AS REDES OCULTAS DA EDIÇÃO
NO DOMÍNIO JORNALÍSTICO

Cleide Emília Faye Pedrosa (UFS e UFPE)

Introdução

Essa palestra tem por objetivo explicitar o controle exercido pelas grandes companhias editoriais. No interior destas gigantescas empresas, a rentabilidade e a lógica do poder são, basicamente, os únicos critérios que orientam a produção de livros e divulgação de notícias (Brémond e Brémond, 2002). Multinacionais controlam as informações recebidas pelo público. E esse controle passa pela rentabilidade e o pelo exercício do poder. E como esses grupos controlam igualmente os meios de divulgação; então, a manipulação passa também pelas técnicas de marketing. Em muitos casos, Esse papel de difusão chega a ser mais importante que a expressão de idéias e a demanda. A ‘onipotência de difusão’ se manifesta em vários domínios, gêneros e suportes. A fim de atender ao objetivo proposto, vamos analisar esse fenômeno através do gênero textual ‘Frase’. Através dos dados coletados em cinco revistas nacionais (Contigo, Ëpoca, IstoÉ, Tudo e Veja), apontaremos algumas práticas discursivas que comprovam o quanto à editoração, mesmo de microtextos, como os que vamos utilizar como exemplos, sofre a manipulação ou a filtragem de editores e da ideologia do suporte em que estão veiculados.

Desenvolvimento

Essa palestra será desenvolvida seguindo um tripé. A análise Crítica do Discurso será a teoria base. A denúncia das redes de edição como uma prática de manipulação da divulgação de notícias será o cerne do texto. E os exemplares do gênero textual ‘Frase’ comporão os textos apontados para indicar a manipulação da linguagem pelos editores,

Respaldada, pelas leituras em ACD (Fairclough, 2001, 2003), pudemos identificar que o exemplar textual do gênero textual ‘Frase’ é construído, basicamente, por dois processos: retextualização e (re)contextualização. Ambos de responsabilidade do editor.

(Veja, 18/07/01) "Sou um democrata e vim democraticamente homenagear os heróis que morreram em 1932." RETEXTUALIZAÇÃO: "Sou um democrata e vim democraticamente homenagear os heróis que morreram em 1932."

Ubiratan Guimarães, coronel da PM paulista condenado a mais de 600 anos de prisão pela morte de 102 presos no Carandiru, justificando sua participação no desfile de 9 de julho (RE)CONTEXTUALIZAÇÃO

No primeiro processo, o editor seleciona a ‘fala’ do locutor a partir de um evento comunicativo mais amplo (Pedrosa, 2002 a e b) e a retextualiza segundo critérios bem subjetivos, pois verificamos que as ‘falas’ não são transcritas, como o uso das aspas poderia sugerir, mas retextualizadas segundo preferências lexicais, sintáticas, semânticas, pragmáticas e, sobretudo, ideológica do editor.

No processo de (re)contextualização, o editor deixa transparecer que está recuperando, para o leitor, o contexto lingüístico (cotexto) e situacional do evento comunicativo de onde selecionou a ‘fala’, com o fim de que esse tenha condições de entender a ‘frase’. Como tal prática é apenas aparente (como se provará mais adiante), preferimos usar o termo (re)contextualização em lugar de contextualização ou recontextualização, pois verificamos que, para atender interesses editoriais da revista, a ‘fala’ é descontextualizada para depois ser contextualizada, daí optarmos por (re)contextualização - o termo designa a releitura que o editor faz para o evento comunicativo em foco.

Dessa maneira, podemos, resumidamente, afirmar que a produção, distribuição e consumo desse gênero textual ‘frase’ são conduzidos pelo editor. Que, por sua vez, se liga a uma rede mais poderosa que é a rede das grandes empresas editoriais.

Entender os critérios de edição, de seleção do que deve se tornar conhecimento público até mesmo para textos tão curtos e despojados de ‘responsabilidade’ informativa, como os textos do gênero ‘Frase’, é essencial para o leitor lidar com as mensagens explícitas e subliminares veiculadas por qualquer canal mediático e também para refletir sobre as políticas editoriais.

