AS MARCAS DE ENUNCIAÇÃO
NO TEXTO JORNALÍSTICO POLICIAL

Patricia Alves do Rego Silva (UERJ)

Toda enunciação é um acontecimento único. Tem um enunciador, um destinatário, um tempo e um lugar só seus. Essas condições não se repetirão juntas jamais - se a mesma enunciação for feita no mesmo lugar, pelo mesmo enunciador e para o mesmo destinatário, um segundo depois, o tempo já não será mais o mesmo, por exemplo. O enunciado, por sua vez, é a reprodução textual deste ato e, por conseguinte, também é único. Como expressa Maingueneau (2001: 6), reportando-se a Benveniste, a enunciação é um ato individual de utilização da língua, que se opõe ao enunciado, objeto lingüístico resultante. Completa Fiorin (2002: 36), citando Greimas e Courtès: “O enunciado, por oposição à enunciação, deve ser concebido como ‘o estado que dela resulta, independentemente de suas dimensões sintagmáticas’”.

Na projeção da enunciação no enunciado, instalam-se as categorias de pessoa, tempo e espaço, ou seja, situam-nas em relação ao enunciador. É o processo de debreagem actancial, temporal e espacial. Explica Maingueneau (2001: 9):

(…) eu se carrega de uma significação nova a cada enunciação. Isso vale igualmente para tu (e suas variantes te/ti) e certos localizadores espaciais (aqui, aí…) ou temporais (hoje, ontem…), que também são embreantes. Esses indicadores espaciais (que chamaremos dêiticos espaciais) mudam de sentido em função da posição do corpo do enunciador, enquanto que aqueles de tempo (denominados dêiticos temporais) variam em função do momento da enunciação (…)

O eu é quem guia o enunciado. É o eu quem fala e quem estabelece o tu, que é para quem o eu fala. O espaço e o tempo também são estabelecidos tomando o eu enunciador como referência.

“A debreagem consiste, pois, num primeiro momento, em disjungir do sujeito, do espaço e do tempo da enunciação e em projetar no enunciado um não-eu, um não-aqui e um não-agora” diz Fiorin (2002: 46). Em outras palavras: debrear é construir o simulacro de realidade (e de enunciação) no texto, já que o eu, o aqui e o agora da enunciação são únicos e não podem ser recuperados. Este autor distingue dois tipos de debreagem, a enunciativa e a enunciva. Na primeira, instalam-se nos enunciados os atores, o tempo e o espaço da enunciação, ou seja, o eu, o aqui e o agora, que ocupam o lugar do não-eu, do não-aqui e do não-agora, respectivamente. São textos escritos em primeira pessoa, no presente e tomando como lugar o aqui. Por outro lado, na debreagem enunciva instauram-se os actantes do enunciado (ele), o espaço do enunciado (algures) e o tempo do enunciado (então). “Cabe lembrar que o algures é um ponto instalado no enunciado; da mesma forma o então é um marco temporal inscrito no enunciado, que representa um tempo zero (…)”, ressalta o autor (2002:44,45). Ou seja, são enunciados escritos na terceira pessoa, no passado, tendo como lugar o lá. Enquanto a debreagem enunciativa cria o efeito de sentido da subjetividade, a debreagem enunciva remete à objetividade ao apagar do texto as marcas da enunciação.

Além dessas debreagens, existe a debreagem interna, como explica Fiorin (2002: 45):

Trata-se do fato de que um actante já debreado, seja ele da enunciação ou do enunciado, se torna instância enunciativa, que opera, portanto, uma segunda debreagem, que pode ser enunciativa ou enunciva. É assim, por exemplo, que se constitui um diálogo: com debreagens internas, em que há mais de uma instância de tomada da palavra. Essas instâncias subordinam-se umas às outras: o eu que fala em discurso direto é dominado por um eu narrador que, por sua vez, depende de um eu pressuposto pelo enunciado. Em virtude dessa cadeia de subordinação, diz-se que o discurso direto é uma debreagem de segundo grau.

