TÉCNICAS DESCRITIVAS EM LETRAS
DA MÚSICA POPULAR BRASILEIRA

Maria Aparecida Rocha Gouvêa (UNITAU)

A descrição é um modo textual que dificilmente se apresenta de forma autônoma, mas se integra nos outros modos discursivos, com as mais diversas funções, formando uma espécie de “retrato”, que por meio de palavras permite conhecer paisagens, ambientes, pessoas, processos.

A pormenorização que individualiza o ser descrito é obtida pelo uso de elementos lingüísticos importantes, substantivos e adjetivos, e por recursos estilísticos, figuras de linguagens, responsáveis por “fazer ver” e “fazer sentir” respectivamente. No processo de composição, o descritor seleciona esses elementos e os organiza para levar o interlocutor a formar e a conhecer a imagem do ser descrito.

Esta pesquisa propôs-se a analisar técnicas descritivas em seis letras da Música Popular Brasileira selecionadas do repertório de compositores brasileiros reconhecidos pelo público e pela crítica musical. Na análise, foram observados a temática, o objeto descrito e suas características, as impressões sensoriais utilizadas, os recursos lingüísticos e estilísticos responsáveis pela construção do sentido do texto e o papel e a posição do descritor observador.

Os resultados apontaram que os compositores brasileiros conhecem e utilizam as técnicas descritivas com competência, fazendo com que nosso cancioneiro seja reconhecido e admirado no mundo inteiro.

DESENVOLVIMENTO

Segundo Garcia (1982), descrição é uma representação verbal de um objeto sensível através da indicação dos seus aspectos mais característicos, cuja finalidade é a impressão que a coisa vista ou imaginada desperta em nossa mente através dos sentidos. O autor também aborda a importância do ponto de vista do descritor, que consiste não apenas na sua posição física, mas também na sua atitude e na predisposição afetiva em relação ao objeto descrito. A seleção, o agrupamento e a análise dos detalhes são de suma importância para que se obtenha a imagem do objeto descrito.

Carneiro (2001) apresenta a descrição como uma suspensão do curso do tempo, responsável por dar elementos a um determinado referente - ser animado ou inanimado, local, cena ou processo. O autor define os elementos fundamentais da descrição como constituintes de um tema-núcleo, com objetivos e critérios de limitação do observador e do referente, apresentando técnicas descritivas e propondo exercícios para a prática do leitor. Para ele, o processo descritivo pode realizar-se em níveis variados, inseridos em outros modos textuais ou “puros”, como as listas, apresentando alguns elementos fundamentais como: um observador; um tema-núcleo, que pode ser um objeto, um ser animado ou inanimado, ou um processo; um conjunto de dados pertinentes ao tema-núcleo selecionado.

Bearzotti (1991) define e analisa o texto descritivo, abordando suas funções, os traços do objeto descrito, caracterizados pelo uso de substantivos e adjetivos e propõe sugestões para elaboração de textos descritivos. Segundo o autor, as funções gerais são responsáveis pelo “fazer ver” e “fazer sentir” do texto.

Marquesi (1996) aborda a superestrutura da descrição, considerando e analisando a inserção dos textos descritivos como instrumento para a prática pedagógica, sugerindo que a proposta seja uma tarefa para a Lingüística de Texto.

A partir da teoria exposta, foram selecionadas seis músicas do repertório de compositores brasileiros. Os textos tinham a descrição como modo textual predominante. Foram analisadas as seguintes músicas:

Farinha - Djavan

Brigitte Bardot - Zeca Baleiro

As vitrines - Chico Buarque

Cariocas - Adriana Calcanhoto

Trem das Cores - Caetano Veloso

Palavras - Sérgio Britto e Marcelo Fromer

Objetividade e subjetividade na descrição

Há dois aspectos fundamentais na maneira de ver o mundo - o objetivo e o subjetivo. Esses aspectos são abordados conforme a sensibilidade do descritor e pela finalidade da descrição.

A descrição objetiva é a reprodução fiel do objeto. É a visão das características do objeto (tamanho, cor, forma, espessura, consistência, volume, dimensões etc.), segundo a percepção comum a todos, de acordo com a realidade. Predomina a linguagem denotativa , a exatidão de detalhes e a precisão vocabular.