Segundo os autores Brémond e Brémond (2002), grandes empresas internacionais controlam as informações recebidas pelo público. E esse controle perpassa pelos dois maiores critérios que movem esses meios, a rentabilidade e o exercício do poder. Outro aspecto destacado por eles é que além de empresas editoriais, esses grandes grupos controlam os meios de comunicação; dessa forma, a manipulação passa também pelas técnicas de marketing.

A edição está hoje dominada por alguns gigantes: Bertelsmann, Vivendi-Universal, Lagardère...Para estas grandes empresas, o livro não é senão um elemento em uma estratégia de controle a nível mundial, de todos os aspectos da comunicação, desde o livro a televisão, da imprensa escrita à internet. No interior destas gigantescas empresas, a rentabilidade e a lógica do poder são os únicos critérios que orientam a produção de livros (Brémond e Brémond, 2002: 10, Tradução Nossa (TN), grifo nosso).

Esse papel de difusão, na maioria dos casos, chega a ser mais importante que a expressão de idéias e a demanda. Essa é uma prática que prepara o terreno para a publicação de livros-irmãos (livros que veiculam o mesmo conteúdo), artigos similares em quase todos os jornais e revistas, mesma notícia em todos os jornais televisivos, a fim de que, por esse processo de uniformização, o consumidor não tenha escolha. Aparentemente ele escolhe uma editora, um canal de televisão, mas se encontra com o mesmo conteúdo veiculado de maneira uniforme. Essa prática pode ser resumida em duas tendências do mercado: ‘uniformização de ofertas’ e ‘onipotência da difusão’.

Esse poder editorial manifestado através de ‘uniformização de ofertas’ pode ser observado no gênero que estamos analisando através da repetição de textos em diversos veículos de divulgação, as ‘frases- irmãs’ ou ‘textos -irmãos’, como queiramos nos referir. Vejamos:

(Contigo - 07/08/01) “Eu fiz 94 anos, mas já digo que estou com 95 para me energizar e chegar lá. Escrevam o que eu digo: eu só vou morrer quando eu quiser! Não programo morte, eu programo vida!”

Dercy Gonçalves, no Hebe, dia 30

(VEJA - 08/08/01) "Só vou morrer quando eu quiser."
Dercy Gonçalves, atriz, 95 anos

(Tudo - 10/08/01) “Só vou morrer quando eu quiser”

Dercy Gonçalves, atriz, 95 anos

(Época - 13/08/01) “Só vou morrer quando eu quiser.”

Dercy Gonçalves, comediante, ao completar 94 anos

Verificamos que, na mesma semana, quatro revistas (Contigo, VEJA, Tudo e Época), das cinco que utilizamos em nosso corpus, veicularam ‘Frases’ do mesmo evento comunicativo. Não resta dúvida que há uma ‘uniformização de ofertas’, o leitor muda de revista, porém, não, de conteúdo. O aparente poder de escolha do leitor é subjugado pela ‘onipotência da difusão’. Talvez o leitor possa escolher onde ler, não o que ler.

A série de exemplos abaixo mais uma vez confirma o que estamos destacando:

(IstoÉ - 27/06/01) "Se a intenção fosse matar, por que só 111, e não os 2.200 presos?
Ubiratan Guimarães, em depoimento no início do seu julgamento

(VEJA - 27/06/01) "Havia 2200 presos no Pavilhão 9 e apenas 111 morreram."
Ubiratan Guimarães, coronel da reserva da PM, que comandou o massacre do Carandiru

(Época - 25/06/01) “Só morreram 111.”

Ubiratan Guimarães, coronel da PM que comandou o massacre do Carandiru

(VEJA - 11/07/01) "Vou passar o fim de semana pescando e pensando."
Ubiratan Guimarães,
coronel da PM paulista, depois de ser condenado a 632 anos de cadeia pela morte de 102 detentos no presídio do Carandiru.

