LUGARES/
VALORES ARGUMENTATIVO
(EM RELATOS
JORNALÍSTICOS)
Sigrid Gavazzi (UFF e CIAD)
PRELIMINARES
Este
trabalho
objetiva
detectar
individualmente –
ou
em
seu
intercâmbio – os
lugares/valores
argumentativos
mais utilizados
em
determinado relato
jornalístico.
Tais
lugares/valores
configuram, a
nosso
ver, uma das
marcas enunciativas utilizadas
pelos
sujeitos (comunicante e enunciador) na
confecção de
seu
texto,
que sustentam a argumentatividade
subjacente ao
corpo da
narrativa.
Como
intenção
segunda, pretende-se
oferecer (por uma
ótica
diversa da
habitualmente encontrada
nos
manuais
didáticos)
subsídios teórico-metodológicos ao
professor
atuante
em
sala de
aula,
com o
uso
efetivo de
análise textual-discursiva, preconizada
pelos PCNs –
inclusive no
campo da
argumentação.
INTRODUÇÃO
O relato
jornalístico
que respalda
este
estudo é o
Capítulo I, da
obra Hiroshima, de John Hersey (cf. bibliog.)
As
condições de
produção deste
texto
são dignas de
nota.
Hiroshima é
um
exemplo de
que
ninguém,
nem
mesmo John
Hersey, faz
jornalismo
sozinho.
Ele teve
dois
cúmplices
editoriais:
Harold Ross (...) e William Shawn, o
editor
que trabalhou
por 55
anos na
revista
que passou a
ter a
reputação de
publicar os
melhores
textos
que a
imprensa
já teve (p.
162).
O
editor, à
época –
um
ano
após a
explosão da
Bomba H – decidiu
contar aos
americanos o
que
eles
não sabiam : o
que ocorrera, de
fato,
em Hiroshima
após a
explosão. Contratou
um
jornalista (que
já cobria
ações de
guerra no
Oriente) e
este passou
seis
semanas no Japão, escrevendo a reportagem.
Entretanto, Hersey sabia
que
sua
matéria
não sairia “ilesa”:
“... os
editores da
revista (...) reescreveriam
todos os
textos – e
aí,
para
muitos, residiria o
segredo da
qualidade da publicação” (p. 164).
Este
pequeno
histórico
prova
que “ ...
toda
fala procede de
um enunciador,
pois,
mesmo
quando
escrito,
um
texto é sustentado
por uma
voz – a do
sujeito situado
para
além do
texto” (Maingueneau,
2001: 97).
Daí, a
voz
que está
por
trás desta
matéria é a de
jornalistas /
editores compromissados
com a
sociedade
americana e,
sobretudo,
com aquela
faixa
que se considerava democrata –
virtualmente, naquele
momento,
contrária ao
uso da
bomba,
em
posição
oposta a dos republicanos.
Por
hipótese, o
fato de Hiroshima
constituir
um relato –
cujo
ponto de
partida
são as
histórias vivenciadas
pelos sobreviventes –
já constitui uma antevisão da
voz enunciativa,
pois a
própria
escolha de
ouvir as
vítimas atribui-lhes
credibilidade:
suas
palavras e
seus
dramas
por
certo emocionariam os
americanos.
Logo, a reescritura de
seus
depoimentos
leva a uma
inevitável mediação
entre os enunciadores e
seu
público.
Assim, se temos
um
texto
como
produto, o
próprio
ato de
produção projeta-se no
enunciado (Benveniste,
1989: 79).
Tal
produção/mediação pode
ser avaliada
por
diversos mecanimos. Os
que selecionamos,
para o
estudo
em
pauta, foram os
lugares /
valores priorizados na
matéria.
TRABALHANDO A ARGUMENTATIVIDADE
EM
NARRATIVA
JORNALÍSTICA
Falar
sobre
argumentação/argumentatividade, recai,
necessariamente, no
campo da
adesão e do
convencimento do
ouvinte
ou,
antes, sabe-se
que,
por
meio do
discurso, pretende o
escritor
obter “ ...uma
ação
eficaz
sobre os
espíritos” (Perelman
& Olbrechts-Tyteca, 2002: 10), convencendo-o, persuadindo-o.
Para
isso, levará
em
conta,
como
componente
primeiro de
seu
fazer
textual, o
status do
auditório (leitores) a
quem se dirigirá.
