DESCRIÇÃO DA LINGUAGEM DE JORNAIS
EDITADOS EM CUIABÁ NO SÉCULO XIX
ASPECTOS SOCIOCULTURAIS
Natalia Roseira, UFMT/IL/MeEL
INTRODUÇÃO
O objetivo deste artigo é apresentar parte da pesquisa que estou desenvolvendo no mestrado em Estudos de Linguagem. Com base em jornais editados em Cuiabá no século XIX, estou analisando a linguagem verbal utilizada em alguns periódicos de caráter noticioso que circularam nesta capital no período de 1847 a 1899, estou fazendo um levantamento, dentre outros aspectos técnicos da prática jornalística e socioculturais, do léxico usado nos jornais do século XIX.
Nesse artigo, analiso os aspectos socioculturais que já pude observar pelos jornais. Estes jornais foram microfilmados pela Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e estão arquivados no Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional (NDIHR) da UFMT. Na perspectiva teórica da crítica textual, edito algumas notícias veiculadas nestes jornais, atuando, em especial, na função transcendente da atividade filológica, que consiste em transformar o texto escrito - neste caso, o texto jornalístico - num instrumento que permite reconstituir a visão de profissionais da imprensa da época em relação ao cotidiano social, cultural, político e econômico no contexto histórico do século XIX.
De que forma eu vou trabalhar? Vou apresentar a edição de algumas narrativas para facilitar a leitura e conseqüentemente a compreensão. Não fiz uma edição crítica, interferindo no texto, mas uma edição diplomática. Nessa edição, eu mantive os textos como estão. A edição diplomática é aquela que, por meios tipográficos, reproduz exatamente a lição de um manuscrito, e nesse caso de um texto impresso. Portanto, numa edição realmente diplomática não deve haver a correção de nenhum erro, nem mesmo a introdução de sinais de pontuação ou qualquer adaptação ortográfica.
Sendo assim, eu vou analisar quatro narrativas retiradas de 03 jornais noticiosos do século XIX editados em Cuiabá. São eles: “O Noticiador Cuiabano”, “A Imprensa de Cuyaba”, e “A Situação”. Observando esses textos, e tomando por base os mesmos, eu comparo a estrutura dessas narrativas com a de hoje e descrevo o espírito, e o cotidiano da época, com vistas a identificar o pensamento cultural vigente. Além disso, vou situar quanto à época em que os jornais pesquisados foram editados, e vou apresentar a situação política, econômica e social vivida por Cuiabá e pelo país, na ocasião.
CONTEXTO HISTÓRICO
No período entre 1847 e 1899, quando o Brasil se encontrava no denominado período Imperial, Mato Grosso havia recém saído de um dos movimentos regenciais mais vigorosos da época, que foi a “Rusga”, uma luta armada travada no interior das elites, ocorrida em Mato Grosso em 1834.
Foi nessa época, depois da decadência das Minas Gerais no extrativismo mineral, que a província de Mato Grosso solucionou o problema de comunicação com o litoral, feita até então por caminho terrestre. Foi assinado o Tratado de Aliança, Comércio, Navegação e Extradição entre o Brasil e a República do Paraguai, dessa forma o Brasil pode se ligar ao Rio de Janeiro e a São Paulo utilizando a navegação pelos rios Paraguai e da Prata.
Apesar do tratado, a negociação com o Paraguai para a abertura da hidrovia não durou muito tempo. Em 1865 o governo paraguaio aprisionou o navio Marquês de Olinda, e rendeu o novo presidente da província de Mato Grosso, Frederico Carneiro de Campos que viajava no navio a caminho de Mato Grosso, e foi declarada a guerra do Paraguai, que durou cerca de cinco anos (1865-1870). Ao terminar a guerra, quase metade da população, que não tinha sido diretamente atingida pelo conflito, faleceu vitimada pela “varíola”, conhecida pelo nome de “bexiga”.
Após a Guerra do Paraguai, Mato Grosso viveu um novo tempo, se abrindo para o capital internacional. Chegavam, especialmente da Europa, ao comércio mato-grossense; tecidos, sapatos, luvas, lustres, mobiliários, champanhe, chocolate, chás, remédios, ferramentas, e muitos outros produtos.