A descrição subjetiva é a apreensão da realidade interior. O objeto é descrito de acordo com a sensibilidade do observador que privilegia a linguagem conotativa, representada por figuras de linguagem. O objeto é transfigurado pela sensibilidade do observador que o reproduz como ele é visto e sentido. Não há preocupação com a exatidão dos detalhes, mas sim com a transmissão da impressão que o objeto causa ao observador.

Nas letras analisadas, a descrição subjetiva foi predominante.

Descrição objetiva

“A farinha é feita / de uma planta da família / das euforbiáceas / de nome manihot utilíssima / ...” (Farinha - Djavan)

Descrição subjetiva

“A saudade é uma colcha velha / que cobriu um dia / numa noite fria / nosso amor em brasa / ...” (Brigitte Bardot)

“Os letreiros a te colorir / embaraçam a minha visão / ...” (Vitrines - Chico Buarque)

“Cariocas são sacanas / cariocas são dourados / cariocas são modernos / ... (Cariocas - Adriana Calcanhoto)

“O mel desses olhos luz, mel de cor ímpar / ... (Trem das cores - Caetano Veloso)

Descrição dinâmica e descrição estática

A captação da realidade pode ocorrer de duas maneiras: estática, como uma fotografia ou dinâmica, como num filme.

Na descrição estática predominam as formas nominais, com a presença de frases sem verbo ou com verbos que expressam estado.

Na descrição dinâmica predominam os verbos que expressam movimento e as figuras de linguagem como a prosopopéia e as cenas ganham a perspectiva cinematográfica do observador.

A presença física do observador é determinante na seleção dos elementos a serem descritos. Conforme a posição do descritor, o horizonte de observação modifica-se e os componentes descritos devem estar coerentes com essa posição.

Nas letras analisadas, tanto a descrição estática quanto a dinâmica apareceram:

Descrição estática

“Palavras não são más / palavras não são quentes / palavras são iguais / sendo diferentes / ...” (Palavras - Sérgio Britto e Marcelo Fromer)

“A farinha tá no sangue do nordestino / eu já sei desde menino / o que ela pode dar/ ...”(Farinha - Djavan)

Descrição dinâmica

“Passas em exposição / passas sem ver teu vigia / catando a poesia / que entornas no chão.” (As vitrines - Chico Buarque)

“Os átomos todos dançam / ... / crianças cor de romã / entram no vagão / ...”

“As casas tão verde e rosa / que vão passando ao nos ver passar / ...” (Trem das cores - Caetano Veloso)

Recursos lingüísticos da descrição

Para produzir um texto descritivo, o descritor necessita utilizar elementos lingüísticos importantes, que são:

frases nominais, em que predominam os substantivos e adjetivos;

orações em que predominam verbos de estado ou condição nas descrições estáticas e verbos que expressam movimento nas descrições dinâmicas;

orações adjetivas;

frases enumerativas que compõem os traços mais marcantes da descrição.

Nas músicas analisadas, apareceram os seguintes elementos lingüísticos:

Frases nominais com predomínio de substantivos e adjetivos
ou orações adjetivas

“A franja da encosta / cor de laranja / capim rosa-chá/...

O mel desses olhos luz / mel de cor ímpar / ...” (Trem das Cores - C. Veloso)

“Palavras doentias / palavras rasgadas / ...” (Palavras - Titãs)

“Subterrâneo obscuro / escuro claro / ...” (Brigitte Bardot - Zeca Baleiro)

“O cabra que não tem eira nem beira/ ...” (Farinha - Djavan)

Verbos de estado (descrição estática)
verbos que expressam movimento (descrição dinâmica)

“Cariocas são bacanas / cariocas são sacanas / ...”(Cariocas - A. Calcanhoto)

“Passas em exposição / passas sem ver teu vigia / catando a poesia / que entornas no chão. “ (As vitrines - Chico Buarque)

Recursos Estilísticos na descrição

A caracterização de um ser ou objeto em linguagem subjetiva implica o uso de determinados recursos expressivos que favoreçam o delineamento dos elementos retratados. As figuras de linguagem mais empregadas em descrições são a metáfora, a comparação, a antítese, a onomatopéia, a prosopopéia e a sinestesia.

