à l’entrée, salit à la sortie.” (KOKIS: 1994: 37); “On dit que celui qui donne un coup de pied dans un paquet de macumba va mourir dans l’année” (KOKIS, 1994: 56); “La nuit venue, ce ne sont pas nos pieds qu’ils viendront tirer.” (KOKIS, 1994: 80) .
Filho de um eletricista nascido na Letônia - é importante ressaltar que a ascendência estrangeira do pai, imigrante, tem um papel decisivo para se entender as escolhas do personagem-narrador - e de uma costureira de origem paulista, o jovem narrador é o segundo dos três filhos do casal. A família mora na Avenida Presidente Vargas, em pleno centro da cidade; mais tarde irão se mudar para as imediações da Academia Brasileira de Letras, próximo ao aterro. Uma tia, Lili, que tem 15 anos no início do livro, completa o quadro de uma família aparentemente “comum”. Só aparentemente, já que, um pouco à maneira de diversas obras de Nelson Rodrigues, logo a família em questão começará a “apodrecer”...
Pelos olhos do narrador tomamos contato com o Rio de Janeiro da década de cinqüenta. Segundo Sébastien Joachin, no artigo intitulado “Québécité et transculture: Sérgio Kokis, une difficile traversée des frontières”, “l’oeil de l’enfant et de l’adolescent carioca est un oeil-caméra avide d’images, de toute sortes d’images: photographies, films, illustations de magazines, bandes dessinées. Sont également croquées sur le vif les comportements, les gestes, les mouvements surtout.” (JOACHIN, 2002: 3)
De um lado, há o universo da mãe, marcado pela espiritualidade popular e sincrética, onde convivem, lado a lado, a Igreja católica - ela gostaria que um dos filhos fosse padre (cf. KOKIS, 1994: 96) e chega a pressionar os mais novos a participarem da missa como coroinhas - o centro espírita e as seções de macumba organizadas em casa e oficiadas por uma preta velha. Assim como a ida à festa de Santo Antônio, no Mosteiro consagrado ao santo, descrita com riqueza de detalhes no primeiro capítulo, as abluções de “água de Lua” têm como objetivo único da vida de um bando de mulheres ociosas e frívolas encontrar um marido. Esse universo feminino compreende, além de Lili e mais tarde a empregada, as tias e a avó, que moram em São Paulo, além das amigas e clientes que freqüentam o minúsculo apartamento da Av. Presidente Vargas. As conversas giram em torno do único assunto que parece ocupar as mentes dessas jovens e nem tanto cujas leituras se resumem às fotonovelas: tagarela-se sobre os homens e como fazer para agarrar o seu.De outro lado, o pai, homem pragmático, que acredita na educação como meio de ascensão social, o que o faz pôr os filhos no Colégio Anglo-Americano, já que, para ele “o inglês é importante na vida, [...] é a língua do sucesso” (KOKIS, 2000: 96), mostra-se extremamente crítico em relação à espiritualidade e às superstições da esposa. Confiante no progresso, inventor visionário, adepto de inovações tecnológicas no campo da eletricidade, ele tenta desenvolver, em sua oficina, nem sempre com sucesso, protótipos de lâmpadas fluorescentes associadas ao acrílico (Cf. KOKIS, 1994: 130). Sua tentativa em tornar-se um pequeno empresário, acabará por arruiná-lo economicamente. Aos domingos, antes da fase “carola” da mãe, que obrigará os meninos a freqüentar regularmente a igreja, os filhos “pertencem” ao pai, que os leva para passear. Ao se referir à geografia da cidade que, como dissemos, nunca é expressamente nomeada, evocando lugares como o campo de Santana, a praça XV, a praça da República, o Jardim Botânico, ou a acontecimentos marcantes da época, Kokis comete imprecisões compreensíveis se levarmos em conta a distância temporal e espacial - basta dizer que ele nunca mais voltou ao Brasil - em relação aos fatos narrados.