(VEJA - 18/07/01) "Sou um democrata e vim democraticamente homenagear os heróis que morreram em 1932."
Ubiratan Guimarães, coronel da PM paulista condenado a mais de 600 anos de prisão pela morte de 102 presos no Carandiru, justificando sua participação no desfile de 9 de julho

De acordo com explicação de Brémond e Brémond, embasados por Pierre Bourdieu (apud Brémond e Brémond, 2002: 11, TN), “ a concentração dos grupos de comunicação engendra uma situação em que ‘a difusão se impõe à produção’, e isto conduz a uma ‘uniformização da oferta’”.

Vemos que a ‘uniformização de oferta’ e ‘onipotência de difusão’ são fenômenos ou práticas editoriais co-relacionadas, que predominam em grandes produções editoriais, como em livros didáticos ou livros-irmãos, por exemplo, ou em atividades menos abrangentes, como em texto do gênero ‘frase’, segundo os exemplos acima registrados.

Foi interessante verificar que das cinco revistas trabalhadas em nossa pesquisa, três são da mesma editora (Abril): Contigo, Tudo e VEJA. Então encontrar “‘frases’-irmãs” nessas revistas não seria de estranhar, pois pertencem à mesma rede, tendo o mesmo interesse ideológico. Mas, por outro lado, também encontramos ‘‘Frases’-irmãs’ em revistas de editoras diferentes.

De conformidade com Brémond e Brémond, há um domínio das grandes empresas sobre os outros editores e a mídia. Seu poder está além dos editoriais a que pertencem. A mundialização, a concentração e o marketing “têm, desde o ponto de vista cultural e político, efeitos perversos amplamente ocultados pela imagem que a edição quer dar de si mesma” (Brémond e Brémond, 2002: 11, TN), complementam os autores.

A década de 80 é marcada pela concentração de edições. Pequenas e médias editoras são compradas por grandes empresas. Contudo, os nomes dessas editoras são conservados para disfarçar a dimensão do poder da grande empresa. Essa estratégia dá a entender aos usuários que há um grande número de editoras. Recordemos os casos das editoras Ática e Scipione, que conservam os mesmos nomes, embora pertençam ao grupo francês Vivendi. Grupo que a partir de junho de 2001, com a compra de Houghtton-Mifflin, um dos maiores editores escolares dos Estados Unidos, torna-se o segundo editor de livros educativos do mundo, estando atrás somente do grupo britânico Pearson. A tática do Vivendi, assim como de outros grupos, é conservar os nomes das editoras compradas; assim, continuam, além da Ática e Scipione mencionadas, as marcas francesas Nathan, Bordas, Larousse e outros; na Europa, Anaya (Espanha), citando apenas alguns casos. A multiplicidade de nomes de editores e de títulos publicados, na verdade, esconde uma uniformização.

Em comunicação com o setor de atendimento ao cliente da editora Scipione, recebemos algumas informações que são de grande valia para o que estamos discutindo aqui.

Em 1999, a Scipione foi adquirida pela Editora Abril em parceria com o grupo franco-espanhol Havas Anaya, controlado pelo grupo francês Vivendi Universal Publishing.

Em 2003, os dois acionistas controladores da Scipione Abril e Vivendi - puseram novamente a Editora à venda. Após mais de um ano de negociações, que envolveram grupos editoriais nacionais e estrangeiros, a Editora Abril adquiriu, em fevereiro de 2004, os ativos financeiros da Vivendi, tornando-se a sócia majoritária da Editora Scipione. (e-mail, 05/07/04 - 11h28m)

Se consultarmos o site da Abril cultural vamos encontrar um organograma que traça o perfil de uma empresa controladora de diversas atividades diferentes, não só editorial. O grupo juntamente com seus associados e parceiros controla quase cino dezenas de revistas (VEJA, Exame, Cláudia, Nova, Manequim, Quatro Rodas, Placar, National Geografic, Contigo, Capricho, Playboy...); duas editoras - Ática e Scipione; dois canais de TV (TVA - JP Morgan e Falcon; e MTV - Viacom).

