O
DELFIM
A
LIBERTAÇÃO
DA
ESCRITA
COMO
VISLUMBRE
DA
REVOLUÇÃO
Tatiana
Alves
Soares
Caldas
(UNESA e UniverCidade)
O
tempo,
o
tempo
manso,
português,
Começava a
carregar.
(Alexandra Alpha, p. 329)
Marcada
por
inovações
na
estrutura
romanesca, a
ficção
contemporânea
põe
em
xeque
os
modelos
literários
tradicionais,
tanto
no
que
se refere à
caracterização
de
personagens
quanto
aos
demais
elementos
narrativos.
Tal
redimensionamento é
especialmente
observado
na
ficção
portuguesa,
que
apresenta uma
preocupação
referente
à
identidade
coletiva,
dialogando
com
mitos
históricos
e
modelos
legados
pelo
passado.
O
delfim,
romance de José Cardoso
Pires publicado
durante a
ditadura salazarista, é
composto
por
três
níveis narrativos
que se entrelaçam, fundindo
categorias discursivas e marcando, no
plano da
escrita, o
desejo
revolucionário de transformação. Tem-se,
então, uma
história
que aponta
para uma
libertação, na
figura de
um
escritor
que
visita o
local e
tenta,
por
meio de
diferentes
depoimentos,
reconstituir o
crime
que possibilitou a socialização de
um
lugar monopolizado
por
um
descendente de
fidalgos. Esta constitui o
tema
aparente, e recebe
contornos de uma
narrativa
policial.
Um
segundo
aspecto,
ainda no
plano da
história, refere-se à socialização da
lagoa,
que na
narrativa aparece
como decorrente do
crime, uma
vez
que o
engenheiro desaparece
após a
morte da
mulher.
Ainda no
plano da diegese, tem-se a
história do
escritor às
voltas
com a
aventura de
escrever
seu
livro, o
que acaba
por fundir-se à
própria
enunciação,
pois é
ele o narrador.
Assim, tem-se,
por
meio desse escritor-narrador
que
tenta,
em
meio às
falhas da
memória regadas a
uísque,
recompor as
peças da
narrativa, uma
libertação
por
meio da
escrita, metaforizada
pela
escolha de uma
narração
em 1ª
pessoa,
com
um
ponto de
vista limitado, num
questionamento da onipotência da
autoridade no
plano discursivo. O narrador desespera-se, tentando
inutilmente
reunir
diferentes
testemunhos às
vagas recordações do
que se passara
um
ano
antes,
em
sua
visita
anterior à
estação de
caça. A
narrativa
caminha
em
círculos,
como
circular é a
lagoa
em
torno da
qual o
enunciado se constrói. Acreditamos, dessa
forma,
que o
romance se
estrutura a
partir da
tensão
Tradição x
Ruptura,
tanto no
plano do
discurso
quanto no da diegese.
A
história tem
início
com o
retorno de
um
escritor à Gafeira,
aldeia
supostamente localizada
em Portugal,
um
ano
depois de
sua
primeira
visita. Há uma
lagoa no
local, e os
direitos de
caça,
bem
como a
propriedade da
mesma, vinham há
séculos sendo monopolizados
pela
família do
engenheiro Tomás Manuel
Palma
Bravo.
Com a
morte da
esposa deste, ocorrida
em
circunstâncias misteriosas, tem-se o
desaparecimento do
engenheiro,
conhecido
como
Delfim, e a
conseqüente socialização da
lagoa,
agora usufruída
por
todos. No
plano da
história, a
tentativa de
elucidação do
crime constitui a
tônica da
narrativa,
aparentemente
policial.
Em
suas primeiras
lembranças da Gafeira, o narrador demonstra
sua
preocupação
com a
reconstituição
fidedigna do
passado:
Tomás Manuel está
como
convém a uma
narrativa
policial:
lareira
ao
fundo
da
sala,
espingarda
na
parede,
silêncio
na
lagoa.
Eu
sou o
indispensável
ouvinte
que
se interessa
por
destrinchar
o
nó
do
problema.
E vamos a
isto.