Polifonia

Quando se insere um outro eu no enunciado, cria-se um problema: quem se responsabiliza pelo que está sendo dito? Entra em cena o conceito de polifonia, ou seja, das várias vozes que podem ser percebidas no discurso de um enunciador. “Quando o enunciador cita no discurso direto a fala de alguém, não se coloca como responsável por essa fala, nem como sendo o ponto de referência de sua ancoragem na situação de enunciação”, observa Maingueneau (2000: 138). O mesmo autor (2001: 86) postula que, com Ducrot, iniciou-se a distinção entre o sujeito falante e o locutor de um enunciado. Ao primeiro, cabe o papel de produtor do enunciado, do indivíduo (ou dos indivíduos) que tem o trabalho, físico e mental, de produção do enunciado. O segundo é a instância que assume a responsabilidade do ato de linguagem. Cada vez que um personagem de um determinado texto diz “eu”, ele se torna responsável pela sua enunciação, ou seja, assume o papel de locutor.

Pelo seu papel de reportar os fatos, as reportagens jornalísticas são textos polifônicos por natureza. Ao repórter, cabe ouvir vários personagens, para depois dar-lhes voz em seu texto. Na construção desse texto, ele vai optar entre deixar seus entrevistados falarem na forma do discurso direto, da modalização em discurso segundo ou do discurso indireto. Mais raramente, encontra-se, especialmente em textos de revistas, o discurso direto livre, no qual o enunciador citante recria com outras palavras a fala do enunciador citado, mantendo-lhe a essência, e a apresenta na forma de discurso direto, apenas suprimindo as aspas ou o travessão. Quase impossível de se encontrar na imprensa brasileira é o discurso indireto livre, onde as vozes do enunciador citante e do enunciador citado se fundem, desaparecendo, para o leitor, as suas fronteiras. Recorrendo a Fiorin (2002: 69):

(…) quando se produzem enunciados, podem-se incorporar contratual ou polemicamente enunciados de outrem. Assim, há enunciados que incorporam diferentes responsáveis pela enunciação. (…) Narrador e interlocutor são instâncias que tomam a palavra, que dizem eu. Locutor é a voz de outrem que ressoa num enunciado de um narrador ou de um interlocutor. Assim, o locutor é a fonte enunciativa responsável por um dado enunciado incorporado no enunciado de outrem. Dessa forma, o que será considerado locutor num dado nível foi narrador ou interlocutor noutro. (…) A noção de locutor é necessária, no caso de retomada das palavras alheias, para que não atribuamos a alguém a responsabilidade por uma enunciação completamente em desacordo com suas posições enunciadas.

A escolha de uma ou de outra forma de reportar o discurso do entrevistado vai demonstrar o grau de responsabilidade que o jornalista deseja assumir para com o que foi dito. Explica Chiavegatto (2001: 231):

Disfarçados por usos lingüísticos aparentemente ‘descompromissados’ de ideologias, o modo como um sujeito integra a fala de outro(s) sujeito(s) à sua voz diz muito mais da postura deste sujeito em relação ao conteúdo veiculado pela voz que apresenta do que dizem os significados das próprias estruturas lingüísticas com que tais recursos que são codificados o fazem: esses enunciados são pré-organizados na mente por um processo cognitivo de mesclagem de vozes.

O corpus analisado

Para este trabalho, foram analisadas as reportagens policiais publicadas durante a última quinzena do mês de maio no jornal Extra. O corpus foi selecionado porque, no jornalismo, é nas reportagens policiais que a questão da responsabilidade pelo enunciado é mais crucial, já que, na maioria das vezes, o jornalista lida com acusações. E essas acusações sempre são feitas por outras pessoas, cabendo ao jornalista reportá-las ao leitor. Para isso, o repórter vai fazer uso do discurso relatado, tendo o cuidado de deixar bem claro quem é o responsável pelo que está sendo dito. O Extra foi escolhido por ser um veículo que valoriza muito as reportagens de polícia e também por ser perceptível seu cuidado em eximir o jornal de responsabilidades que não lhe cabem, usando, para isso, os recursos da língua e do discurso.