Nesse período foram publicados e circularam em Mato Grosso diversos jornais, dentre os quais 26 títulos que estão arquivados no NDIHR. Entre eles está a “Gazeta Cuiabana” - terceiro jornal a surgir em Mato Grosso, que circulou nos anos de 1847 e 1848. No entanto, o primeiro jornal a circular no estado foi o “Themis Matogrossense” (1839) e o segundo foi “Cuiabano Official” (1842). Depois vieram, “Echo Cuiabano” (1850), “O Noticiador Cuiabano” (1857 e 1859), “A Imprensa de Cuyabá”, (1859 a 1865), “O Popular” (1868), “A Situação” (1869 a 1871, 1878 a 1881, 1882 a 1884 e 1887), “O Liberal” (1871 a 1873, 1879 a 1881 e 1882), “O Porvir” (1877 e 1878), “O Povo” (1879, 1880 e 1882), “Província de Matto Grosso” (1879, 1880, 1881, 1882, 1884, 1885, 1886, 1887, 1888,1889), “Argos” (1882), “Club Litterário” (1882), “A Locomotiva” (1882 e 1883), “Pyrilampo” (1882), “Athleta” (1884), “Echo de Cuyabá” (1884), “O Expectador” (1884, 1885, 1886, 1888), “A Liça” (1885), “A Tribuna” (1885, 1886, 1887, 1888, 1889, 1890), “A Gazeta” (1889, 1890, 1891), “O Matto Grosso” (1890, 1891, 1892, 1893, 1894, 1895, 1897, 1898), “A gazeta Official do Estado de Matto Grosso” (1893), “O Clarim” (1894), “A Verdade” (1894 a 1896), “O Republicano” (1895 a 1899), e “O Filhote” (1899).
EDIÇÃO DAS NARRATIVAS
Narrativa 1
Jornal - O Noticiador Cuiabano
Data de Publicação - 13/03/1859
||1
[espaço]A Justiça
A primeira propriedade da luz é ser benigna. |1
Que cousa mais benigna, que cousa mais favo |2
ravel do que a luz? Que qualidade mais branda, |3
mais suave e mais amorosa? Ella è a alegria dos |4
campos, a respiração das flores, a harmonia das |5
aves, a delicia dos olhos, a formosura dos astros; |6
è emfim o contentamento de todo o mundo. |7
Pois esta propriedade da luz ha de ser tambem |8
a propriedade da justiça; porque a justiça deve |9
||2
ser tão branda, tão amorosa e tão benigna como |1
a luz. Bem conheço que muitos serão de mui |2
contrario parecer; porque como veem na mão |3
da justiça desembainhada uma espada, totalmen |4
te se persuadem que a justiça toda deve ser rigo |5
res, toda crueldades... |6
E para não ser crueldade deve temperar-se cem |7
brandura, e so com ella será justiça. E porque |8
sei que a espada da justiça é a que obriga a ima |9
ginar-se que toda a justiça deve ser rigor, quero |10
que nos sirva de prova a mesma espada. Per- |11
gunto assim: E para que se armou com uma es |12
pada a mão da justiça? Ja sabem todos que pa |13
ra significar o seo rigor. Pois porque se não pin |14
ta a figura da justiça com um cotello senão com |15
uma espada? O instrumento mais proprio do ri |16
gor da justiça não è o cotello? Que razão have |17
rá logo para que não pintem com o cotello a jus |18
tiça? Porque a pintao com uma espada? Com |19
grandissima razão. Entre o cotello e a espada ha |20
esta differença, que o cotello è inflexivel; è tan |21
ta a sua dureza que à nada se dobra: e se por |22
fiao a que se dobre arrebenta. E a espada? To |23
da pelo contrario. A espada com ser tão rigo |24
|3
fiao a que se dobre arrebenta. E a espada? To |1
da pelo contrario. A espada com ser tão rigo |2
rosa è muito branda. Quanto mais se dobra tan |3
to tem de melhor a espada; e, o que è mais de |4
admirar, que ainda que a vejamos dobrar-se, não |5
deixa nunca de ficar mui recta; de sorte que a |6
espada è branda, a espada dobra-se; e com tu- |7
do sempre é recta, e sempre è espada. |8
Pois assim ha de ser a justiça: espada sim, |9
mas que se dobre: recta sim, mas que se abran |10
de. Emfim ha de ser como raio da luz: é raio, |11
mas benigno: é raio, mas é de luz. |12