Acordos (ou
pré-acordos)
são estabelecidos, mediados
pelos
valores respeitados
por
esse
auditório e
sua
respectiva
hierarquia.
Hiroshima foi
publicado
em 1946,
em
edição
única
Seu
público
primeiro
era restrito a uma
elite,
mas a repercussão da
obra alcançou
um
auditório
bem
mais
universal.
Assim, tendo
por
base
fatos,
entrevistas, relatos,
o
autor/enunciador,
com
mais
liberdade de
expressão
que a
que teria
em uma reportagem
habitual, imprime à
matéria
seu
estilo. Desta
forma,
seu
impacto na
época deveu-se
muito à
abordagem realizada,
pois, naquele
momento, os
americanos – e o
resto do
mundo – tiveram
acesso ao
que acontecera.
Com a
edição, “o
horror
tinha
nome,
idade e
sexo”
bem
como o
tom da
matéria constituiria “um
prolongamento da
dor
silenciosa
que os sobreviventes de Hiroshima notaram
nos
contemporâneos feridos”. (p. 168)
O apregoado “tom”
de
que se
fala resultaria -
entre
outros
fatores – do
jogo de
lugares/valores
argumentativos utilizados, deixando-se de
lado, nesta
análise, a tradicional “estrutura
argumentativa
clássica –
tese/asserções de
passagem/conclusão).
É o
que passaremos a
analisar.
ABORDANDO
LUGARES E
VALORES
Segundo Perelman & Olbrechts-Tyteca (2002: 74),
qualquer
questão pode
ser discutida
sob o
crivo de duas
categorias : a
primeira refere-se a
fatos,
verdades e
presunções (relativa
ao
real/ o
que se comprova e
não se discute, o
verdadeiro),
enquanto a
segunda se ocupa de
valores e
sua
respectiva
hierarquia (relativa ao
preferível/ o
que se considera de
acordo
com
determinada
ótica, o verossímel.
Ora, o
sujeito do
discurso relata o
que ouviu
sob
seu
ponto de
vista. Seleciona as
informações,
releva
alguns
pontos,
despreza
outros.
Assim,
sua valoração
sobre os
fatos vai irremediavelmente sendo
tecida,
linha
por
linha –
verdadeiro e verossímel se confundem e se
completam.
A
verdade, de
fato, é
indiscutível,
inclusive a
que serve de
infra-estrutura do
texto
em
pauta : a
Bomba H
em Hiroshima. O
que se discute, na
verdade, é
como essa
verdade (e
suas
conseqüências) foi ressignificada
pelos
que
agora falam (e
pelos
que
agora a redigem). Emergem,
então, os
lugares/valores
argumentativos :
COMO se
conta sobrepõe-se ao
QUE ocorreu.
Por
valores, entendemos,
então,
crenças
que a) dependem de
circunstâncias,
meio
social,
tempo e
espaço; b)
são do
conhecimento de
todos os
elementos de
determinada
comunidade e c) se assentam
em
premissas de
ordem
geral, os “lugares” (Perelman
& Olbrechts-Tyteca, 2002: 95).
Seis
são os
principais e
sobre
eles, resumidamente, discorremos.
Assim,
para o
lugar da
QUANTIDADE, afirma-se
que
algo é
melhor
que o
outro
por
razões quantitativas.
O
autor (...)
precisou de 31.347
palavras
para
explicar
como uma
única
explosão matou
100
mil
pessoas,
feriu seriamente o
corpo de
mais
100
mil e
machucou a
alma da
humanidade
(p.161)
Daí a
preferência
pelo
provável
sobre o
improvável,
pelo
fácil
sobre o
difícil,
pelo
que se apresenta
mais
amiúde,
pelo
normal e
pelo
habitual.
... o
prédio
abrigava trinta
quartos
para trinta
pacientes e
seus
familiares –
pois,
de
acordo
com
um
costume
japonês,
quando
alguém
adoece e
baixa
um
hospital,
um
ou
mais
parentes
devem acompanhá-lo,
para massageá-lo
e confortá-lo (p. 15)
Já o
lugar de
QUALIDADE opõe-se ao
anterior. Contesta visceralmente a
virtude do
número.