O discurso direto

O discurso direto se propõe a reproduzir a fala do personagem, exatamente como ela foi proferida. Numa reportagem, é como se o jornalista desse o seguinte recado ao leitor: foi o entrevistado quem disse isso, eu apenas passei para o papel, não tenho qualquer responsabilidade sobre o que ele afirma, as palavras são dele. Maingueneau (2000: 140) lembra que o discurso direto não se satisfaz em eximir o enunciador da responsabilidade sobre o que está sendo dito, mas ainda simula reproduzir as falas citadas e se caracteriza por dissociar claramente as duas instâncias da enunciação: a do discurso citante e a do discurso citado. As fronteiras entre o discurso citante e o discurso citado são marcadas por elementos tipográficos, como travessão ou aspas, e pelos chamados verbos ilocutórios ou dicendi, que podem preceder o discurso citado, intercalá-lo ou vir ao seu final.

Outros cinco assaltantes do bando já foram identificados, mas seus nomes estão sendo mantidos em segredo para não atrapalhar as investigações.

Com isso, já conseguimos a identificação de quatro quadrilhas que atuam na região. Esta tem como base a Cruzada. Uma outra usa como base a Rocinha, uma terceira é do Morro do Cantagalo (Ipanema) e a última é de jovens de classe média. Vamos trabalhar agora para predê-los - disse o inspetor Orlando Arruda. (Polícia prende outro ladrão de residências na Zona Sul, 25/05/2004)

Na reportagem acima, o jornalista opta por reproduzir a fala do investigador quando este descreve as quadrilhas de ladrões de casas que atuam na Zona Sul. É uma maneira de o repórter mostrar que é o policial o responsável por aquelas informações. Se, no futuro, elas se revelarem incorretas, é o policial quem perderá a confiança do leitor. E o repórter faz ainda questão de deixar, no final do discurso citado, a frase “Vamos trabalhar agora para predê-los”, ou seja, é como se a reportagem selasse um compromisso entre o investigador e o leitor. Explica Chiavegatto (2001: 241):

(…) não há evidência do jornalista para com o conteúdo do enunciado que importa para o seu. É a perspectiva da outra voz que está sendo posta sob o foco. É para este foco que o jornalista orienta a atenção dos leitores, ocultando, sempre aparentemente, a sua posição em relação ao enunciado que a mescla expressa. Aparentemente, porque os falantes captam, mesmo que inconscientemente, as relações que foram estabelecidas na composição da mescla.

No discurso direto, os embreantes têm como referência o discurso citado mas quem fornece as informações sobre a situação de enunciação reproduzida no texto é o enunciador citante, como ressalta Maingueneuau (2001: 106): “Enquanto os embreantes do discurso citante são, por definição, diretamente interpretáveis na situação de enunciação, os do discurso citado só o podem ser a partir das indicações fornecidas por esse discurso citante”. O autor ressalta que essas informações podem não aparecer completas no texto. Na reportagem abaixo, por exemplo, o leitor precisa voltar ao parágrafo que introduziu o discurso citado para localizar a que se refere o daqui de que fala o locutor:

Policiais da Delegacia de Roubos e Furtos de Cargas (DRFC) estouraram ontem um depósito de bebidas em São João de Meriti que transformava cervejas de marcas mais baratas em Skol - a mais consumida no mercado brasileiro. Pelo menos entre 800 e mil caixas da bebida falsificada foram apreendidas. Segundo Rômulo Prado, delegado-adjunto da DRFC, o produto seria revendido para bares e depósitos da região.

- Não há dúvidas de que houve fraude. Daqui o produto era revendido no atacado e no varejo - disse o policial. (Apreendidas cervejas falsas, 28/05/2004)

Em busca de mais veracidade e dramaticidade, é cada vez mais comum, sobretudo nos jornais populares como o Extra, os chamados depoimentos. São quadros, com destaque gráfico no desenho da página, onde uma fala do entrevistado é reproduzida sem a interferência do repórter. Não há um discurso citante, apenas um discurso citado, sem introdução, aspas, travessão ou verbo de ilocução. É como se o entrevistado estivesse contando sua experiência diretamente ao leitor, sem ter o jornalista como intermediário. É uma tentativa de reprodução da própria enunciação.

