Traduzindo o universo do futebol feminino

Leda Maria da Costa (UERJ)

 

A metáfora “tradução cultural” surge num contexto em que a teoria da tradução opera relevantes mudanças de perspectivas, no qual a idéia de dependência em relação ao original é superada pela possibilidade de recriação e autonomia. Assim sendo, a metáfora da “tradução cultural” só é possível numa época em que traduzir não pode mais ser compreendida como uma atividade reprodutora e numa época em que há um gradativo enfraquecimento de certas bases que sustentavam a cultura ocidental. Teóricos da cultura como Homi Bhabha, Stuart Hall e Peter Burke utilizaram a hipótese da tradução cultural como um mecanismo para pensar questões como imigração, nacionalismo, identidade. Mas o que significa essa metáfora?

Os estudos sobre hibridismos culturais têm ganhado cada vez mais força. Uma possível explicação para tal fenômeno encontra-se no também cada vez mais constante movimento de encontros culturais. Por sua vez esse movimento insere-se num outro mais amplo: a globalização. O mundo nunca esteve tão encurtado como nos últimos anos. As distâncias estão reduzidas e as trocas culturais ganharam uma dimensão mundial, principalmente com a participação do rádio, da televisão e atualmente da internet. As territorialidades são transcendidas, pois “filmes, anúncios publicitários, música popular e séries televisivas são formas de expressão que circulam no seu interior [civilização] independentemente de suas origens.” (Ortiz, 60)

Mas exemplos de hibridismos culturais sempre podem ser buscados ao longo da história. O livro de Martin Bernal, Atenas Negra, nos aponta para uma Grécia que já na Antiguidade, mostrava-se mista e não tão branca como imaginamos. Aqui no Brasil, por exemplo, Gilberto Freyre em Casa-Grande & Senzala publicado em 1933, já postulava uma cultura brasileira marcada pelo hibridismo de raça e cultura. No entanto, a mistura durante um longo período, foi tida como um problema. Mas a verdade é que os encontros entre culturas diferentes sempre houve e grande parte da imagem que temos de nós mesmos e de outros países é fruto desse fenômeno. O que dizer das batatas fritas, uma mania americana, mas cuja invenção cabe a França. Ou o próprio caso da estátua da Liberdade que inicialmente tratava-se de um presente dos franceses e que com o tempo se transformou num símbolo dos EUA. E o que dizer do futebol brasileiro?

São casos em que a metáfora da tradução cultural funciona bem. Assim como na tradução lingüística há na tradução cultural um elemento estrangeiro que passa por um processo de interpretação a partir do qual se dará sua inserção e incorporação na cultura receptora. Como afirma Peter Burke: “O termo ‘tradução’ tem a grande vantagem de enfatizar o trabalho que tem que ser feito por indivíduos ou grupos para domesticar o que é estrangeiro, em outras palavras, as estratégias e táticas empregadas” (2002, 59). A tradução cultural implica uma idéia de adaptação o que faz com que qualquer referência à idéia de imitação seja insuficiente e inadequada para entendermos o encontro de culturas diferentes. Implica, também, o reconhecimento de que traduzir é uma prática performativa de interpretação e adaptação do elemento externo.

A idéia de tradução nos instiga a problematizar questões como origem, essência, raízes que, por sua vez, remetem a um universo pouco mutável. Em toda parte, estão emergindo identidades culturais que não são fixas, mas que transitam entre diferentes posições; que retiram seus recursos, ao mesmo tempo, de diferentes tradições culturais; e que são o produto desses complicados cruzamentos e misturas culturais que são cada vez mais comuns. Muitos se inclinam a compreender a identidade, na era da globalização, como estando destinada a acabar num lugar ou noutro. Ou a desaparecem através da assimilação total e da homogeneização cultural. Outros imaginam que a solução estaria num possível retorno a "raízes" culturais como forma de deter a marcha da mundialização. Como afirma Stuart Hall - ele mesmo exemplo de uma identidade na condição liminar - a tradução é uma solução para estes dilemas:

Pois há uma outra possibilidade: a da tradução. Este conceito descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam as fronteiras naturais, compostas por pessoas que forma dispersadas para sempre de sua terra natal (...).