Abordando o assunto por outro ângulo, podemos perceber a ‘fragilidade’ daquele que aparece como editor chefe de um grupo que, por sua vez, já pertence a outro grupo maior. Ilustrando um caso de saída de um editor de Havas (que tinha sido comprada por Vivendi), Brémond e Brémond (2002: 44, TN) afirmam: “Esta saída lança luz sobre a fragilidade das funções e o caráter limitado do poder daquele que aparece como chefe de empresa de um editorial que não é senão um dos elementos de uma multinacional ”. Esse é um fenômeno chamado pelos autores de ‘deslizamento de poderes’.

A citação acima lança luz sobre como se manifesta o poder em nossa sociedade.As palavras dos locutores são manipuladas pelos editores, e estes, por sua vez, são controlados por instâncias superiores.

O poder do jornalista ou editor limitado pelos interesses da empresa. “É verdade que o jornalista tem uma margem de autonomia importante e seu comentário não é ditado pelo proprietário do jornal. Até o de desejar um pouco de impertinência; porém segundo as modalidades e os limites compatíveis com os interesses da empresa. ” (Brémond e Brémond, 2002: 56, TN, grifo nosso).

Como argumentação complementar a esse fato, os autores selecionam uma entrevista dada por Karl Zero, jornalista do Canal Plus para Le Monde:

Le Monde - “‘- O recente controle do canal Plus pela Compagnie Genérale de Eaux (CGE) não põe em perigo sua liberdade de expressão?

Karl Zéro - “‘- O acordo inicial especificava com toda claridade que havia três áreas sobre as quais não se podia investigar: o futebol, o cinema e a CGE...Considero normal que um difusor imponha suas exigências. Se você quer ter uma independência total, tem que fazer uma tele-pirata. Este acordo limita um pouco nossas ambições, porém isto é assim em toda parte. Pelo menos, eu tenho a coragem de dizer’” (Brémond e Brémond, 2002: 56, 57, TN).

Vamos nos apegar à margem de autonomia do editor para tecer os comentários a seguir.

Os processos de textualização e (re)contextualização no gênero textual ‘Frase’ são norteados tanto por essa autonomia como pelos ‘limites compatíveis com os interesses da empresa’. Observamos a autonomia dos editores em relação à seleção das ‘falas’ e os comentários tecidos na (re)contextualização.

(IstoÉ - 08/03/01) “Sou viciado em vitórias” Zagallo, técnico do Flamengo, após a conquista da Taça Guanabara

(VEJA - 14/03/01) "Sou um viciado em vitórias." Zagallo, técnico do Flamengo, quatro vezes campeão mundial com a seleção, ao vencer a Taça Guanabara

O editor da VEJA resolveu ser mais explicito em sua (re)contextualização a fim de se tornar condizente com a ‘fala’ selecionada de Zagalo ‘Sou um viciado em vitórias’, ou seja, seu vício estava ligado às vitórias em quatro campeonatos mundiais.

A autonomia dos editores também decorre da escolha lexical. Foi a Sociolingüística Interacional que reforçou a visão do valor da escolha lexical como uma pista do poder do falante. Duranti (1992) destaca que, às vezes, a escolha lexical, para a mesma pessoa, mostra de que lado do referente social o falante está. A escolha de certos itens lexicais é vista como sendo definida por certas propriedades do contexto, tais como os referentes de status social e/ou classe. A escolha lingüística particular define aspectos do contexto que está sendo pressuposto ou construído na interação. Por isso que em alguns casos, de fato, linguagem é contexto (Duranti,1992).

Vamos verificar que a escolha lexical do editor tem também o ‘ poder ou força de evocar a imagem daquele que as emprega’ e lembramos que há ‘valores que se ligam à natureza e às intenções comunicativas’.

Duranti (1992) é de opinião que o uso e função da escolha lexical demonstram claramente o papel das palavras como médium entre diferentes versões do mundo e, às vezes, deixa mais que uma versão co-existente no ato de fala.