“Ele vinha me ameaçando há muito tempo e não gostava do meu garoto. Eles viviam discutindo”. (Alfredo Timóteo, 57 anos, ladrilheiro)

Ele vinha me ameaçando há muito tempo e não gostava do meu garoto. Viviam discutindo. Depois que ele entrou para o tráfico, começou a andar armado e fazer besteira. Estou denunciando ele, mas não tenho medo de voltar para csa. Até porque ela é herança de família. Moro no morro há 50 anos, fui criado lá e todos os meus filhos também. Estava começando a jantar com meus filhos. Ontem (domingo) fiz macarronada e frango porque era domingo. Eu cuido deles sozinho há sete anos. A mãe morreu com problemas de pulmão. Mesmo assim, eu não deixei de cuidar deles. Eu lavo e passo as roupas e faço comida. Além disso, cuido das coisas da escola de todos eles. (Execução em família no Estácio, 25/05/2004)

Apesar de querer, com o uso do discurso direto, dar a impressão de que apenas escreveu as palavras do entrevistado, exatamente como elas foram ditas, o jornalista é o responsável por essas palavras quando as passa para o papel. É ele que vai ecolher o fragmento a ser encaixado em sua reportagem e em que ponto do texto será inserido. Então, por mais que tente passar objetividade, o discurso direto deixa clara a subjetividade do enunciador do discurso citante, que manipula as falas dos seus personagens de acordo com o que deseja contar ao seu leitor. “(…) não se pode esquecer que essas falas, num nível mais elevado, são de fato colocadas sob a responsabilidade do autor que as cita, da mesma maneira que todos os outros elementos de sua história”, explica Maingueneau (2001: 89). O mesmo autor completa:

Como a situação de enunciação é reconstruída pelo sujeito que a relata, é essa descrição necessariamente subjetiva que condiciona a interpretação do discurso citado. O DD não pode, então, ser objetivo: por mais que seja fiel, o discurso direto é sempre apenas um fragmento de texto submetido ao enunciador do discurso citante, que dispõe de múltiplos meios para lhe dar um enfoque pessoal.

Ontem, ainda abalada, Preta permanecia em São Paulo, hospedada na casa da produtora. Ela disse que o momento mais difícil foi quando, na delegacia, ficou frente a frente com um dos bandidos:

Numa hora destas é que a gente percebe como nossos jovens estão perdidos. Eles não têm direito a dignidade e a bandidagem acaba virando opção. O que aconteceu comigo é um reflexo do que ocorre no Brasil, todos nós estamos vulneráveis a essa violência. (Preta Gil escapa de assalto em São Paulo, 28/05/2004)

Ao usar a frase “Ela disse que o momento mais difícil foi (…)” para introduzir a fala de Preta Gil, o repórter deixa o leitor perceber que a entrevistada lhe contou mais do que ele escolheu reproduzir na reportagem.

Os verbos dicendi

No discurso direto, os verbos dicendi ou ilocucionais têm a função, assim como as marcas gráficas (aspas e travessão), de indicar que está sendo introduzida a fala do entrevistado. Mas esses verbos, algumas vezes, não são verbos de fala, como ressalta Maingueneau (2000: 144), lembrando que eles não precisam sequer ser transitivos. Assim, podem servir de introdutores de discurso direto verbos ou locuções verbais como acusar, esbravejar, condenar, espantar-se, indignar-se, perder o sangue frio, extrapolar, enfurecer-se.

O comandante geral da PM, coronel Renato Hottz, classificou a prisão de Paquito como uma interrupção de um ciclo de violência e terror na cidade.

Esse bandido tinha em seu histórico a prática de crimes violentos e ataques a policiais - comemorou o comandante. (Matador de policiais é preso na Baixada, 19/05/2004)

Os verbos dicendi também podem deixar transparecer para o leitor o envolvimento do jornalista para com a declaração citada. Através deles, o repórter pode mostrar a sua avaliação a respeito do que disse o entrevistado. Fiorin (2002: 79) analisa esses verbos:

Unindo as classificações apresentadas por Maingueneau (…), podemos dizer que duas classes de informações são veiculadas por um verbum dicendi (excetuando o verbo dizer, que é neutro em relação a elas): há os que têm um valor descritivo (por exemplo responder, concluir) e há os que são avaliativos. Estes dividem-se em duas subclasses: os que implicam um julgamento (bom/mau) atribuído ao enunciador do discurso citado (…); os que implicam um julgamento atribuído ao narrador (bom/mau, verdadeiro/falso). (…) os verbos descritivos podem dividir-se em subclasses: os que situam o discurso reportado na cronologia discursiva, como responder, repetir, concluir; os que explicitam a força ilocutória do ato enunciativo, como suplicar, prometer; os que indicam o tipo do discurso reportado, como, por exemplo, contar, relatar, demonstrar; os que especificam o modo de realização fônica do enunciado, como gritar, murmurar.