Observe-se o
exemplo
que se segue:
Quando
alcançaram o
vale (...) ouviram o
sinal de
que
não havia
mais
perigo
(detectando
apenas
três
aviões,
os
operadores de
radar
japoneses deduziram
que se tratava
de uma
missão de
reconhecimento)
(p. 11)
Este
lugar valoriza,
pois, o
raro, o
único, o
original, o
precário (tudo
que está ameaçado
ganha
um
valor
eminente) e
seu exponencial, o
irremediável –
por
piores
que os
dois
últimos podem
ser.
Uma
terrível
confusão se instalara no
hospital :
pesadas
divisórias e
tetos
despencaram
sobre
numerosos
doentes,
camas viraram,
janelas se
espatifaram e cortaram diversas
pessoas; havia
sangue nas
paredes e no
chão,
instrumentos
esparramados
por
todos os
lados,
vários
pacientes
correndo e gritando, e
muitos
mortos (...)
Lá
fora,
cidadãos
mutilados e
moribundos
dirigiam-se tropegamente
para o
hospital da
Cruz
Vermelha. (p.
20-1)
O
lugar da
ORDEM, a
seu
turno, valoriza o
anterior (sobre o
posterior),
além de
levar
em
conta a
causa, o
princípio, a
finalidade, o
objetivo. Observe-se o
fragmento a
seguir, na
oposição do
tempo
presente ao
passado. Neste
último, os sobreviventes relatam as
possíveis
razões de terem superado o
poder
mortal da
bomba,
mas
não sabiam à
época,
realmente, o
que acontecera no
momento. A
ignorância de
então contribuíra
para
sua
sobrevivência e deu-lhes
resistência
necessária
nos meses
subseqüentes,
já
que
não podiam
antever o
futuro.
Agora
cada uma delas
sabe
que, no
ato de
sobreviver, viveu uma
dúzia de
vidas e viu
mais
mortes do
que
jamais teria
imaginado
ver. Na
época
não sabiam
nada disso.
(p. 8)
Para a
ESSÊNCIA, reserva-se a valoração de
determinado
indivíduo, representante de
um
ideal
social,
com
função
determinada. É o
caso do
médico da
Cruz
Vermelha:
Era
bastante
idealista e se
angustiava
com a
precariedade
dos
serviços
médicos na
cidade de
sua
mãe.
Por
sua
conta e
sem a
devida
licença
passara a
visitar
alguns
doentes (...)
à
noite,
depois de
cumprir
seu
expediente de
oito
horas no
hospital e de
viajar
por
quatro
horas.
Descobrira
recentemente
que a
punição
para
quem clinicava
sem
licença
era
rigorosa (...)
No
entanto,
continuava a
clinicar. (p. 19)
Para o
lugar de
PESSOA, potencializa-se
tudo o
que seja ligado à
dignidade, ao
mérito e à
autonomia do
ser
humano.
Bom
exemplo é o da
costureira,
pobre e
viúva.
A sra. Nakamura voltou
para a
cozinha,
examinou o
arroz e se pôs
a
observar o
vizinho. A
princípio se
aborreceu
com o
barulho,
mas
depois se
comoveu a
tal
ponto
que
quase chorou.
Sentiu
pena do
homem
que estava
derrubando a
casa[8],
tabua
por
tábua, numa
época
em
que havia
por
toda a
parte
tanta
destruição
inevitável;
sentiu
também uma
pena
generalizada
comunitária,
para
não
falar
também na
pena de
si
mesma. (p. 14)
O
lugar do EXISTENTE,
finalmente, maximiza o
que
já existe, o
que seja
real. O
nervosismo da
população –
textualmente
expresso – configura
um
exemplo deste
lugar
A
freqüência dos
alarmes e a
constante
abstinência
do Sr B
com
relação a
Hiroshima tinham deixado a
população
extremamente
tensa :
corriam
boatos de
que os
americanos
preparavam
algo
especial
para a
cidade. (p. 9)
“UM
CLARÃO
SILENCIOSO”
Valores e
personagens
O
primeiro
capítulo,
componente do
texto
integral, relata as
horas (singulares)
que anteceram
um
momento
igualmente
ímpar: a
explosão da
Bomba H, no
conjunto de
ilhas denominado Hiroshima. Daí,
pelo
próprio
temário, o
lugar de
QUALIDADE prevalece
sobre
todos os
demais.
Poucos
são os sobreviventes e o
autor destaca
seis,
apenas
eles,
para a
composição do relato.
Assim,
são considerados “especiais”
não
só (mas
sobretudo)
pela
simples
questão de terem vencido o
horror da
explosão e a
morte (quase)
certa,
porque “ ... uma
centena de
milhares de
pessoas foram mortas
pela
bomba atômica e essas
seis
são algumas
que sobreviveram.