Alguns aspectos podem ser analisados através da escolha lexical, como: emprego de verbos (e tempos); eufemismo/ disfemismo; adjetivação; hierarquização semântica; etc.- sublinharemos os termos que serão comentados (Pedrosa, 2001).

Verbos

(VEJA - 26/04/2000) “Finalmente o malufismo entrou na era da globalização. Está sendo investigado até nos Estados Unidos.”

José Eduardo Cardozo, vereador (PT-SP), sobre a investigação do FBI na empresa metroRED, que teria corrompido a administração paulistana numa concorrência. (VEJA, 26/04/2000).

(VEJA - 14/06/2000) “Não estou falando que Luiz Estevão é um anjo cândido, porque vou provar isso depois.”

Filipe Amadeo, Advogado do senador, que alega ilegalidades no processo que pede a sua cassação.

(VEJA - 14/06/2000). “Malan foi o ácido sulfúrico da reforma tributária.”

Delfim Neto, deputado federal (PTB_SP), insinuando que o ministro da Fazenda boicotou a reforma.

A escolha do verbo ou verbos demonstra o não-comprometimento do editor com o que está registrado, como se uma segunda pessoa, o sujeito dialógico ou Locutor é que fosse o único responsável pela enunciação. No primeiro caso de (re)contextualização, foi escolhido o verbo ter no futuro do pretérito composto ‘(...) teria corrompido a administração paulistana...’, indicativo de que esta não era a opinião assumida pelo editor. No segundo, o exemplo apresenta o verbo ‘alegar’ no presente, ‘(...) alega ilegalidades no processo...’, o verbo foi escolhido, pois indica que a opinião é alheia ao editor. O último exemplo utiliza o verbo ‘insinuar’no gerúndio ‘(...) insinuando que o ministro da Fazenda...’, o editor mais uma vez não se compromete com a opinião emitida pelo Locutor e também não se compromete com sua própria interpretação dos fatos, dando a entender ao leitores que essa seria a única leitura plausível e não o resultado de sua visão do mundo e (re)contexto da ‘fala’ selecionada.

Eufemismo/ disfemismo

Através de alguns exemplos, fica claro que algumas escolhas lexicais tentam suavizar (eufemismo) o que o Locutor pretendia transmitir, através do eufemismo se consegue dissimular uma idéia desagradável, revelando precaução de quem faz esta escolha lexical. E o inverso ocorre com o disfemismo, a escolha de alguns termos pejorativos que reforçam a opinião veiculada, figura esta bastante utilizada como suporte do humor e da ironia que já foi identificado como sendo o grande propósito comunicativo do gênero ‘Frase’.

(VEJA - 23/02/2000) “Pára de servir salgadinho, porque senão ninguém entra na festa.”

José Possi Neto, organizador do Oscar do cinema brasileiro, orientando os assistentes para suspender o coquetel no salão do Hotel Quitandinha, em Petrópolis.

Observamos que o termo ‘orientando’ não é adequado à situação retratada: “Pára de servir salgadinho...”/ ‘(...) orientando os assistentes para suspender...’/ José Possi Neto, organizador do Oscar. Uma pessoa com poder social (organizador do Oscar do cinema brasileiro) que se utiliza do imperativo ‘Pára’ para falar a seus subalternos (assistentes) não estaria ‘orientando’, porém mandando mesmo, exercendo o poder. Essa talvez tenha sido uma escolha do editor para salvar a ‘face’ do Locutor.

(VEJA - 26/04/2000) “Espero que Marina de Sabrit consiga fazer seus dois maridos felizes.”

Nicéia Pitta, insinuando que seu ex-marido, o prefeito Celso Pitta, tem um caso com a socialite paulistana.

O exemplo mostra uma contraposição entre a escolha lexical de Nicéia Pitta ao afirmar que Marina Sabrit tem um segundo ‘marido’ (eufemismo) e do editor, ao preferir o termo ‘caso’ (disfemismo em relação ao termo ‘marido’).