No corpus analisado, nota-se a preocupação dos jornalistas de evitar o envolvimento com o discurso citado. Por isso, eles preferem, na grande maioria das vezes, o neutro dizer. Quando querem variar, quase sempre optam pelos verbos descritivos. Raramente usam os avaliativos, sobretudo aqueles que implicam num julgamento atribuído ao narrador.

O porteiro Gilson de Melo, de 45, também é daqueles que diz que não seria enganado, pelo menos até a sexta garrafa.

Sei que o sabor é diferente, mas se já estiver meio quente acho que até posso tomar uma falsificada - admite. (Polícia acha água no chope, 18/05/2004)

Nesta reportagem, o jornalista usa, no fim do discurso citado, um verbo de avaliação, fazendo seu julgamento sobre o que disse o personagem. Para amenizar a força desse julgamento, porém, opta por introduzir a citação com o neutro dizer.

A modalização em discurso segundo

Uma outra maneira de atribuir ao locutor (no caso do texto jornalístico, o entrevistado) a responsabilidade pelo que está sendo dito é a modalização. Explica Maingueneau (2000: 139) que, neste caso, o enunciador mostra, de modo mais simples e mais discreto que no discurso direto, que não é responsável pelo enunciado: ele indica que está se apoiando em outro discurso, por meio da modalização em discurso segundo. Essa indicação se da por meio dos chamados grupos preposicionais (segundo X, para X, de acordo com X).

A polícia está investigando a possibilidade de que o engenheiro da UFF Maurício Nogueira Sobrosa, de 47 anos, tenha sido morto ao reagir a um seqüestro-relâmpago. Isto porque, segundo o delegado Luiz Carlos Sarmet Franco, da 79ª DP (Jurujuba), a polícia recebeu a informação de que houve um saque de mil reais com o cartão de Sobrosa no Banco do Brasil no dia do crime. (Engenheiro pode ter reagido a seqüestro, 21/05/2004)

Muitas vezes, o jornalista opera duas modalizações: atribui o enunciado a alguém por meio de um grupo preposicional e usa um verbo no condicional (futuro do pretérito do indicativo, ocasionalmente acompanhado de particípio) ao transcrever a afirmação atribuída àquela pessoa. É uma maneira de, além de não se responsabilizar perante o leitor pelo que está sendo dito, não se comprometer nem mesmo com o seu entrevistado, caso ele reclame que não disse exatamente aquilo que está escrito. Ninguém afirma, nem o enunciador citante nem o enunciador citado.

Segundo o comandante do 22º BPM, tenente-coronel Álvaro Garcia, um dos policiais que estavam na guarita, no momento da rebelião, teria se jogado durante o tiroteio, porque os bandidos atiraram em sua direção.

O policial militar ficou desesperado, mas tinha munição. Ele quebrou o pé - contou o oficial. (Fuga e rebelião em Benfica, 30/05/2004)

Na reportagem acima, nota-se que o locutor a quem se atribui o discurso citado confirma em discurso direto, logo em seguida, a afirmação atribuída a ele. Mesmo assim, o repórter optou por deixar o verbo do discurso modalizado no condicional.

Mesmo quando não existe uma pessoa específica a quem se atribuir o discurso, a modalização pode atribuí-lo a entidades abstratas como a polícia, os moradores, as testemunhas. O jornalista, neste caso, não tem alguém de carne e osso, com nome e sobrenome, para responsabilizar pelo que está dizendo, mas, pelo menos, deixa claro que ele, o jornalista, não é o responsável, que ouviu o que está dizendo de alguém.