[espaço] Ext. |13
Narrativa 2
Jornal - O Noticiador Cuiabano
Data de Publicação - 13/03/1859
[espaço] AGRADECIMENTO
O abaixo assignado, por si e pelos seos paes |1
e irmã, agradece á todos os seos amigos, que o |2
acompanharão em sua justa dor, pelo prematu |3
ro passamento do seo mui presado irmão Igna- |4
cio Antonio Peixoto, como tambem aos do fina |5
do em Miranda entre os quaes com mais parti- |6
cularidade aos senhores chefe da pagadoria João |7
Nunes Martins, e tenente coronel Argolo Ferrão, |8
pelo modo caridoso com que se prestarão no cur |9
to periodo de seos soffrimentos. Cuiaba 4 de |10
março de 1859. |11
[espaço] Padre José Antonio Peixoto. |12
Narrativa 3
Jornal - A Imprensa de Cuyaba
Data de Publicação - 31/07/1859
|4
[espaço] FUGIDAS
Ao Capitaó Miguel Angelo de Olveira |1
Pinto, morador no lugar denominado Co |2
queiros, freguezia de S. Antonio do rio |3
abaixo, fugio um escravo por nome Cons |4
tantino, idade 40 annos, que lhe tocou |5
na herança do finado seo tio Manoel Pin- |6
to Guedes. Tem os seguintes signaes: |7
rosto comprido, alguma barba e quebra- |8
do. 50$000 de gratificação á quem o le- |9
var preso ao engenho do annnnciante no |10
lugar acima referido. |11
Fugio desta Cidade no mez de Março um |12
Cabra preto de nome Joaquim, de idade de |13
30 annos, estatura regular, cheio de corpo, |14
boa dentadura, falla desembaraçado, e bas- |15
tante estouvado no trabalho. É natural |16
desta Provincia fiho de uma escrava do |17
Sr. Josè de Pinho Viegas, e levou um pa- |18
relho de roupa de algadão grosso, uma cal- |19
ça e jaqueta de panno azul, e uma rede |20
de algadão trançado riscado. Julga-se que |21
anda nas immediações de Perahin, ou Pe- |22
risal onde foi apprehendido o outro es- |23
cravo Bernardino, pardo, que tinha fugido |24
junto com elle. Quem o prender e levar |25
a seo Sr. José Porfiro Antunes, na rua |26
da Sé, terá a gratificação de 100$000 reais. |27
Narrativa 4
Jornal - A Situação
Data de Publicação - 15/09/1869
|5
[espaço] A PEDIDO.
[espaço] Sr. Redactor.
Ja muito se tem dito do meo açougue, |1
permitta-me por tanto S.S. que eu tambem |2
por minha vez, vá occupar as columnas de |3
seu jornal se bem que no mesmo assumpto, |4
mas em defesa propria. |5
Sou a primeira em reconhecer que tenho, |6
ás vezes, vendido carne magra e um pouco |7
fora do preço ordinario, o que se tem dado |8
nestes ultimos tempos, mas é por que tem |9
havido falta de gado, e o que tem appare- |10
cido e que tenho comprado, è também caro |11
e magro. |12
Assim mesmo, convem que saibão, te- |13
nho fornecido e forneço ainda carne a al- |14
guns Corpos Militares e varios Estabeleci- |15
mentos publicos a 80 e 95 rèis à libra, e a |16
muitos freguezes meos, que posso declarar, |17
vendo-a a 100 rèis. |18
O proprio articulista da Situação acaba, |19
em parte, de defender-me no seo numero |20
passado. |21
Para provar a S. S. que esta profissão a- |22
qui em Cuyabá não é tão facil nem tão com |23
|6
moda como se suppoem, basta lembrar-lhe |1
que, ha bem pouco tempo, entrando a Ca- |2
mara Municipal em competencia comigo, |3
viu-se obrigada, pela falta de recursos tal- |4
vez, a abandonar um córte que tinha esta- |5
belecido em auxilio da população. |6
Não é culpa minha nem de ninguem que |7
se propoem a vender este genero, que seja |8
elle, como ja disse, às vezes, de má quali - |9
dade. O gado que viaja 18 a 20 leguas chega |10
cançado e desmerecido, precisa, reconheço, |11
refazer-se para ser cortado; mas onde? Qual |12
a protecção que temos, nos os marchantes, |13
recebido da Repartição incumbida de fisca- |14