(PIRES,
1988: 165)
A
atitude
inicial
do narrador apresenta a
pretensão
de
descobrir
a
verdade,
e
para
isso
ele
comporta-se
como
um
verdadeiro
detetive,
anotando
com
rigor
os
depoimentos
que
colhe:
(...) Cumpre-me
prestar
bem o
ouvido às
palavras e
repeti-las,
como uma
testemunha
que vai
ditando ao
escrivão,
fiel à
sua
consciência e
ao
seu
juramento.
Um
testemunha
que
procura o
rigor
para
não
macular
covardemente
o
retrato
que
se reflecte nele, Tomás Manuel. (PIRES,
1988: 199)
Aos
poucos,
contudo, o escritor-narrador conscientiza-se de
sua
limitação e da inviabilidade de
seu
projeto, enveredando
por uma
nova
aventura, no
plano do
discurso: a
aventura de
narrar a
partir de
lacunas e
versões
que se anulam umas às outras, impossibilitando o
conceito de
verdade. É dessas desconstruções,
que abrangem
tanto a
esfera da
enunciação
quanto a da
história,
que
trata o
presente
estudo.
Ao se
deparar
com
diferentes
olhares
acerca do
crime, o narrador percebe o comprometimento de
alguns
depoimentos
com a
ideologia vigente, o
que os tornaria
parciais. A
tradição
que paira
sobre a Gafeira,
em
especial
sobre a
linhagem dos
Palma
Bravo, confere aos
depoimentos
um
caráter
tendencioso,
como se
verifica a
seguir:
(...)
Solidão,
bem vejo.
Respeito
pelos
antigos. Daí
que uma
formiga-mestra de caçadores guarde
tão
alta veneração
pelas
páginas
ásperas dum
memorial,
seguindo,
sem
dar
por
isso, as
opiniões e o
retrato
que
lá se faz da
Gafeira.
(...) Ah,
hospedeira,
que
por
vezes chego a
pensar
que é o
doutor
Agostinho
Saraiva
quem
fala
por
detrás dessa
boca de
pétalas. (PIRES,
1988: 56)
A
pluralidade
de
versões
não
apenas
revela a parcialidade
com
que
o
assassinato
da
mulher
de
Palma
Bravo
é
tratado,
como
evidencia a impossibilidade de se
chegar
a uma
certeza.
O narrador,
em
suas
andanças,
constata a
necessidade
de se compreenderem todas as
circunstâncias
antes
de
fazer
uma avaliação
precisa.
Percebe
estar
sendo ludibriado
por
diferentes
versões,
algumas refletindo a
ignorância
do
povo,
e outras
que
tentam
desfocar
a
atenção
em
relação
ao
crime,
para
que
a
verdade
jamais
venha à
tona:
Avalio deste
miradouro
as
voltas
e contravoltas
que
aquele
dente
não
deu
sobre
o
terreiro:
picando-o
todo
em
redor
de
mim,
mordiscando-o
em
círculos
enquanto
estive parado
junto
do
carro
(...), tecendo
renda
de
palavras,
enovelando-se-me
nos
passos,
a tolher-me a
marcha.
A
dada
altura
fui
eu
que
me
deixei
levar
por
ele.
(...)
Primeiramente
convinha
tomar
fôlego,
beber
um
copo,
e,
já
agora,
conhecer
as
linhas
com
que
se cose o caçador
ignorante
dos
mistérios
aldeões.
(PIRES,
1988: 41)
A
constatação de
que há
elementos
que
jamais vêm à
baila
quando se
trata de
pessoas poderosas é explicitado
pelo narrador,
que descarta as
informações
que
não podem
aparecer
em uma
narrativa comprometida
com o
patriarcado:
E
assim o
Domingos foi
renascendo da
miséria do
seu
corpo,
como diria
um narrador
patriarcal.
(...) E o
que
sempre
são as
coisas,
santa
hospedeira.
Entre
dama e
valete há
sempre uma
carta
apagada
que decide a
partida.
Acontece.
Qualquer
jogador de
bisca o sabe.
Mas
isto
não vem no
caderno.
(PIRES,
1988: 179)
Do
ponto de
vista narrativo, tem-se uma
estrutura
circular,
em
que a não-linearidade e as múltiplas
versões geram
um
constante
retorno ao
ponto de
partida. Desse
modo,
como observa Eduardo
Prado
Coelho, o
livro constrói-se "pelo
encontro de
dois
movimentos:
um
que institui o
mistério,
enquanto o
outro o dissipa"(PIRES,
1988:
introdução). O narrador cardosiano, dessa
forma, estaria
mais interessado na
suspensão do
fato do
que na
sua decifração.