Nas músicas analisadas, as mais utilizadas foram:

Metáfora

“A saudade é um trem de metrô / ...” (Brigitte Bardot - Zeca Baleiro)

“Te avisei que a cidade era um vão / ...” (As vitrines - Chico Buarque)

“Palavras são sombras / As sombras viram jogos / ...” (Palavras - Titãs)

“O mel desses olhos luz” (Trem das Cores - Caetano Veloso)

Comparação

“Cada clarão / é como um dia depois de outro dia / ...” (As vitrines - C. Buarque)

Prosopopéia

“Os letreiros a te colorir / ...

As vitrines te vendo passar / ...” (As vitrines - C.Buarque)

Antítese

“Palavras são iguais / sendo diferentes.” (Palavras - Titãs)

“Numa noite fria / nosso amor em brasa.” (Brigitte Bardot - Zeca Baleiro)

CONCLUSÃO

Segundo Garcia (1990), “a descrição é mais do que a fotografia, porque é interpretação também”, em que o observador tem possibilidades diversas de expor toda a sua subjetividade com os recursos lingüísticos e estilísticos que o texto descritivo permite. É o que se pôde observar durante a seleção do material para a realização desta pesquisa.

Foram analisadas seis músicas de compositores brasileiros, de trabalho reconhecido pela mídia e pelo público: Djavan, Caetano Veloso, Chico Buarque, Adriana Calcanhoto, Zeca Baleiro, Sérgio Britto e Marcelo Fromer (do grupo Titãs).

Durante a análise, observou-se que o uso da descrição nas letras das músicas é um recurso importante para delimitação e caracterização do objeto descrito e que há preferências por certos empregos lingüísticos e estilísticos. Os recursos lingüísticos mais empregados pelos compositores é, indiscutivelmente, o uso de adjetivos e locuções adjetivas em frases nominais e as orações adjetivas. Os recursos estilísticos mais utilizados são a metáfora, a antítese, a prosopopéia, seguidos de outros.

Com referência ao tipo de descrição, houve somente uma ocorrência de descrição objetiva na música “Farinha” de Djavan. A descrição subjetiva ocorreu em todas as músicas.

Com relação a posição do observador, notou-se que há uma predominância pela descrição estática, que apareceu em quatro das seis músicas analisadas.

Concluindo, percebe-se que os compositores utilizam com abundância os recursos lingüísticos e estilísticos característicos da descrição para expressão da sensibilidade artística.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALEIRO, Zeca. Líricas. São Paulo: Universal Music, 2000.

BEARZOTTI FILHO, Paulo. A descrição: teoria e prática. São Paulo: Ática, 1991.

CALCANHOTO, Adriana. Público. São Paulo: BMG, 2000.

CARNEIRO, Agostinho Dias. Redação em construção. Rio de Janeiro: Moderna, 1996.

COSTA, Gal. Mina D’água do meu canto. Rio de Janeiro: Som Livre, 1995.

DJAVAN. Milagreiro. Rio de Janeiro: Sony Music Entertaiment, 2001.

FÁVERO, Leonor Lopes. Coesão e Coerência textuais. São Paulo: Ática, 2000.

GARCIA, Othon Moacir. Comunicação em prosa moderna. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1990.

MARQUESI, Sueli C. A organização do texto descritivo em Língua Portuguesa. Petrópolis: Vozes, 1996.

OLIVEIRA, Helênio Fonseca de. A organização do texto descritivo à luz da Lingüística do texto. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001.

PAULIUKONIS, Maria Aparecida Lino. A descrição. Rio de Janeiro: UFRJ. 2001.

QUARTETO EM CY. Gil e Caetano em Cy. Rio de Janeiro: Cid, 1999.

TITÃS. Acústico MTV. Rio de Janeiro: Wea Music, 1997.

ANEXOS

MÚSICA: Farinha

Djavan

A farinha é feita

De uma planta da família

Das euforbiáceas

De nome manihot utilíssima

Que um tio meu

Apelidou de macaxeira

E foi aí que todo mundo

Achou melhor!...