lisar este genero? Ainda assim, diariamen- |15
te mando (e sou a unica que aqui o faz) |16
apassentar e dar de beber ao gado que còr- |17
to, e tenho um retiro no lugar denomina- |18
do - Barbado - onde são envernadas as re- |19
zes que chegão a ficar mui magras, até que, |20
refazendo-se, estejão em estado de vir par- |21
ra o còrte. O correspondente, que me faz |22
a graça de accusar-me, diz, se bem me lem- |23
bro, que è ali onde se mata, escondidamen- |24
te, o gado magro, doente & & e que devia |25
ser posto fóra: limito-me unicamente Sr. |26
Redactor, a asseverar-lhe que, quem quer |27
que seja, o tal correspondente è um levia- |28
|7
no e vai dizendo tudo quanto lhe vem a ca- |1
chola sem estar informado nem ter conhe- |2
cimento. Poderá elle ou outro qualquer pro |3
var o que disse? |4
O correspondente aventou uma feliz lem |5
brança na carta que publicou ultimamente: |6
dê-se-nos a Larga e a carne não sò serà de |7
boa qualidade mas tambem descerá de pre- |8
ço, porque com ella tudo se facilita para |9
este negócio. |10
Não ha direito sem obrigação: á impos- |11
siveis não somos obrigados. |12
Quanto a immundice de que tanto se quei- |13
xão, direi unicamente que, se por falta de |14
um matadouro publico, eu me vejo obriga- |15
da a mandar matar os bois no meo curral, |16
não autoriso com isso a que se fação o des- |17
pejo dos quarteis e cadêas desta Cidade qua |18
si em frente á minha porta, e que se nas |19
aguas rodão essas immundices, no tempo |20
da sècca ahi ficão com a mais nauseante ex- |21
alação, em dobro mais pestilenta que o san- |22
gue de 4 ou 5 rezes, que tanto córto por |23
dia. |24
Se o publico para quem appello, vier de |25
passeio do alto do Rosario até a minha por- |26
ta, sempre pelo corrego, estou muitissimo |27
|8
convencida de que experimentarão sensa- |1
ções bem desagradaveis em todo esse tra- |2
jecto, pois como sabem, é e tem sido sem- |3
pre a prainha o deposito do lixo de quasi |4
metade da população da Cidade. |5
O meo curral è limpo diariamente, e não |6
temo e até estimarei, que as autoridades o |7
fação visitar continuamente. |8
Estas anomalias, Sr. Redactor, são con- |9
seguencias do nosso pouco recurso, propri- |10
as da falta absoluta dos meios que a popu- |11
lação reclama para não infringir tão sabias |12
posturas que regulão o aceio da Cidade. |13
Qual o lugar destinado para o despejo pu- |14
blico? Quantas e quantas travéssas não anoi- |15
tecem limpas e amanhecem sujas? |16
E tudo isto porque? No entretanto não |17
sei porque máo fado sò a mim cabe a liqui- |18
dação de tão amargas contas. |19
Publicando Sr. Redactor estas linhas |20
muito obrigará a sua constante leitora. |21
Cuyabá, 30 de Agosto de 1869. |22
[espaço] Maria Augusta de Azeredo. |23
COMENTÁRIOS
SOBRE OS ASPECTOS SOCIOCULTURAIS OBSERVADOS
Os três periódicos observados traziam vários tipos de texto, como os literários, os noticiosos, os políticos, os culturais, artigos, editoriais, entre outros, embora não fossem separados por cadernos/editorias, como atualmente. Outra diferença é que hoje quando um jornalista escreve uma notícia sobre um determinado assunto, normalmente não utiliza expedientes poéticos. Na narrativa 1 que editei no fólio 1, retirada do jornal “O Noticiador Cuiabano”, publicada em 13/03/1859, pode-se observar que o texto é um artigo sobre a justiça, mas diferente de hoje, foi escrito em um formato literário. A primeira propriedade da luz é ser benigna... Pois esta propriedade da luz ha de ser também a propriedade da justiça... (narrativa 1, fólio 1 linhas 1, 8 e 9).