Ainda no
plano da diegese, esta não-decifração sugere
todo o
contexto
político
ditatorial do Portugal de
então,
aqui metaforizado
pelo
monopólio dos
Palma
Bravo. O
crime,
que
jamais é elucidado, aponta o
estabelecimento de uma
versão
oficial
que deve
ser mantida,
ainda
que os
indícios apontem
caminhos
bem
distintos.
Significativa é a
imagem do
nevoeiro,
que perpassa a
narrativa, e se
torna
ainda
mais
evidente
quando se
chega
perto da
verdade, numa
metáfora da
obscuridade
que
cerca a
História
Oficial e
que impede
que determinadas
informações venham à
luz. O
nevoeiro encobre a
lagoa, e torna-se
mais
espesso à
medida
que o escritor-narrador se aproxima da
verdade:
(...) Nesta
estação,
Gafeira, pressente-se
vida,
mas
custa
distinguir
através
dos
vidros,
tal
é o
fumo.
(...)É
um
nevoeiro
que
embriaga,
um
nevoeiro
de
enguias
e de
brisas
do
oceano.
(PIRES,
1988: 169)
Observe-se
que o narrador afirma
que há
vida na Gafeira,
mas está
parcialmente
imersa na
neblina, numa
metáfora da
vida
que
pulsa, oculta
pelos
que a tentam
abafar.
Em
outro
momento, o narrador parece se
surpreender
com a
rapidez
com
que o
nevoeiro surge
nos
momentos
cruciais:
(...) E
nós
escalando o
monte,
e a
bruma
a fechar-nos o
caminho
atrás
dos
passos.
Só
quando
por
acaso
me
volto e deparo
com
o
vale
a
fumegar
de brancura compreendo
com
que
rapidez
e
insinuação
a
neblina
se apossou da
lagoa.
(PIRES,
1988: 202-203)
No
momento da
descoberta do
corpo de Maria das
Mercês, a
neblina surge
como a
penumbra
que
tudo oculta, num
indício de
que a
verdade será
encoberta:
À
hora
em
que
o
corpo
foi
descoberto,
hora
do
nascer
do
sol
(...), a
lagoa
estaria toldada
por
um
céu
fosco.
(...) A
dado
momento,
os
vultos
esfiapados das
barcaças
convergem de todas as
direções
sobre
um
ponto
distante.(...)
"Encontraram-na", concluem os
ciclistas
- e dominam-se
igualmente,
porque
tudo
se
passa
ainda
no
segredo
da
neblina.
(PIRES,
1988: 224)
Apesar de
evidenciar
tudo o
que há de
nebuloso na
história, a
imagem do
nevoeiro carrega
em
seu
simbolismo
um
aspecto
positivo, na
medida
em
que prenuncia transformações. A
constante
referência ao
nevoeiro, se
por
um
lado evidencia
tudo o
que paira
encoberto,
por
outro assinala a
fase de
transição, a
imprecisão
característica de
um
tempo de
mudança:
Símbolo
do
indeterminado,
de uma
fase
de
evolução:
quando
as
formas
não
se distinguem
ainda,
ou
quando
as
formas
antigas
que
estão desaparecendo
ainda
não
foram substituídas
por
formas
novas
precisas. (...) Evoca
ou
simboliza a indistinção, o
período
transitório
entre
dois
estados.
(...)Acredita-se
que
o
nevoeiro
preceda as
revelações
importantes:
é o
prelúdio
da
manifestação.
(CHEVALIER, 1990:
634-635)
Além
do
nevoeiro,
muitas
são
as
imagens
que
remetem simultaneamente aos
planos
discursivo e diegético, entrelaçando-os e apontando as
rupturas
vislumbradas no
romance.
No
que
se refere à
enunciação,
a
pluralidade
de
versões
traduz uma das
tônicas
da
ficção
contemporânea:
a
obra
aberta.
O
conceito,
tal
como
definido
por
Umberto
Eco,
caracteriza uma
ficção
com
múltiplas possibilidades interpretativas, conferindo-lhe
um
caráter
aberto,
e fazendo de
cada
leitor
um
partícipe do
processo
criativo,
sendo a
obra
passível
de
diferentes
leituras,
todas
igualmente
válidas. Dessa
forma,
a
obra
é completada
pelo
destinatário,
sendo questionados os
próprios
conceitos
de
verdade
e de
real.