Ainda se perguntam
por
que estão
vivos,
quando
tantos morreram” (p. 8)
A
qualidade se insurge
também
quando
todos
eles estavam “fora” de
seus
horários
típicos – a habitualidade havia sido rompida e,
talvez
por
questões de
horário
ou
lugar,
não seguiram o
caminho dos
demais, marcados
fatalmente
pela
tragédia.
Mais
tarde calculou
que,
se tivesse
viajado
no
horário
de
costume e se
tivesse esperado o
bonde
por
alguns
minutos,
como acontecia
com
freqüência,
estaria
perto do
centro no
momento da
explosão e
certamente
teria morrido (p. 20)
É a
qualidade
que
também tipifica os
personagens –
positivamente
em
cinco dos
seis
casos – e, nessa tipificação, o
juízo de
valor do cronista aparece de
forma
mais
explícita.
/Sr. Tanimoto/ “ ...
era
um
homem
baixinho,
sempre
disposto a
conversar,
rir e
chorar (...) Havia
em
seus
movimentos
nervosos e
rápidos
um
controle
que sugeria
cautela e
ponderação. E
essas
qualidades
ele as
demonstrou
nos
dias de
apreensão
que precederam
o
lançamento da
bomba (p.9).
Nos
dias
imediatamente
anteriores à
explosão, o
próspero,
hedonista e
então
pouco
ocupado Dr.
Masakazu Fujii se dera ao
luxo de
dormir
até as
nove
ou
nove e
meia (...) Aos
cinqüenta
anos,
era
sadio,
sociável e
calmo e, à
noite, gostava
de
tomar
uísque
com os
amigos (...)
Somente uma das
personagens é singularizada
pelos
seus
atos (a Sr. Nakamura). Dela o
autor relata
que,
viúva e
pobre, “ ...costumava
fazer o
que
lhe mandassem” , sustentara “....
seus
filhos costurando (em
uma
velha)
máquina” (p. 13) . Assumia
atitudes
similares a outras
pessoas
que consultavam
aqueles a
que a
sociedade atribuía
credibilidade e
poder (“... acatou o
conselho”).
Então,
poderia
ser incluída no
valor
quantitativo, pelas
atitudes esperadas e
habituais. No
entanto,
salva a
sua
vida – e a de
sua
prole –
com uma
desobediência
civil.
Ao
ver as
crianças
tão cansadas,
ao
pensar no
número de
caminhadas
inúteis
que haviam
feito
até a
Praça de
Armas
Leste,
nas últimas
semanas,
ela
resolveu
não
seguir as
instruções
do
locutor.
(p.13)
Valores e a
estrutura
narrativa
Os
lugares, a
nosso
ver,
também auxiliam na
própria estruturação
narrativa e
em
sua (necessária)
seqüencialidade.
Pode
ser dividida
em
dois
segmentos
distintos.
O
primeiro funciona
como
um
verdadeiro
cenário
para o
exato
momento
que antecede a
explosão – e nele os
seis
personagens se “acomodam”
em
seus
lugares e iniciam alguma
função – uma
espécie de “compasso
de
espera
final”
para a
inevitável
catástrofe : a
secretária “... acabara de sentar-se; o
médico
abastado “... acomodava-se
para
ler o
jornal”; a
costureira
viúva “...observava
pela
janela
um
vizinho” ; o
padre “ ...lia a
revista da
Companhia de Jesus; o
médico
novato “...caminhava
por
um dos
corredores do
hospital” e,
finalmente, o
reverendo
“ ... descarregava
um
carrinho
de
mão”.
Neste
segmento, predomina o
valor do EXISTENTE,
manifesto pelas
ações/atitudes dos
personagens (que
corresponderia à
harmonia,
etapa
inicial das
narrativas), respondendo à
pergunta: “o
que faziam
eles
minutos
antes da
explosão ?”..
No
entanto, faz-se
importante
ressaltar
que,
como a reportagem se justifica
por
um
fato, é
ele
quem
assoma
logo na
primeira
linha do
texto.
Assim,
pela
ORDEM chega-se,
novamente, ao
predomínio da
QUALIDADE - o
acontecimento
em
pauta funciona
como
um “gatilho”
para
todo o
discurso
subseqüente.