Adjetivação

Adjetivos são palavras avaliativas, o seu uso comprova que não somos neutros diante do que estamos vendo ou participando. A avaliação revela não um objeto neutro no mundo, mas um alinhamento que ocorre através do fenômeno por um ator particular. Através da escolha de determinados adjetivos, os editores se posicionam em relação ao que publicaram, mesmo dentro de sua esfera limitada de independência, fato também que vem contrapor o posicionamento radical de alguns jornalistas quando afirmam sobre o tratamento imparcial que dão aos fatos.

(VEJA - 05/04/2000) “Garotinho não sabe administrar coisas grandes.”

Luís Inácio Lula da Silva, candidato eterno à Presidência pelo PT, questionando a capacidade do governador do Rio para ocupar o lugar de FHC.

(VEJA - 05/07/2000) “Não sou santo. Nenhum quadro de santo se sustenta na parede para uma pessoa que ganhou 1 bilhão de reais em quatro anos.”

Luiz Estevão, senador (PMDB -DF) cassado na semana passada, num momento de franqueza modesta.

(VEJA - 16/02/2000) “Quero dizer que empregarei meus parentes enquanto puder. Se puder amparar minha família toda, eu a ampararei.”

Themístocles Sampaio, deputado federal (PMDB - PI) e nepotista convicto.

Os dois primeiros adjetivos utilizados ‘eterno’ e ‘modesta’ apresentam um uso que caracteriza ironicamente o substantivo: ‘candidato eterno à presidência’- como uma referência aos freqüentes fracassos de Lula como candidato à presidência, um indicativo implícito de que o locutor deveria questionar sua própria falta de condições para a presidência; e ‘franqueza modesta’ - ‘modesta’ que não combina com um bilhão de reais. O terceiro adjetivo ‘convicto’ tem um caráter intensificador, mas que não deixa também de ser crítico: ‘nepotista convicto’.

Hierarquização semântica

As palavras pertencentes a um mesmo campo lexical ou semântico são passíveis de apresentar uma hierarquização lógica, do mais geral para o mais específico ou vice-versa. E essa hierarquização pode funcionar como uma prática discursiva do editor ao selecionar tanto as palavras como sua posição sintática ou mesmo selecionar, no eixo paradigmático, a palavra que fará parte no eixo sintagmático.

(IstoÉ - 06/06/2000) “Não vou usá-lo apenas sexualmente.”

Roberta Miranda, cantora, que está apaixonada por um garoto de 21 anos que trabalha como Paquito no programa da Xuxa.”

No exemplo, o termo ‘garoto’ sendo utilizado no lugar de rapaz é mais do que simplesmente uma escolha lexical neutra, na escala hierárquica de seu campo semântico, ele estaria numa relação de sinonímia mais para ‘criança’ que para ‘jovem’. A utilização reforçou ainda mais a distância entre a idade de Roberta Miranda e o paquito. O editor, com essa escolha, expõe a ‘face’ do Locutor, pelo fato de ter escolhido um namorado bem mais jovem.

Brémond e Brémond continuam suas denúncias, apontando o sistema de marketing das grandes empresas editoriais como um filtro que exclui temas não rentáveis ou os modifica para que se adaptem, não à demanda, mas à política da empresa, que prepara o mercado para receber o que querem divulgar. “Filtrar as idéias em função de uma lógica de marketing é especialmente perigoso para o debate democrático. ” (Brémond e Brémond, 2002: 63, 64, TN). Esse perigo é acentuado quando o filtro é acionado para as questões políticas. Vejamos: “O debate democrático supõe a expressão de todo tipo de idéias. Os editores de livros políticos escolhem os combates políticos que defendem. ” (Brémond e Brémond, 2002: 64, TN). Usaremos mais esta citação para confirmar o que estamos expondo: “as grandes empresas controlam o que se deve escutar no campo político. É um poder desmesurado!” (Brémond e Brémond, 2002: 64, 65, TN, grifo nosso).