De acordo com os moradores, o local é normalmente usado por traficantes para executar inimigos ou deixar corpos de vítimas porque é deserto e sem iluminação. (Seis mortos no Mendanha, 21/05/2004)

Segundo a polícia, o tumulto começou pouco depois da meia-noite, quando o cabo bombeiro Claudinei Rodrigues Santana se desentendeu com um homem não identificado. (Dois mortos em festa religiosa, 18/05/2004)

O discurso indireto

Ao usar o discurso indireto, o enunciador citante não se propõe a reproduzir as palavras do locutor exatamente como elas foram ditas, mas somente a passar o conteúdo do pensamento, escrevendo-o com suas próprias palavras. Diz Maingueneau (2001: 108):

Enquanto o discurso direto supostamente repete as palavras de um outro ato de enunciação e dissocia dois sistemas enunciativos, o discurso indireto só é discurso citado por seu sentido, constituindo uma tradução da enunciação citada. (…) Como o discurso indireto não reproduz um significante, mas dá um equivalente semântico integrado à enunciação citante, ele apenas implica um único ‘locutor’, o qual se encarrega do conjunto da enunciação.

Como integra o discurso citado ao seu, o enunciador citante passa a ter mais responsabilidade sobre ele. No caso do texto jornalístico, o repórter não está simplesmente escrevendo o que ouviu do entrevistado, exatamente da maneira como ouviu, como tenta convencer o leitor de que faz no discurso direto, mas está passando para o papel o que apreendeu do que ouviu, usando seu próprio discurso. Explica Chiavegatto (2001: 241): “(…) a voz de EGO2 é embutida na voz de EGO1. (…) Indiretamente, é a fala de EGO2 que é apresentada, mas sob a perspectiva do jornalista. Ele compartilha com o sujeito falante parte da responsabilidade pelo ‘tom’ que imprime ao enunciado.

Delegado em Goiás, o deputado federal João Campos (PSDB), um dos autores do PEC 221/2003, disse que a medida pode impedir uma prática comum, principalmente em municípios do interior, onde delegados são afastados de suas funções por interesses políticos. (Congresso discute o fim do troca-troca, 17/05/2004)

Como existe apenas uma situação de enunciação, os embreantes, no discurso indireto, referem-se apenas à situação de enunciação do discurso citante. “(…) os dêiticos que figuram numa citação em discurso indireto são necessariamente situados em relação ao discurso citante”, ressalta Maingueneau (2001: 110). Completa Fiorin (2002:75):

No discurso indireto não há uma debreagem interna, o que significa que o discurso citado está subordinado à enunciação do discurso citante. Não há dois eu, mas há uma fonte enunciativa que não diz eu (locutor), responsável por parte da enunciação de um eu. (…) Como há uma única enunciação, todos os traços enunciativos da enunciação desse interlocutor, que foi subordinada à enunciação do narrador, e que, assim, tornou-se um locutor são apagados. Dessa forma, os embreantes são referidos à sitiuação de enunciação do discurso citante.

Ontem, Paulo esteve na Assembléia Legislativa, onde se encontrou com o presidente da Comissão dos Direitos Humanos, deputado Geraldo Moreira (PSB). O parlamentar ouviu testemunhas da confusão e disse que pedirá hoje, ao Ministério Público, a interdição imediata da boate. (Rapaz é agredido por seguranças, 27/05/2004)

Na reportagem acima, o repórter conversou com o deputado no dia anterior ao da publicação do texto. O entrevistado disse-lhe que entraria com o pedido no Ministério Público no dia seguinte, amanhã para ele. Como o amanhã seria o dia da publicação do jornal e o repórter escreve no presente, o amanhã virou hoje.

No discurso indireto, a estrutura sintática é fixa, como explica Maingueneau (2000: 150): “As falas relatadas no DI são apresentadas sob a forma de uma oração subordinada substantiva objetiva direta, introduzida por um verbo dicendi. (…) é o sentido do verbo introdutor que mostra haver um discurso relatado e não uma simples oração subordindada substantiva objetiva direta”.

O presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembléia Legislativa (Alerj), Geraldo Moreira, contou que, enquanto a comissão dialogava com os rebelados, alguns detentos puseram Borgatte de pé, o empurraram e atiraram. (Rebelados matam refém, 31/05/2004)

Assim como no discurso direto, o sentido dos verbos dicendi vai demonstrar o envolvimento do narrador com o discurso que ele reporta. “(…) a escolha do verbo introdutor é bastante significativa, pois condiciona a interpretação, dando um certo direcionamento ao discurso citado”, ressalta Maingueneau (2000: 150). Para afastar o comprometimento com a fala que reporta indiretamente, o jornalista, assim como faz na introdução do discurso direto, prefere o neutro dizer e os verbos descritivos.