A linguagem usada nos jornais também demonstra forte presença do híbrido/mestiço, mostrando o empréstimo lingüístico e de culturas, do mundo dos territórios colonizados pela Europa Ocidental, como o Brasil. Tal fenômeno pode nos remeter aos primórdios da globalização. No entanto, não se pode dizer que esta é a justificativa de tal fenômeno. Mesmo reconhecendo que todas as culturas são híbridas e que as misturas datam das origens da história do homem, não podemos reduzir o fenômeno à formulação de uma nova ideologia nascida da globalização (GRUZINSKI, 2002: 41).
Nos textos há a presença de traços que refletem essas influências, como na narrativa 2, retirada do jornal “O Noticiador Cuiabano”, e publicada no dia 13 de março de 1859, quando um membro de uma família enlutada agradece pelo jornal as condolências recebidas por ocasião da morte do parente, fato que passou a ocorrer no Brasil somente depois da chegada dos portugueses. O abaixo assignado, por si e pelos seos paes e irmã, agradece á todos os seos amigos, que o acompanharão em sua justa dor, pelo prematuro passamento do seo mui presado irmão... (fólio 3, linhas 1 à 4).
É visível a mistura de termos brasileiros com outros portugueses. A palavra mestiçagem é comumente usada para definir a mistura dos seres, ao lado de palavras como misturar, cruzar, fundir, mesclar, entre outras.
Percebida como uma passagem do homogêneo ao heterogêneo, do singular ao plural, da ordem à desordem, a idéia de mistura carrega, pois, conotações e a prioris dos quais convém fugir como o diabo da cruz. O mesmo acontece com o termo “hibridismo”. (GRUZINSKI, 2002: 43).
Pode-se observar nas narrativas selecionadas dos jornais editados em Cuiabá no século XIX que essa “mistura” ocorreu também nas atitudes da população local. Em algumas situações a população se mostrava “ética” ainda que esse termo possa ser questionado, até que ponto. Como exemplo cito a narrativa 4, fólio 5, linhas 6 à 12.
Sou a primeira em reconhecer que tenho, ás vezes, vendido carne magra e um pouco fora do preço ordinario, o que se tem dado nestes ultimos tempos, mas é por que tem havido falta de gado, e o que tem apparecido e que tenho comprado, è também caro e magro.
Em contradição com o exemplo anterior, em outras situações a população é colocada diante do impasse de “delatar” escravos fugidos em troca de dinheiro, uma prática adotada pela coroa na colônia, que acabava sendo aceita pela população, já “incorporada/mesclada” ao pensamento cultural trazido de Portugal, mesmo ciente dos horrores com que eram tratados os escravos. ... os quilombolas foram surrados junto ao pelourinho, marcados com ferro em brasa com a letra”F”, que significava FUGIDOS e, finalmente, parte de suas orelhas foram cortadas. (SIQUEIRA, 1990: 70).
Na narrativa 3, fólio 4, um exemplo de notícia mostra a tentativa de incorporar a população ao pensamento cultural trazido de Portugal.
...Fugio desta Cidade no mez de Março um cabra preto de nome Joaquim, de idade de 30 annos, estatura regular, cheio do corpo, boa dentadura, falla desembaraçado, e bastante estouvado no trabalho... (linhas 12 a 16), ...Quem o prender e levar a seo Sr. Josè Porfiro Antunes, na rua da Sè, terá a gratificação de 100$000 reis (linhas 25 a 27).
Os portugueses tratavam seus escravos como se fossem uma mercadoria e, portanto de sua propriedade. Eles tentavam impor esse pensamento na sociedade que aqui vivia, para que eles se conscientizassem de que os escravos tinham donos e que não poderiam fugir, caso isso acontecesse deveriam ser denunciados e presos, como pedido no exemplo citado acima, onde o “proprietário” do escravo oferece até mesmo uma recompensa para quem agir dessa maneira.