Mas o que se afigura chocante são as descrições de uma cidade coberta de sujeira e de cadáveres, cheia de mendigos e crianças famintas abandonadas pelas ruas, o que só faz reforçar os clichês reproduzidos pela imprensa dos países do Hemisfério Norte sobre o Brasil. Num desses passeios, lemos o seguinte:
Nossos domingos em compensação são bem melhores, como se fossem iluminados. Sempre faz bom tempo aos domingos e isso se vê desde que amanhece. Saímos com meu pai, só nós, os homens. [...] Andamos devagar para ver, sem objetivo certo. Papai examina tudo: os despachos de macumba, os mendigos que dormem, os mortos no caminho. As vitrines, os carros que passam, os cartazes nas paredes, as latas de lixo que transbordam, os pombos ou a moenda da barraca de caldo de cana, tudo para ele é objeto de observação minuciosa. (KOKIS, 2000: 49, grifo nosso)
Notamos, nesta passagem, um traço importante da personalidade do pai, com quem o narrador se identifica totalmente, traço esse que será determinante para o aprendizado do futuro pintor. Com o pai, o jovem narrador aprendeu a olhar, a observar (Cf. COELHO, 2003: 116. ), verbos que aparecem com muita freqüência no romance. Mais tarde, em seu ateliê canadense, nosso herói que desde a infância tinha o hábito de colecionar objetos, poderá entregar-se a seu “vício”, a pintura, graças à evocação das imagens e dos fantasmas do passado, que constituem a matéria-prima de suas criações. Aos poucos, à medida em que o pequeno narrador cresce e amadurece, vamos penetrando nos espaços escuros da família que, ocupando agora um apartamento mais amplo, próximo ao aterro do Flamengo, não pode mais esconder a verdade quanto às atividades da mãe, que acabou abandonando o ofício de costureira para melhor administrar seu “negócio”. Na verdade, ela utiliza seu domicílio para os programas de prostitutas que agencia, ou aluga os quartos para as aventuras extraconjugais de homens anônimos que trabalham no centro da cidade. O pai parece conformar-se com essa situação humilhante, em parte porque suas escolhas profissionais redundaram num fracasso, o que ele prefere não admitir, em parte porque seu isolamento num mundo dominado pelas mulheres o condena ao silêncio.
Às reflexões sobre o processo de criação do artista exilado, que pontuam a narrativa, somam-se os comentários sobre a sociedade que o acolheu. Assim como o escritor lança mão de alguns artifícios para aproximar seu leitor de uma realidade desconhecida, como a (nem sempre bem-sucedida) tradução de vocábulos e expressões, o uso de notas de pé de páginas, entre outros, o pintor terá que esclarecer seu público quanto aos aspectos próprios à cultura brasileira retratados em suas telas. Trata-se, como no romance, de uma operação tradutória em sentido amplo, visando diminuir as distâncias entre o observador e a obra e permitindo uma “leitura” com o mínimo de ruídos possíveis. Se as imagens do Brasil reconstituídas pela memória do narrador são extremamente negativas, o julgamento que ele faz sobre o Canadá, e mais particularmente sobre o Quebec, não é menos severo. Apesar de mencionar os benefícios materiais e as conquistas sociais de uma sociedade rica e desenvolvida como a canadense, conhecida por sua vocação de abertura aos estrangeiros que para lá emigram todos os anos, ele não deixa de lançar um olhar crítico sobre suas mazelas:
Alguma coisa em forma de estupros e de guetos, de gente cercada, de casamentos sinistros aos milhares, negros que erram pelas ruas, decadências intravenosas, mocinhas vendidas, suicídios em cadeia e até um grãozinho de fome. Engravatados em massa, pendurados nos fono-computadores e temerosos de seus músculos cardíacos, que correm para lugar nenhum e se deixam retalhar por cirurgias embelezadoras; cheios de gordura e, entediando-se mortalmente, com mulheres grotescas e velhos malandros que mantêm seu lugar gemendo. (KOKIS, 2000: 301 e 302)
No entanto, o narrador, marcado pela errância, verdadeiro “exilé de l’intérieur” [exilado em seu íntimo], confessa ter se adaptado ao conforto, ao bem-estar, à perspectiva de um verdadeiro passaporte capaz de substituir a identidade de vagabundo (Cf. KOKIS, 2000: 297 e 298) que sempre o caracterizou. Acreditamos que, ainda que não tivesse emigrado, o herói de Kokis, como seu autor, continuaria sendo um estrangeiro em sua terra, uma vez que sempre se identificou com as culturas e as línguas estrangeiras, com suas promessas de partida (cf. KOKIS, 2000: 135). Da mesma forma, ao avistar os navios vindos de outros países durante a travessia da Baía da Guanabara, sentia uma nostalgia agradável (cf., KOKIS, 2000: 181). Pois, como seu pai, ele pertence à “raça” dos eternos exilados, que nos interpelam com sua estranheza, fazendo com que nos lembremos das palavras de Julia Kristeva, em seu ensaio Estrangeiros para nós mesmos,:
Estranhamente, o estrangeiro habita em nós: ele é a face oculta da nossa identidade, o espaço que arruína a nossa morada, o tempo em que se afundam o entendimento e a simpatia. Por reconhecê-lo em nós, poupamo-nos de ter que detestá-lo em si mesmo. Sintoma que torna o “nós” precisamente problemático, talvez impossível, o estrangeiro começa quando surge a consciência de minha diferença e termina quando nos reconhecemos todos estrangeiros, rebeldes aos vínculos, às comunidades. (KRISTEVA, 1994: 9, grifo nosso)
Referências Bibliográficas
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