Tem-se,
aqui,
um
exemplo
de focalização
restritiva,
destituindo o narrador de
sua
onisciência,
e obrigando o
leitor
a
decifrar
as
entrelinhas
do
texto,
uma
vez
que
nem
a
própria
instância
narrante confia
em
suas
conclusões.
A focalização
restritiva
coaduna-se
com
a
obra
aberta
da contemporaneidade,
pois
(...)
problematiza os
personagens
e os
eventos
diegéticos, obrigando o
leitor
a
um
esforço,
árduo
muitas
vezes,
para
apreender
o
significado
da
narrativa.
O narrador
não
dilucida
tudo
miudamente
nem
estabelece autoritariamente uma
interpretação:
há factos susceptíveis de várias
interpretações,
há
dúvidas
e
equívocos
que
permanecem, há
silêncios
que
ninguém
revela... (REIS,
1987: 167)
Um dos redimensionamentos observados na
narrativa diz
respeito à
figura do
engenheiro, desmitificada e decadente. Ao
delinear o
perfil de Tomás Manuel, o narrador apresenta-o
como uma
típica
representação do
patriarca
português,
espécie de
estereótipo do pater familias.
Sua
caracterização demonstra tratar-se de
alguém
que exerce
um
domínio
baseado na
hierarquia e na
legitimação asseguradas
pela
linhagem. A
lagoa,
local de
caça e de
pesca, é explorada
pelo
engenheiro, num
direito
que
passa de
pai
para
filho. A
figura
de Tomás Manuel está
para
a
Tradição
como
a socialização da
lagoa
representa a
Ruptura.
A
temporada
de
caça,
que
propicia o
retorno
do escritor-furão à Gafeira, permite o
confronto
entre
os
dois
momentos
da
história:
o
tempo
de
Palma
Bravo,
marcado
pela
exploração
e
pela
opressão,
e o
tempo
novo,
de
um
espaço
socializado, da
cooperativa
dos 98. É de
caça
também
a
atitude
do narrador,
que
parece
perseguir
sua
escrita,
nem
sempre
com
sucesso.
Em
diversos
momentos,
deparamo-nos
com
a
angústia
desse narrador
que
se
vê
diante
da
tarefa
impossível
de
reconstituir
com
exatidão
o
tempo
passado:
Sei,
todos
nós sabemos,
como
pesa o
tempo vencido
sobre
quem se
aventura a
recompô-lo. É
um
eco a
sublinhar as
palavras, uma
ironia
que
nos contempla
de
longe,
um aviso. Se
alguém (um
narrador
em
visita)
rememora a
seu
gosto (...) o
final duma
mulher
que é de
todos
conhecido e
que está
certificado
nos
autos; se se
apega a
um
punhado de
notas
tomadas
em
tempo
por
desfastio, e
se mete
agora a
entrelaçá-las e a descobrir-lhes uma
linha de
profecia,
então
esse
alguém
necessita de
pudor
para
encontrar o
gosto exacto,
a
imagem exacta
da
mulher
ausente.
Necessita de
discutir
consigo
mesmo, à
medida
que recorda, e
assim fá-lo
por
respeito,
pela
condição de
homem
em
face da
distância e da
ausência. É,
considero
aqui,
um
ofício
delicado
contar o
tempo vencido.
(PIRES,
1988: 198)
A
instância
narrante tem
consciência
da impossibilidade de
reconstruir
minuciosamente
a
história,
da
qual
tem poucas - e
discutíveis
-
lembranças.
Significativamente,
a
tensão
passado
x
presente
metaforiza
ainda
outra
questão:
a da
narrativa
tradicional, presentificada
pela
Monografia
que
enaltecia os antepasssados de
Palma
Bravo,
e a
ruptura,
na
construção
de
um
narrar
fragmentado,
desconexo
por
vezes,
mas
não
contaminado
pela
manipulação
da
ideologia
dominante.
O
olhar
do
passado,
comprometido ideologicamente, cede
lugar
a
um
olhar
ainda
hesitante,
mas
ciente
de
que
os
tempos
mortos
se foram, e cumpre
falar
do
tempo
novo,
vivo:
Podia
juntar
mais.