O
segundo
segmento,
por
sua
vez,
conta resumidamente a “história”
de
cada
um deles –
afinal,
personagens têm de
ser
conhecidos e (re)conhecidos
pelos
leitores/auditório.
Neste
momento, o
cenário
passa a
agir, de
fato, personificado
em
seis
pessoas,
cada
um deles
com
seus
medos e
anseios (advindos da
expectativa de
bombardeios).
A
seguir, relata-se o
que estavam fazendo,
sua
reação
diante do
primeiro
sinal de
alerta,
sua
posterior
tranqüilidade (considerando
que o
sinal cessara) e,
finalmente, o
advento da
explosão – nesta
ORDEM.
Observe-se:
... acordou às 5
horas da
manhã (...)/Na
noite
anterior,
havia dormido
mal (...)
Terrivelmente
cansado,
preparou o
café (...)/Pouco
depois o
alarme
antiaéreo soou
por
um
minuto
(...)/Parou
para
descansar
um
pouco (...)/Então
um
imenso
clarão cortou
o
céu
... acordou
por
volta das
seis/
meia
hora
depois estava
meio
lerdo,
por
causa da
condição
física- começou a
rezar (....)/No
final da
missa (...) a
sirene soou
(...)/subiu
para o
terceiro
andar (...)
para
ler a Stimmen der Zeit
(...)/Ao
ver o
imenso
clarão teve
tempo
apenas
para
um
único
pensamento.
Quando a
explosão ocorre –
clímax da
narrativa – contraria
justamente
um
valor comumente utilizado, o da
QUANTIDADE : a
probabilidade
oficial
não se
confirma, surpreendendo a
todos.
Veja-se:
“... ouviram o
sinal de
que
não havia
mais
perigo” X “Então
um
imenso
clarão cortou
o
céu” (p. 11)
“... ouviu, aliviada, o
sinal
que indicava o
fim do
alerta” X “...
um
clarão de
um
branco
intenso,
que
nunca
tinha
visto
até
então,
iluminou todas as
coisas” (p.
13)
A
negação da
quantidade pode,
inclusive,
ser resumida no
pensamento do
padre
alemão – “Certo de
que
nada haveria de
acontecer, entrou
novamente no
prédio” (p. 18)
Além disso, a
noção
coletiva
mais
contundente – representada
pelo numérico –
só ocorre no
âmbito do
prejudicial, do
desastroso. E a
quantidade dobra-se,
também, ao
valor da
qualidade. Examinem-se os
excertos:
A
primeira
coisa
que viu na
rua foi
um
pelotão
de
soldados
que tinham
estado cavando
a
encosta
para
construir
um dos
milhares
de
abrigos
em
que os
japoneses
aparentemente
pretendiam
resistir à
invasão,
montanha
por
montanha,
vida
por
vida. (...) O
sangue corria
da
cabeça, do
peito e das
costas.
Estavam
mudos e
atônitos (p.
12)
Os
destroços do
hospital se espalharam a
seu
redor numa
louca
mistura
de
estilhaços
de
madeira e
anestésicos
(p. 17)
CONCLUSÃO
Como se constatou, a
ordem
movimenta o existente – seja
ele o
antes
ou o
imediatamente
após a
bomba.
Aliás, a
própria
explosão
nega o existente, instalando
outro,
inusitado
para a
época e
que,
por
isso,
entre outras
razões, merece
ser descrito/relatado.
Ora,
merecimento
leva à
QUALIDADE –
valor do
inusitado e do
único,
que
permeia
toda a
narrativa
em
questão.
Portanto, o
fator
que afere
maior
TEOR DE ARGUMENTATIVIDADE à
obra é
justamente
aquele
que QUALIFICA os
componentes da
história : o
local, a
hora, os
personagens e
seu(s) procedimento(s)
então.
Imputar-lhes
relevância funciona,
portanto,
como
um
verdadeiro
libelo –
aí o
autor/enunciador
toma
claro
partido –
contra as
armas atômicas.
Assim, narrar-lhes as
experiências persuade
bem
mais do
que
um
tratado argumentativo
em
sentido
clássico (do
tipo : “tese,
asserções de
passagem e
conclusão”).
Um
texto torna-se
mais
convincente (e envolvente) se a
tese do
autor – “arma atômica
destrói
tudo” - for
manifesta
pela
voz dos
que sofreram (irremediavelmente)
com uma delas.