As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural "perdida" ou de absolutismo étnico. Elas estão irrevogavelmente traduzidas. A palavra "tradução", observa Salman Rushdie, "vem, etimologicamente, do latim, significando "transferir"; "transportar entre fronteiras". Escritores migrantes, como ele, que pertencem a dois mundos ao mesmo tempo, "tendo sido transportados através do mundo (...) são homens traduzidos" (Rushdie, 1991). Eles são o produto das novas diásporas criadas pelas migrações pós-coloniais. Eles devem aprender a habitar, no mínimo, duas identidades, a falar duas linguagens culturais, a traduzir e a negociar entre elas. As culturas híbridas constituem um dos diversos tipos de identidade distintivamente novos produzidos na era da modernidade tardia. Há muitos outros exemplos a serem descobertos. (2004: 30)

Homens traduzidos, culturas traduzidas, metáfora para compreender processos de encontros entre as diferenças. Encontros valorizados e amplamente estudados atualmente, mas que, como já foi dito anteriormente, sempre existiram na história da humanidade. Especificamente, no caso brasileiro, Gilberto Freyre já afirmava que a sociedade brasileira era “uma sociedade híbrida, mestiça, cheia de raízes ameríndias e africanas e não apenas européias” (1978, 153). Para tornar mais claro os processos de tradução cultural o caso do jogo de futebol que foi introduzido no Brasil em 1893 e que ao longo dos anos foi “traduzido”.

No caso específico do futebol há algumas especificidades nesse esporte que o tornam muito aberto a interpretações e traduções. Para explicarmos esse fenômeno recorremos às considerações que Luiz Henrique de Toledo faz acerca do futebol. Segundo o antropólogo, o referido jogo possui três naturezas. A primeira delas se refere às regras que dão universalidade ao futebol. A segunda é formada pelas várias formas de se jogar o futebol. Tratam-se das táticas empregadas por diferentes países e treinadores baseadas na disposição dos jogadores em campo. Tal natureza não é limitada pela regra, ou seja, diferentemente de outros jogos, as regras do futebol não determinam as formas de jogar. Já a terceira natureza abriga as representações coletivas que legitima determinadas táticas e estilos de jogo (cf Toledo, 2000: 38-52). O diálogo entre essas três naturezas faz do futebol um esporte marcado pela imponderabilidade e aberto às representações coletivas. E, nesse sentido, extremamente passível de ser traduzido.

A tradução que o Brasil realiza do futebol pode ser verificada ao longo da história desse esporte no Brasil. Esse processo tradutório é muito semelhante à própria história da tradução. Inicialmente, havia uma excessiva preocupação de fidelidade ao “original” inglês. Tal preocupação tinha como finalidade conferir distinção aos praticantes de futebol. Mas também visava distinguir os bons e os maus exemplos de foot-ballers. Essa tentativa de reprodução podia ser notada em vários níveis inclusive no lingüístico através do vocabulário eivado de palavras inglesas:

A reprodução da forma pela qual o jogo era praticado na Inglaterra aparecia ainda nos termos ingleses usados no jogo, como hands, penalty, off-side. Mesmo dentro de campo, eram inglesas as intervenções dos jogadores para orientar o jogo dos companheiros (...) Quanto mais associados conhecessem a tecnologia inglesa do jogo, melhor seria o time formado por um clube (...) (Pereira, 2000: 38)

Tal tentativa de imitação não deixou de ter seus críticos entre os quais destaca-se o nome de Lima Barreto. O escritor carioca foi um ferrenho opositor da prática do futebol e deixou essa posição clara em suas crônicas. Chegou a fundar “a liga contra o foot-ball” acusando-o de ser uma simples importação artificial e elitista. Importado da Inglaterra pelas mãos de Charles Miller foi freqüentemente acusado de ser uma simples reprodução de hábitos estrangeiros. Graciliano Ramos partilhava da mesma opinião. Por isso na crônica “Traços a esmo” enumerou alguns motivos que impossibilitariam a inserção do futebol no Brasil, pois:

Para que um costume intruso possa estabelecer-se definitivamente em um país é necessário, não só que se harmonize com a índole do povo que o vai receber, mas que o lugar a ocupar não esteja tomado por outro mais antigo, de cunho indígena. É preciso, pois, que vá preencher uma lacuna, como diz o chavão.