Enchi
páginas
e
páginas
com
lembranças
da
lagoa,
e
até
pedaços
de
livros
antigos
copiei, sentado a esta
mesa.
Mas
eis
que,
quando
trago
de Lisboa o
meu
caderno
e
me
preparo
para
recomeçar
a preenchê-lo
como
dantes,
como
prazer
e
meditação,
eis
que
o
mundo
antigo
desaparece e
me
deixa
uma
janela,
de
braços
caídos,
atordoado.
Já
não
tenho Tomás Manuel
como
modelo
vivo,
como
pão
da
minha
curiosidade.
Nem
Maria das
Mercês.
Nem
o
Domingos,
que
se transformou
em
cão-maneta.(...)
Por
isso,
se
pretender
juntar
aos
meus
apontamentos
a
menor
ideia, a
menor
palavra,
serei (...) narrador de
tempos
mortos.
Falarei obrigatoriamente de
ruínas,
misturarei
ditos
e
provérbios,
pondo-os na
boca
do
filho
quando
pertenciam ao
pai
ou
ao
tetravô,
numa
baralhada
de
espectros
em
rebelião.
(PIRES,
1988: 76)
Note-se
que
o
primeiro
impulso
do escritor-furão é o de
copiar
registros
antigos,
mas
a
visão
do
mundo
antigo
a
ruir
diante
de
seus
olhos
solicita-lhe uma
nova
atitude,
demovendo-o de
seu
projeto,
e libertando-o da
narrativa
tradicional. Desiste,
então,
de transcrevê-los, e a
nova
janela
que
se
lhe
abre move-o
em
direção
à
narrativa
de
ruptura,
em
que
não
mais
se tem a
pretensão
de
estabelecer
a
verdade,
racional
e
linear:
Tudo
abstracto:
tempo,
recordações,
Velho,
lagoa...(...)
tornam
mais abstracta
esta
Viagem à
Roda do
Meu
Quarto. (...)
Tudo,
tudo
abstracto. (...) A
aldeia
desfocou-se, perdeu
referências.
Duas
mortes
repentinas cortaram-lhe o
fio
natural do
tempo e as
vozes
que
me ligavam a
ela foram-se
distanciando, distanciando,
para
horizontes
incrivelmente
imprecisos.
(PIRES,
1988: 119)
À
medida
que
a
narrativa
avança,
mais
problemática
se
torna,
pois
o narrador vê-se na
situação
de
reescrever,
apagar,
traído
pela
memória
e pelas várias possibilidades
que
surgem
durante
a
investigação:
Falta-me,
quanto
mais
não seja, o
ódio
animal de
um
dente
que navega
entre a
fábula e a
justiça
para
dar a essa
palavra a
violência
devida. E,
para
já,
retiro a
expressão.
Seria
um
efeito
inútil, tenho
de
reconhecer.
Portanto,
onde
pus
Infante,
ponho
Engenheiro,
ou
simplesmente o
nome
próprio, Tomás Manuel
(...). Puxo
pela
memória.
(PIRES,
1988: 43-44)
O
ato
de
narrar,
ainda
mais
problemático
porque
decorrente de múltiplas e
excludentes
versões,
dá ao narrador a
certeza
de
que
a
nova
narrativa
se faz a
partir
da
ruptura
com
os
cânones,
históricos
e
literários,
problematizando o
fazer
literário
e desmitificando a
figura
do narrador
onisciente:
(...) Uma
situação
pouco
agradável
para
um
visitante,
se
não fosse o
whisky
velho
que o
acompanha e a
não
menos
velha
curiosidade
que
nunca
abandona o
contador de
histórias,
esteja
onde estiver.
Coleccionador de
casos,
furão
incorrigível,
actor
que escolhe o
segundo
plano,
convencido de
que controla a
cena, deixa-me
rir.
Rir
com
mágoa,
porque
todos os
contadores de
histórias,
por
vício
ou
por
profissão,
merecem a
sua
gargalhada
quando julgam
que controlam
a
cena. E
quem os
trama é o
papel, o
espaço
branco
que amedronta
- e
aí,
adeus
suficiência.
Não há boa
memória
nem
gramática
que os
salve.