É o
testemunho vivificado,
então,
quando a
pessoa “ perdeu a
noção das
coisas” (p. 16), “nunca
soube
como saiu do
prédio” (p.18) “perdeu a
consciência” (p. 22) e,
sobretudo, no relato de uma
mãe
quando
... ouviu uma das
crianças
gritar “Mamãe,
socorro!” e
viu a
caçula Myeko,
de
cinco
anos,
enterrada
até o
peito e
incapaz de se
mexer.
Enquanto abria
caminho
com as
mãos,
freneticamente,
para
acudir a
menina,
não escutou
nem avistou o
menor
sinal dos
outros
filhos. (p.
14)
Aliás, os
valores de
PESSOA (a
dignidade, a
autonomia
humana
frente ao
mundo) se diluem - “quem
é
quem”
deixa de
existir
em
um
momento de
total
destruição. O
ser
humano
nada represente
frente à
ciência da
guerra. Veja-se o
que diz o narrador:
... as
estantes
que estavam
atrás da srta.
Sasaki caíram, e
seu
conteúdo a
derrubou, quebrando-lhe a
perna
esquerda. No
primeiro
momento da
era atômica,
livros
imprensaram
um
ser
humano numa
fundição de
estanho. (p.
22)
O
mesmo se pode
afirmar da
ESSÊNCIA –
algum
japonês atingido teria
tempo
ou
disposição,
em
meio ao
inferno atômico vivenciado,
para
ideais
ou “valores
superiores” ? Praticamente
esse é
um
valor
apagado. E,
mesmo
que haja
seis escolhidos,
estes o foram
porque sobreviveram “em
razoável
estado de
saúde” –
também
um
valor
qualitativo –
por 40
anos,
quando relatam ao
jornalista,
novamente, o
que ocorrera
em
suas
vidas, de 1945
até 1985.
Também
como se verificou, o
QUANTITATIVO praticamente
só é utilizado na
narração das
conseqüências desastrosas –
que,
evidentemente,
são
incontáveis.
Duas
suposições inversas
também poderiam
ser aventadas.
A
primeira seria
que o
quantitativo –
pelo
próprio
atributo do “incontável”
– seria a
linha mestra da
narrativa, a
sua
mola propulsora e o
qualitativo o ratificaria
com os
fatos ocorridos. O
número, o
percentual, a
fração estariam
implícitos e a
narrativa se proporia a
ratificar as
perdas, os
danos, o não-quantitativo. O
proposital “apagamento” dar-lhe-ia o referido
estatuto.
Outra
suposição
também valha
reflexão :
como se
poderia
falar favoravelmente de/com
números se o
homem, se o
ser
humano constitui
apenas
um
detalhe ? A
vida
humana
não assume
importância numérica :
não importa (para os EUA
ou
para o
mundo)
quantos morreram,
quantos ficaram mutilados
ou seqüelados,
quantos
não tiveram possibilidade de
sobrevida – se importassse de
fato, a
bomba
jamais teria sido usada.
O
número,
então,
sob
esse
raciocínio, é
dispensável,
pois o
que se
releva é a “qualidade”
do
ato,
Para os
aliados, o
sacrifício de Hiroshima valeu a
vitória na 2ª.
Guerra.
O
autor sabe disso e utiliza
todos os
valores (cada
um adaptado a
sua
função
específica)
com
maestria, no
convencimento da
sociedade
americana – e mundial – do
erro
irreparável.
Ratifica-se
também o
contrato mediático (Charaudeau,
1996: 33): o
jornalista
passa a
ser reconhecido
pela
sociedade
americana , atribui-se-lhe
pertinência
intencional/redacional, validando
seu
projeto de
fala. Hiroshima ratifica a
legitimidade dos
autores (editores /
jornalistas) e os credibiliza – os
próprios
depoimentos (reescritos) ancoram os
estatutos do
SABER, do
PODER e do
SABER
FAZER.
Com
relação aos PCNs, cremos
que
nosso
estudo alinha-se ao preconizado
pela LDB,
em
seu
Artigo 22 (apud
PCNs, 1999): “desenvolver o
educando, assegurar-lhe
formação
indispensável
para o
exercício da
cidadania”
Logo, é
por
meio da
leitura – respaldo conteudístico
para a
produção
textual –
que se transmitem
informações, possibilitando-se o
acesso ‘a
informação, a
expressão e a
defesa de
pontos de
vistas,
tão
importantes
quando se
fala
em
argumentação.