O do futebol não preenche coisa nenhuma, pois já temos a muito conhecida bola de palha de milho, que nossos amadores mambembes jogam com uma perícia que deixaria o mais experimentado sportman britânico de queixo caído. (Pedrosa, 1967: 166)

Apesar da profecia de Graciliano não ter se realizado, seu texto deixa claro um aspecto interessante a ser pensado. Apesar de o autor alagoano pensar em termos de autenticidade de costumes ele detecta importantes questões. Sem dúvida para um costume estrangeiro, “intruso”, conseguir ser introduzido em algum lugar é necessário que ele passe por um processo de adequação e adaptação. A necessidade de tradução se evidencia nas palavras de Graciliano, no entanto ele acreditava que o futebol jamais seria passível de tal processo. O futebol não apenas se “harmonizou com a índole do povo” como se encaixou perfeitamente em nossa cultura e se transformou num dos nossos símbolos de nacionalidade.

Inicialmente não passava de uma atividade de lazer que poucos podiam ter. Sofreu combates de todos que viam nele uma imitação de hábitos estrangeiros. No entanto tal prática esportiva com o passar dos anos será incorporado de tal modo aos costumes nacionais que nos dará a impressão que consistia num jogo autenticamente nacional. E se inicialmente o importante era tentarmos ser fiéis ao futebol inglês, chegará um momento em que reconheceremos que somente a recriação desse “original” faria do Brasil o país do futebol.

Na nossa tradução de uma tradição inglesa - o futebol -, a ênfase recai sobre a corporalidade e faz desse esporte quase uma extensão de um salão de dança. Misturando várias influências já presentes em nossa cultura o futebol brasileiro vai ganhando face própria. É através do destaque dado ao corpo que Gilberto Freyre - que já em 1933 havia chamado atenção para a sociedade brasileira como aquela dona de uma modernidade alternativa devido às suas características híbridas - vê que o futebol brasileiro já não mais podia ser visto como uma cópia dos ingleses, mas sim como algo que já estava plenamente incorporado de características da cultura nacional.

Essa perspectiva intelectual, teórica, surge da verificação empírica do modo “diferente” pelo qual nossos jogadores corriam atrás da bola. Esse diferencial seria resultado da soma de influências vindas da capoeira, da molecagem baiana, da malandragem carioca e até mesmo do cangaceirismo. No prefácio do livro de Mário Filho O negro no futebol, de 1947, Freyre faz uma das primeiras referências ao fato de que o futebol no Brasil começa a ganhar contornos próprios: “E era natural que tomasse aqui o caráter particularmente brasileiro que tomou. Pois tornou-se o meio de expressão, moral e socialmente aprovado pela nossa gente” (1978: 154).

Alguns anos depois o sociólogo de Apipucos comenta que:

(...) o futebol brasileiro afastou-se do bem ordenado original britânico para tornar-se a dança cheia de surpresas irracionais e de variações dionisíacas que é. (FREYRE, 1964: XI).

Assim nos tornamos “o país do futebol”. Mas é importante inserirmos um parêntese nessa afirmativa. Na verdade, somos o país do futebol (masculino). A configuração tanto simbólica quanto concreta dos espaços ocupados pelo futebol pertence, primordialmente, aos homens. É a partir do privilégio dado ao gênero masculino que construímos um alicerce que sustenta a identidade que nos define e que constitui aquilo que acreditamos caracterizar nossa mais “autêntica” brasilidade. Sendo assim no processo de tradução, interpretação e incorporação do futebol em terras brasileiras as mulheres ficaram um pouco de lado e muitas vezes representadas como algo quase que incompatível com o futebol.