As grandes empresas se articulam de tal forma que põem em funcionamento o que se denomina de ‘mecanismos de uniformização’. Como funciona esse mecanismo? A oferta no mercado editorial passa por uniformização de pontos de vista, de conteúdo e até mesmo de estereotipização de personagens públicos.

Peguemos esse último ponto ‘estereotipização de personagens’ e confirmemos o fato com exemplos de nosso material de pesquisas. Selecionamos três personagens, um político, um ator e um apresentador. Observemos as estratégias discursivas dos editores; a escolha da ‘fala’, a retextualização e (re)contextualização que fazem e como fazem.

Personagem A: Anthony Garotinho

(VEJA - 22/03/2000) “Tinha muito peixe para pouca água. Por isso muitos morreram sufocados .A mortandade foi devido a superpopulação de peixe.”

Anthony Garotinho, Governador do Rio de Janeiro, explicando a causa mortis de toneladas de peixes na Lagoa Rodrigues de Freitas, o mais novo esgoto a céu aberto

(VEJA - 22/03/2000)“Vamos distribuir camisinhas para os peixes , para que eles não se reproduzam mais.”

Mário Moscatelli , biólogo , respondendo ao Governador.

(VEJA -10/01/01) "O governador é um frouxo, incompetente."
Eurico Miranda
, deputado federal (PPB-RJ) e presidente eleito do Vasco da Gama, criticando a ordem do governador do Rio de Janeiro, Anthony Garotinho, que cancelou a partida final da Copa João Havelange depois que desabou uma parte do alambrado do estádio de São Januário

(Ëpoca - 06/08/01) “Não sei se Garotinho é evangélico ou se o discurso é só conveniência. Para mim, ele é apenas um herege.”
José Aníbal
, presidente do PSDB, sobre o governador do Rio, Anthony Garotinho, do PSB

(VEJA - 27/03/02) "Se o Garotinho ficar embaixo da mesa, tudo bem."
Leonel Brizola, líder do PDT, sobre a possibilidade de se sentar à mesa para negociar uma aliança com o governador do Rio, Anthony Garotinho (VEJA, 27/03/02)

Personagem B: Reynaldo Gianecchini

(VEJA - 31/01/01) "Preciso de um ator despreparado para viver um príncipe despreparado."
Gerald Thomas, diretor teatral, justificando a montagem de O Príncipe de Copacabana, peça baseada em Hamlet, com o galã Reynaldo Gianecchini

(VEJA - 11/04/01) "Sei que vão dizer que o Gerald está me usando para fazer sucesso e eu o estou usando para ganhar um certo respeito no teatro. Tudo é mentira e tudo é verdade."
Reynaldo Gianecchini, ator e modelo, mostrando-se profundo no ensaio da peça Príncipe de Copacabana, dirigida por Gerald Thomas

(IstoÉ - 28/04/01) “Não sou apenas um rosto bonitinho”
Reynaldo Gianecchini
, modelo e ator

(VEJA - 16/01/02) "Não curto essa coisa Gianecchini."
Supla, cantor, não se deixando fotografar de calção de banho

Personagem C: Luciana Gimenez

(IstoÉ -11/07/01) “Vocês viram o vexame da Seleção? E o Ronaldinho, que nem tocou na bola?
Luciana Gimenez, apresentadora, referindo-se à derrota do Brasil para o Uruguai, em seu programa Super Pop, da Rede TV!

(IstoÉ -16/08/01) “Sou fiel, porém já não fui diversas vezes”
Luciana Gimenez, modelo e apresentadora

(VEJA - 24/01/01) "Eu vou entertenir vocês."
Luciana Gimenez, apresentadora da Rede TV!, que jura já estar conseguindo raciocinar em português

(Tudo -16/11/01) “Tem um pH D balanceado”

Luciana Gimenez, apresentadora de TV, referindo-se ao pH (nível de acidez) do xampu que anuncia em seu programa, SuperPop

Os exemplos, nos três casos, falam por si. Os Locutores são estereotipados tanto por meio de suas ‘falas’ como através das ‘fala’ de outrem. Os editores fazem questão de selecionar essas ‘falas’, talvez, em detrimento de outras que não seriam relevantes para formar o perfil estereotipado que querem passar de um personagem ‘X’ ou ‘Y’. Para poder incluir o exemplo 114 nessa relação, é interessante conhecer o contexto situacional; o Ronaldinho não havia sido convocado para aquele jogo.