Os exemplos de mistura são vários. Tal fato se tornou uma realidade no cotidiano de Cuiabá na época, e isso foi perceptível nos jornais daqueles anos, assim como o é nos de hoje com o efeito da globalização, sendo a imprensa o canal mais favorável a apresentar as influências sofridas pelos editores e pela população.
As influências culturais nas narrativas retiradas dos jornais do século XIX editados em Cuiabá deixam transparecer uma formação cultural miscigenada daqueles que escreveram esses textos. A população que vivia nessa época recebeu várias influências, especialmente européias, e sendo assim é possível perceber esses traços de comportamento, dogmas, conceitos, pré-conceitos, nas idéias desenvolvidas, e nos pensamentos, que se refletem nos textos dos jornais que circularam naquele período.
Na visão de POUTIGNAT (1998: 190),
somos levados a imaginar cada grupo desenvolvendo sua forma cultural e social em isolamento relativo, essencialmente, reagindo a fatores ecológicos locais, ao longo de uma história de adaptação por invenção e empréstimos seletivos.
No entanto, não é isso que ocorre. Os grupos étnicos são como uma forma de organização social, e sua identidade é determinada pela sua origem e seu meio ambiente. Mas deve-se observar que embora seja importante a existência de categorias étnicas, esta não é uma simples relação a ser analisada entre as semelhanças e diferenças culturais.
O conteúdo cultural das dicotomias étnicas apresenta traços de identidade como a língua, a moradia, o estilo de viver, as vestimentas, além de padrões de moralidade, entre outros.
Desde que pertencer a uma categoria étnica implica ser um certo tipo de pessoa que possui aquela identidade básica, isso implica igualmente que se reconheça o direito de ser julgado e de julgar-se pelos padrões que são relevantes para aquela identidade, (POUTIGNAT, 1998: 194).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar as quatro narrativas que foram retiradas de três jornais que circularam em Cuiabá no período de 1857 a 1887 (O Noticiador Cuiabano - 1857 e 1859, A Imprensa de Cuyabá - 1859 e 1865, e A Situação - 1869 a 1871, 1878 a 1881, 1882 a 1884 e 1887), este trabalho mostra que o seu objeto de estudo não foi esgotado. Ainda há muito que pesquisar. Contudo, por enquanto, cumpriu o proposto de início, já que o se apresenta aqui é apenas um trabalho inicial, não uma análise profunda. Este é na verdade um ensaio daquilo que se pretende aprofundar posteriormente, para ser acrescentado ao texto final da dissertação.
Mas desde já, foi possível detectar que as influências culturais nas narrativas retiradas dos jornais do século XIX editados em Cuiabá deixam transparecer uma formação cultural miscigenada daqueles que escreveram esses textos, e que a população que vivia nessa época recebeu várias influências, especialmente européias.
Foi possível perceber ainda as influências, pelos traços de comportamento, dogmas, conceitos e pré-conceitos; nas idéias desenvolvidas, e nos pensamentos, que se refletem nos textos dos jornais que circularam naquele período.
Além disso, as narrativas permitiram reconstituir a visão de profissionais da imprensa da época em relação ao cotidiano social, cultural, político e econômico no contexto histórico do século XIX. Ao observar esses textos, e tomando por base os mesmos, pude comparar a estrutura dessas narrativas com a de hoje e identificar o pensamento cultural vigente, um dos objetivos do trabalho.
BIBLIOGRAFIA
AZEVEDO FILHO, Leodegário Amarante de, Iniciação em Crítica Textual. São Paulo: Presença; USP, 1987.
BASSETTO, Bruno. Filologia Românica. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2001.
GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
MENDONÇA, Estevão. Breve memória sobre a imprensa em Matto-Grosso. Cuiabá: UFMT, 1975.
POUTIGNAT, Philippe; STREIFF-FENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade. Seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998.
PÓVOAS, Lenine. História da Cultura Matogrossense. São Paulo: Resenha, 1994.
SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. História de Mato Grosso: Da ancestralidade aos dias atuais. Cuiabá: Entrelinhas, 2002.
SIQUEIRA, Elizabeth Madureira. Processo Histórico de Mato Grosso. Cuiabá: UFMT, 1990.
SPINA, Segismundo, Introdução à Edótica. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2002.