A incorporação do elemento feminino no futebol foi lenta e tardia. Há tempos atrás, não considerávamos “natural” que uma mulher se tornasse uma jogadora de futebol. E natural aqui tem o sentido de algo que foge dos padrões socialmente aceitos, mas também se refere à crença de que o físico feminino era naturalmente inapropriado para certas práticas esportivas. Esportes como futebol e boxe oferecem maiores restrições às mulheres. Tanto um quanto outro são percebidos como territórios próprios à manifestação de virilidade. Por isso, no país do futebol, o futebol feminino é ainda alvo de desconfiança e de um certo estranhamento. Por isso, freqüentemente as jogadoras são chamadas de sapatões. O campeonato paulista de futebol feminino, realizado em 2001, tinha a beleza como um de seus principais critérios para a aceitação de jogadoras. O projeto elaborado em conjunto pela Pelé Sports & Marketing preconizava a necessidade de “desenvolver ações que enalteçam a beleza e a sensualidade da jogadora para atrair o público masculino” e “desenvolver ações de consultoria de imagem, estilo pessoal e treinamento de mídia com as jogadoras” (Folha de São Paulo, 16/09/2001).

A postura em campo de muitas jogadoras era - e ainda o é - tida como masculinizada. “Parecem homens!” Gritam alguns espectadores e principalmente a família que não deseja ver suas meninas jogando futebol. “Parecem um bando de mulherzinhas!” Gritam os treinadores e torcedores quando seus times jogam mal. Frases desse tipo mostram como o imaginário brasileiro tem uma razoável dificuldade de associar mulher com futebol. Por isso numa de suas crônicas João Saldanha faz o seguinte comentário: “Imaginarmos se um rapaz disposto a casar com uma moça lhe pergunta: o que é que você tem como atividade? A moça responde vigorosamente: ‘Eu sou zagueiro central de um time lá do meu bairro’, não se pode afirmar que daria em casamento este namoro (...)”.

Homens não teriam uma jogadora de futebol como esposa. Mas quando as posições se invertem entra em campo um personagem bastante conhecido no Brasil: a Maria-chuteira. As Maria-chuteiras são tão antigas quanto o futebol. E, possivelmente, anteriores às Maria-gasolina. Aquela classe de mulheres adora ir aos campos prestigiar as partidas sem, no entanto, prestar muita atenção nas mesmas. Não sabem quem é aquele sujeito de preto que fica apitando o tempo todo. Possuem uma noção muito pequena das regras do jogo. O que elas querem mesmo são os jogadores. A poetisa Ana Amélia de Mendonça, por exemplo, escreveu para o goleiro Marcos de Mendonça - que seria seu futuro marido - versos comparando-o com um deus do Olimpo dando ao perfil do atleta cores épicas e viris: “Ao ver-te saltar para um torneio atlético/Sereno, forte, audaz como um vulto da Ilíada/Todo o meu ser vibrou num ímpeto frenético. Como diante de um grego, heróis de uma Olimpíada” (apud Pedrosa, 109).

Mas Ana Amélia era um caso diverso. Quando aos 13, volta da Europa traz consigo livros de poesia e algumas bolas de futebol. Transformou-se, então, numa incentivadora do esporte bretão chegando mesmo a treinar os operários da fábrica de seu pai. Confessou-se certa vez que gostava de praticar o “futebol-força” e que já havia deixado sua irmã desacordada após uma botinada (Coutinho, 114). Mas para ser uma Maria-chuteira é necessário interessar-se por alguém pelo simples fato dele ser jogador de futebol. E assim buscar a realização de fantasias. Ou buscar o status dado pelo futebol.

Algumas torcidas organizadas femininas que vem sendo criadas têm como lema uma oposição às Maria-chuteiras. Uma bom exemplo é o núcleo feminino da Dragões da Real (torcida organizada do São Paulo Futebol Clube) que tentam se justificar como “autênticas” torcedoras, pois: “ ‘Marias chuteiras’. Era assim rotulada a presença feminina nos estádios brasileiros pelos mais machistas. Se referiam desta forma às mulheres que iam aos estádios não para torcer, mas para ver seus ídolos. Podemos dizer que esta visão sobre a presença feminina quase não existe, embora as “marias chuteiras” continuem existindo, hoje são absoluta minoria nos estádios. Logo foi percebida a presença das verdadeiras torcedoras em grandes clássicos, em caravanas para outros estados e até outros países, presença esta que não podia ser ignorada” (www.dragoesdareal.com.br/
nucleos/femin.html
)

A participação feminina nos estádios de futebol foi maior do que muitos possam imaginar. No início do século XX, quando o futebol consistia num evento social da moda, era muito grande o número de senhoras e senhoritas acompanhando as partidas. Já com a popularização do esporte, essa freqüência diminui um pouco. Na copa do Mundo de 50 a presença delas é festejada por cronistas esportivos que vêem no fato um sinal de que o Maracanã ficaria mais gracioso e belo (MOURA, 1998). Hoje em dia a imprensa parece agir do mesmo modo, por isso as câmeras televisivas privilegiam a captação de rostos femininos nas arquibancadas. Por não estar associada à imagem de violência a participação das mulheres nos estádio pode funcionar como uma boa propaganda para o futebol. E o comparecimento delas não só vem aumentado como se especializando.