Retornando aos aspectos de ‘mecanismo de uniformização’, vamos verificar que ele passa pela deformação, pois é inegável que a restrição da diversidade é nociva para a liberdade de expressão e o exercício da democracia. A rede funciona com base nas relações de força, de poder e não com base na lógica de competência. E como resultados temos a debilidade do debate democrático e a ilusão da liberdade de expressão.

As situações de dependência e de dominação no mundo da edição, rara vez chegam à opinião pública, já que os meios de informação e de difusão da informação estão precisamente situados no campo de influência dos grandes grupos que dominam o sector (Brémond e Brémond, 2002: 89, TN).

Outro conceito significante que entra na discussão em questão é o de oligopólio - controle do mercado por apenas algumas redes. A essa noção se especifica o caso de oligopólio em ‘franja’- porque junto às grandes empresas estão os editores menores, como sendo as ‘franjas’ das oligarquias. Um aspecto esclarecedor para o leitor é saber que o oligopólio se dá em rede, ou seja, em cooperação e alianças, não somente de competição como pretendem passar as grandes empresas. A pluralidade de marcas de edição é uma estratégia de disfarçar a concentração (Brémond e Brémond, 2002).

As empresas independentes se vêem obrigadas a aceitar alguns termos de limitações quanto às suas publicações em nome da sobrevivência financeira.

Se os editores ou os meios independentes entram em consórcio com as grandes empresas, é porque há razões para isso. No que diz respeito aos meios, mesmo que se vejam obrigados a aceitar limitações, se trata com freqüência de aceitar a autonomia financeira necessária para manter sua liberdade de expressão em outros domínios.´ (Brémond e Brémond, 2002: 112, TN).

Viver em uma sociedade democrática supõe que haja diversidade e pluralidade nas edições ou outras atividades comunicativas. A existência de um oligopólio em rede ou em ‘franja’ está diretamente contrária a essa pluralidade. Essa uniformização e essa deformação geradas a partir desses tipos de oligopólio têm relação direta, não com a competência, como seria de esperar, porém com os efeitos de dominação (Brémond e Brémond, 2002).

Essa prática põe também em perigo a liberdade de expressão, que não deveria ser um problema de mercado, mas do Estado, como sendo o responsável para instaurar regras que “enquadrem o funcionamento dos meios e da edição para assegurar a expressão da diversidade e da pluralidade de opiniões em condições aceitáveis” (Brémond e Brémond, 2002: 117, TN).

Segundo os autores, na atualidade, se faz necessário estabelecer um debate sobre o modo como as transformações da edição (seu oligopólio em rede) e os meios de comunicação põem em perigo a liberdade de expressão e acerca das políticas que se devem instaurar, sobretudo, em uma sociedade dita democrática.

Conclusão

O estudo ofereceu condições de percebermos o papel da mídia ao manipular a linguagem de acordo com seus interesses. A manipulação perpassa pela criação de imagens públicas, principalmente, na estereotipização dessas imagens. A ‘uniformização da oferta’ que apontamos com base em Brémond e Brémond desmascara a prática social dos veículos de comunicação de massa, aspecto que não pode ser relevado por pesquisadores e educadores.

O editor assume para si a tarefa de ser o dono da ‘verdade’ instaurada na linguagem. O texto pode ser visto, assim, como uma arena de vozes em que predomina a voz que exerce poder dentro de uma sociedade e dentro de uma prática discursiva. A mídia constrói opinião e, mesmo por meio de gêneros tão ‘despretensiosos’ (se diz com a finalidade de divertir o leitor), como ‘Frases’, “ela veicula explícita ou implicitamente sua visão sobre eventos e principalmente pessoas. (Pedrosa, 2002 a: 163).

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