O secretário de Administração Penitenciária, Astério Pereira dos Santos, admitiu ontem que em três das quatro unidades que dispõem do equipamento, as ligações continuam sendo feitas. (Farra dos celulares continua em três presídios de Bangu, 18/05/2004)

Ao escolher o verbo admitir para introduzir o discurso citado, na reportagem acima, o jornalista deixou clara a sua opinião sobre o que disse o entrevistado: ele estava reconhecendo um erro pressuposto.

Ainda para evitar envolver-se com o discurso reportado, o repórter usa os verbos do enunciado citado no condicional. Ou seja, não afirma nada em nome do seu entrevistado.

Em depoimento à polícia, o bandido preso disse que Alan teria decidido por conta própria executar o engenheiro com um tiro na nuca. (Preso um dos assassinos de engenheiro da UFF, 22/05/2004)

Algumas vezes, o verbo dicendi é substituído por um verbo de pensamento, como acreditar, querer, desejar. Em vez de escrever que seu personagem diz acreditar em algo, por exemplo, o repórter escreve simplesmente que o entrevistado acredita.

Os promotores acreditam que o assassinato de Valdeci está ligado a essa composição de chapas no Partido Social Liberal (PSL), legenda pela qual ele e Abrahão se candidataram. (Morte foi planejada dentro da carceragem, 17/05/2004)

A escolha do léxico também é um bom indicativo do nível de envolvimento que o enunciador deseja ter com o enunciado. Ao preferir, por exemplo, suspeito em vez de assassino ou criminoso, o jornalista se exime de acusar alguém e põe a culpa do sujeito em suspenso.

Policiais da 74ª DP (Alcântara) prenderam o corretor de imóveis Hélder Figueira Gonçalves de Almeida, de 55 anos. Ele é acusado de ter fraudado mais de 40 pessoas negociando imóveis sobre os quais não tinha direito. (Corretor de imóveis acusado de golpes é preso em São Gonçalo, 18/05/2004)

Conclusão

Ao reportar o discurso de um entrevistado, o jornalista pode envolver-se mais ou menos com o que está sendo dito e deixar mais ou menos claro esse envolvimento. Ao optar pelo discurso direto ou indireto, ele escolhe se vai simular reproduzir as palavras do entrevistado exatamente como elas foram proferidas ou se vai reescrever o conteúdo do discurso citado com suas próprias palavras. Esta escolha não é aleatória, assim como não é ao acaso que o repórter seleciona o fragmento do discurso que vai reproduzir na forma direta e em que ponto do texto vai inseri-lo. Tomando emprestadas as palavras de Chiavegatto (2001: 244):

O jornalista ativa os domínios cognitivos das ‘outras vozes’ armazenadas na memória. Entre os elementos que o compõem, lança luz (o foco) sobre aquilo que lhe interessa focalizar, fazendo os recortes que achar conveniente (…). O discurso jornalístico exige que o profissional saiba muito bem quando deverá usar um discurso direto, indireto ou uma paráfrase: cada construção revela a ideologia dos sujeitos que a constroem.

Nota-se uma tendência do jornalista a tentar demonstrar cada vez mais distanciamento dos enunciados que reporta. Para isso, reproduz em discurso direto toda fala que acredita ser comprometedora. Também faz muito uso da modalização, bem mais comum nos textos analisados que o discurso indireto. Outro cuidado é com os verbos dicendi, que tentam demonstrar o máximo de neutralidade. E, para evitar as afirmações categóricas, recorre aos verbos no condicional. O discurso e suas possibilidades servem, pois, para que o jornalista mostre ao seu leitor a posição que ele quer ocupar em relação ao que reporta.

Bibliografia

CHIAVEGATTO, Valéria Coelho. “Construções e funções no discurso jornalístico: o processo cognitivo de mesclagem de vozes”, In AZEREDO, José Carlos de. Letras e Comunicação. Petrópolis: Vozes, 2001.

FIORIN, José Luiz. As astúcias da enunciação. São Paulo: Ática, 2002

MAINGUENEAU, Dominique. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2000

MAINGUENEAU, Dominique. Elementos de lingüística para o texto literário. São Paulo: Martins Fontes, 2001