Muitas torcidas organizadas têm ganhado versões femininas. Camisa 12 (Vasco da Gama), Dragões da Real (São Paulo), Gatas da Fiel (Payssandu) etc. O território das organizadas, que antes era masculino, vem nos últimos anos incorporando mulheres para comporem seus quadros. Essas instituições formam-se a partir do desejo de demarcar territórios e torná-los quase intransponíveis (Toledo, 1996). Em parte, elas representam exemplos de resistência às tendências atuais de uma cultura cada vez mais híbrida e globalizada. Enquanto a excessiva mobilidade contemporânea tem enfraquecido o sentido de conceitos como nação, lugar e casa, é perceptível que muitas torcidas organizam-se em torno da noção de pertencimento. Caminham na direção contrária dos não-lugares de Marc Augé (2004). Suas sedes congregam valores e memórias que são compartilhadas por pessoas de várias idades, localidades, crenças religiosas e origem social. No entanto, essas diferenças tendem a ser englobadas por um laço que os unifica: o emblema de uma torcida. Ser da Força Jovem, ser da Raça Rubro Negra ou da Gaviões da Fiel confere ao indivíduo status diferenciado. Optar por uma dessas instituições significar torná-la parte de sua identidade que deseja ser única e impenetrável. Muitas dessas torcidas são, como o oriente e o ocidente de Samuel Huntington, universos incompatíveis (1997: 383). As facções de torcidas femininas buscam uma diferenciação a mais. Assim como todo membro de uma organizada, querem diferenciar-se dos torcedores comuns. Mas desejam também se diferenciar na sua condição de mulher.

Seja como espectadora ou praticante, a incorporação da mulher em diversas modalidades esportivas, além do futebol, apontam para importantes mudanças na cultura contemporânea. Apontam para novos espaços a serem ocupados pelas mulheres. Espaços cada vez mais públicos. Nossa percepção quanto aos seus papéis e ao seu corpo conseqüentemente acompanham essas transformações. O ideal de beleza feminina vem sofrendo forte influência do mundo esportivo. Com isso, deixou de ser tão absurdo ver um corpo feminino um pouco mais musculoso do que de costume. Ao contrário, as atletas têm se tornado símbolos de beleza. Beleza aliada à saúde. Esse cenário é muito diferente de anos atrás. Nos jogos da primavera da década de 1950, por exemplo, que contavam com a participação de alunos das algumas escolas cariocas, a garota Lia Miranda havia sido campeã em salto ornamental, natação, balé aquático e outras tantas modalidades. Numa matéria de Ronaldo Bôscoli publicada pela revista Manchete lê-se que apesar de Lia se dedicar a tantos esportes “a harmonia de sua plástica feminina não se compromete nem se perturba mentalmente com tantos êxitos. Orgulha-se apenas de ser uma boa estudante, com projetos simples de casar-se e ser uma dona de casa bem organizada”.[1] A opção do casamento deixou de ser uma obrigação para a mulher e também uma fonte de orgulho. A carreira, inclusive a de esportista, tem sido cada vez mais priorizada. Numa recente pesquisa realizada pela IUPERJ (Instituto Universitário de Pesquisa do Rio de Janeiro) demonstra que há um enfraquecimento dos conceitos tradicionais na sociedade brasileira com relação, por exemplo, à importância do casamento. Das entrevistadas apenas 44% afirmam considerar as mulheres casadas mais felizes do que as solteiras.[2]