Pelo
estudo de
valores, a
nosso
ver, cria-se
nova
perspectiva no
ensino de
técnicas argumentativas, abrem-se
novas
visões de
mundo, propicia-se a
polêmica, a
discussão
sobre o
material
psicossocial, examinam-se
contextos
históricos,
em variadas
circunstâncias de
produção.
Valores/lugares
argumentativos
são
inerentes à
cultura e encontram-se
nos
mais variados
meios de
interlocução.
Estudos argumentativo-disssertativos poderão
oferecer
agora,
tanto ao
aluno
quanto ao
professor,
novas
ferramentas
para
discussão,
elaboração de
pensamento e
escritura
textual.
Já é
um
bom
começo, espera-se.
BIBLIOGRAFIA
BENVENISTE. E. O
aparelho
formal da
enunciação. In:
Problemas de
lingüística
geral. V. 2.
Campinas: UNICAMP, 1979.
CHARAUDEAU, Patrick. Langage et discours: elements de semiolingüistique.
Paris: Hachette, 1983.
––––––.
Para uma
nova
análise do
discurso. In: O
discurso da
mídia.
Rio de
Janeiro:
Oficina do
Autor, 1996.
HERSEY, John. Hiroshima.
São Paulo:
Companhia das
Letras, 2002.
KOCH, Ingedore G. Villaça.
Argumentação e
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São Paulo: Cortez, 2002.
MAINGUENEAU, Dominique.
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PARÂMETROS curriculares
nacionais :
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Texto e
discurso :
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literatura e
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Rio de
Janeiro:
Lucerna, 2003.
PERELMAN, Chaïm & OLBRECHTS-TYTECA, Lucie.
Tratado da
Argumentação: a
nova
retórica.
São Paulo: Martins
Fontes, 1996.
SANTOS, Leonor Werneck dos. (org.).
Discurso,
coesão,
argumentação.
Rio de
Janeiro:
Oficina do
Autor, 1996.
O
que
de
fato
ocorreu: o
sucesso
foi
absoluto,
tanto
em
termos
quantitativos
(vendagem e
reedições)
quanto
nos
moldes
qualitativos
(a
obra
ainda
é considerada
por
estudiosos
da
Comunicação
como
uma
marco
no
jornalismo
literário,
gênero
(híbrido)
que,
para
alguns,
incorpora a
qualidade
textual
característica
do
fazer
literário.
Este
primeiro
fragmento
também
pode
ser
subdividido:
a)
o fato (mola
propulsora do texto) – uso do pretérito perfeito
b)
os
antecedentes – uso do pretérito imperfeito ou verbos de ações inacabadas
c)
o resultado
– uso do pretérito perfeito
Observe-se :
a) “No
dia
6 de
agosto
de 1945,
precisamente
‘as
oito
e quinze da
manhã,
hora
do Japão,
quando
a
bomba
atômica explodiu
sobre
Hiroshima,
b) a srta Toshiko Sasaki
(...) acabara de sentar-se (....) dr. Masakzu Fujii se acomodava
(...)a sra. Hatsuiyo Nakamura (...) observava (...)
A sincronia (cuja marca são os verbos no pretérito perfeito) é narrada passo
a passo : os personagens, mesmo sem o saber, igualam-se primeiro por suas
ações, depois por seu destino – o de participantes e sobreviventes.
O resultado também se apresenta em ordem parelha – ação (explosão da bomba)
acarreta reação – e o ordenamento metódico do cronista mostra-se novamente
presente, com todos os seis personagens. Apreciem-se dois deles :
a) “...
ele
correu
para
a
rua
(...)
Sob
o
que
parecia uma
nuvem
de
poeira,
o
dia
escurecia
mais
e
mais”
(p )
b) “... alguma
coisa
a levantou e a fez
voar
(....)
Tudo
escureceu”
O
próprio
fato
de os
fatos/verdades/presunções
(domínio
do
real)
assomaram
sob
a
forma
de uma
narrativa
só
ratifica o preferível, o presumível,
aquilo
em
que
se
quer
que
os
outros
acreditem,
pois
a
linguagem
(não
importa
sob
que
suporte
textual)
mostra-se
como
uma
forma
de
ação
sobre
o
mundo,
dotada de intencionalidade e,
por
isso
mesmo,
veiculadora de
ideologia
(Koch, 2002:15).