Aposto
que Xenofonte,
apesar de
patrono dos
escritores
caçadores, foi
muito
melhor
furão
em
campo
aberto do
que no
papiro.(PIRES,
1988: 63)
A
reflexão
acerca
do
modo
de
contar
uma
história,
que
se vai intensificando
com
o
desenrolar
da
trama,
gera uma metanarrativa,
em
que
a
enunciação
assume
por
vezes
o
primeiro
plano,
constituindo-se no
objeto
narrado:
Encho-me de
paciência.
Respondo-lhe
que
gosto de
todos os
livros
que escrevi, e
de
maneira e
por
razões
diferentes;
que
em
todos
falta
qualquer rasgo
do
acaso
para os
tornar
definitivos,
acabados, e
daí
nunca
poder abandoná-los,
gostando
ainda
mais deles
por
isso.
Depois -
explico -
cada
romance tem as
suas
recordações à
margem das
aventuras
que
conta,
cada
um vai
crescendo
com o
tempo,
corrigindo-se
com o
corpo e a
voz do
homem
que o
escreveu.
Isso, as
memórias
ligadas a uma
obra e a
certeza de a
trazermos continuamente
conosco,
suspensa,
inacabada, é
que tornam
feliz a
arte de
escrever. (...)
Nenhum
escritor
gosta de
falar do
que escreveu a
não
ser
em
ocasiões
muito,
mas
mesmo
muito,
especiais.
Nenhum (...)
faz
livros
para
complicar a
vida.
(PIRES,
1988: 83-84)
A
crise
da
enunciação,
que
não
mais
se permite fechada, é
sentida
pelo
escritor-furão,
que
percebe a
necessidade
de se
inscrever
num
novo
tempo,
da
lagartixa
até
então
imóvel
-
imagem
que
perpassa a
obra
- e
que
ao
final
se
agita,
metaforizando o
tempo
português,
até
então
estagnado,
mas
passível
de
ser
revolvido
e modificado.
Passa,
então,
a
desprezar
a
Monografia,
libertando-se
para
tomar
parte
na
grande
festa
que
se
arma.
A
certeza
de
que
a
obra
contemporânea
é
aberta
é reiterada
pela
imagem
do
sono,
mostrando-nos
um
narrador entorpecido, e
que
fecha
(?)
seu
discurso
com
reticências,
acentuando
ainda
mais
o
caráter
modalizante da
narrativa:
Está
dito, ao
arraial
não
falto, custe o
que
custar. E ao
entardecer,
quando se
firmar no
alto dos
pinhais a
tentadora
coroa de
nuvens,
não abrirei o
meu
caderno de
apontamentos,
e
menos
ainda a
Monografia.
Ficou-me de
emenda.
Para a
próxima terei
o
cuidado de
escolher
outra
leitura, de
preferência
um
canto de
alegria.
Um
livro deste
tempo e desta
hora
que
não
traga a
lagartixa na
portada
como
um ex-libris
ou
como uma
pluma
imposta
sobre o
granito.
Desta
maneira, o
Autor
em
visita
despede-se de
um
companheiro de
serões e de
uma Ofélia
local, de
um
dente
excomungador e de
mastins e
idéias negras
que
lhe guardaram
a
cabeceira na
véspera do
dia de
todos os
Santos e de
todos os
caçadores, o
primeiro do
mês de
novembro de
mil novecentos
e sessenta e
seis.
Pensa na
manhã e
espera.
Espera.
Espera o
sono. O
sono.
Sono...
(PIRES,
1988: 227)
Do
ponto de
vista ideológico, a
ruptura realizada
pelo
romance é verificada na socialização da
lagoa,
até
então
detida
pelos
Palma
Bravo, e
depois pertencente a
todo o
povo. A
hegemonia dos
descendentes de
fidalgos alegoriza a
ditadura salazarista, e a
festa
que se realiza ao
final surge
como uma
espécie de
redenção. O narrador,
que desiste de
contar a
história da Gafeira, rende-se à
celebração da
liberdade, numa
inquestionável
associação
com o
fim da
ditadura, realizada no
plano da diegese,
mas
ainda uma
ficção na
realidade portuguesa da
época.
BIBLIOGRAFIA
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Dicionário de
símbolos.
Rio de
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SARAIVA, António José & LOPES, Óscar.
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