Em várias atividades elas se tornaram destaque. Especificamente no que se refere ao esporte nomes como Nadia Comaneci são mundialmente conhecidos. No futebol somente a seleção feminina estará competindo nos Jogos. Mas no caso delas ainda falta uma longa estrada até que sejam vistas com mais “naturalidade” pelos brasileiros. E isso gera uma série de dificuldades para quem decide se tornar uma jogadora. Faltam patrocínio, investimento e público. Enquanto há os hinos-Ronaldinho, hinos-Romário, e vários outros, as mulheres do futebol, no Brasil, ainda não foram cantadas (Sloterdjik, 2003). Para o serem precisam sair do país e buscar reconhecimento em outro lugar. Kátia Cilene, Pretinha e Marta, integram equipes americanas de futebol feminino. Lá, dão autógrafos. Recebem uma ótima remuneração. E raramente são questionadas por jogarem futebol. São mulheres de uma cultura viajante que levou a bola para várias partes do planeta e fez do futebol um esporte mundializado. Por não ficarem restritas somente ao aspecto local, novas possibilidades de incorporação surgem.

Na atualidade, os esportes são capazes de fascinar e mobilizar milhares de pessoas. Foram transformados em espetáculo. Um tipo de espetáculo que não tem desejado esgotar-se em si mesmo. Ao contrário, o esporte tem ganhado uma dimensão política significativa e o recente amistoso entre as seleções brasileira e haitiana são indicativos dessa hipótese. No atual contexto de extrema preocupação com possíveis confrontos bélicos entre nações, a prática esportiva se transforma no espaço onde se tenta erguer a bandeira da convivência pacífica entre as diferenças.

Nesse processo de democratização esportiva temos como exemplo a incorporação da mulher. E futuramente outras tantas incorporações podem surgir. Especificamente em relação ao futebol, a modalidade feminina apesar de algumas dificuldades tem muitas possibilidades de ampliarem seu domínio. Estados Unidos, China e Alemanha são potências do futebol feminino. Todas já foram campeãs do torneio mundial dessa modalidade. Torneio inaugurado em 1991 e que foi vencido pela equipe Chinesa. No Mundial de 1999 os Estados Unidos sagraram-se campeões e com essa vitória o time feminino ganhou a capa das importantes revistas Time, NewsWeek e Sport Illustrated. E a jogadora Mia Hamm - a mesma que Pelé inseriu em sua lista dos melhores jogadores de todos os tempos - se transformou num ídolo nacional. A boa acolhida no exterior fez com que o Brasil começasse a olhar com outros olhos para o futebol feminino. Nesse sentido, seu processo de tradução, em terras brasileiras, inevitavelmente implica negociação de significados e esse processo está em constante diálogo com questões como mercado consumidor e globalização.

A possibilidade de sucesso profissional das meninas, e de sua transformação em ídolos, modificou a própria postura das famílias. Se antes, pais e mães não aceitavam o fato de verem suas filhas trocarem bonecas por bolas de futebol hoje em dia eles podem nutrir esperanças de vê-las na telinha da TV comemorando um gol e mandando beijinhos.

 


 

Bibliografia

AUGÉ, Marc. Não-lugares. Rio de Janeiro: Papirus, 2004.

COUTINHO, Edilberto. Criaturas de papel. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/MEC, 1980.

FREYRE, Gilberto. O negro no futebol brasileiro. MÁRIO FILHO. O Negro no Futebol Brasileiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964.

------ Casa-grande & Senzala. Edição Crítica de Guillermo Giucci et alli. Paris: ALLCA, 2001.

HUNTINGTON, S. O choque das civilizações e a recomposição da ordem mundial. Rio de Janeiro: Objetiva, 1996.

MOURA, Gisele de Araújo. O Rio corre para o Maracanã. Rio de Janeiro: FGV, 1998

ORTIZ, Renato. Mundialização e cultura. Rio de Janeiro: Brasiliense, [s/d.?].

PEDROSA, Milton (org.) Gol de letra - o futebol na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Gol, 1967.

PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda. Footballmania. Uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.

SLOTERDIJK, Peter. Esferas I. Buerbujas. Madrid: Siruela, 2003.

TOLEDO, L. H. No país do futebol. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000.

-----. Torcidas organizadas de futebol. São Paulo: ANPOCS, 1996.


 


 

[1]Lia a cobra em 14 esportes”. Revista Manchete 31/10/1959.

[2] Jornal da Faperj. Rio de Janeiro, ano 1, n. 2, maio-junho de 2004, p. 9