A farinha ta

No sangue do nordestino

Eu já sei desde menino

O que ela pode dar

E tem da grossa, tem da fina

Se não tem da quebradinha

Vou na vizinha pegar

Pra fazer pirão ou mingau

Farinha com feijão

É animal

O cabra que não tem

Eira nem beira

Lá no fundo do quintal

Tem um pé de macaxeira

Macaxeira pr’ali, macaxeira pra cá

E em tudo que é farinhada

A macaxeira ta

Você não sabe

O que é farinha boa

Farinha é a que a mãe

Me manda lá na Alagoas!

 

MÚSICA: Brigitte Bardot

Zeca Baleiro

A saudade

É um trem de metrô

Subterrâneo obscuro

Escuro claro

É um trem de metrô

A saudade

É prego parafuso

Quanto mais aperta

Tanto mais difícil arrancar

A saudade

É um filme sem cor

Que meu coração

Quer ver colorido

A saudade

É uma colcha velha

Que cobriu um dia

Numa noite fria

Nosso amor em brasa

A saudade

É Brigitte Bardot

Acenando com a mão

Num filme muito antigo

 

MÚSICA: As Vitrines

Chico Buarque

Eu te vejo sumir por aí

Te avisei que a cidade era um vão

Dá tua mão

Olha pra mim

Não faz assim

Não vai lá não

Os letreiros a te colorir

Embaraçam a minha visão

Eu te vi suspirar de aflição

E sair da sessão, frouxa de rir

Já te vejo brincando, gostando de ser

Tua sombra a se multiplicar

Nos teus olhos também posso ver

As vitrines te vendo passar

Na galeria

Cada clarão

É como um dia depois de outro dia

Abrindo salão

Passas em exposição

Passas sem ver teu vigia

Catando a poesia

Que entornas no chão.

 

MÚSICA: Cariocas

Adriana Calcanhoto

Cariocas são bonitos

Cariocas são bacanas

Cariocas são sacanas

Cariocas são dourados

Cariocas são modernos

Cariocas são espertos

Cariocas são diretos

Cariocas não gostam de dias nublados

Cariocas nascem bambas

Cariocas nascem craques

Cariocas têm sotaque

Cariocas são alegres

Cariocas são atentos

Cariocas são tão sexys

Cariocas são tão claros

Cariocas não gostam de sinal fechado...

 

MÚSICA: Trem das Cores

Caetano Veloso

A franja da encosta

Cor de laranja

Capim rosa-chá.

O mel desses olhos luz,

Mel de cor ímpar.

O ouro ainda não bem verde da serra.

A prata do trem.

A lua e a estrela.

Anel de turquesa.

Os átomos todos dançam

Madruga, reluz neblina.

Crianças cor de romã

Entram no vagão.

O oliva da nuvem chumbo ficando

Pra trás da manhã.

E a seda azul do papel

Que envolve a maçã.

As casas tão verde e rosa

Que vão passando ao nos ver passar.

Os dois lados da janela

E aquela num tom de azul

Quase inexistente,

Azul que não há.

Azul que é pura memória

De algum lugar.

Teu cabelo preto, explícito objeto,

Castanhos lábios.

Ou pra ser exato, lábios cor de açaí.

E aqui trem das cores, sábios projetos.

Tocar na central.

E o céu de um azul celeste celestial.

MÚSICA: Palavras

Sérgio Britto e Marcelo Fromer

Palavras não são más

Palavras não são quentes

Palavras são iguais

Sendo diferentes

Palavras não são frias

Palavras não são boas

Os números pra os dias

E os nomes pra as pessoas

Palavras eu preciso

Preciso com urgência

Palavras que se usem

Em casos de emergência

Dizer o que se sente

Cumprir uma sentença

Palavras que se diz

Se diz e não se pensa

Palavras não têm cor

Palavras não tem culpa

Palavras de amor

Pra pedir desculpas

Palavras doentias

Palavras rasgadas

Palavras que se curam

Certas ou erradas

Palavras são sombras

As sombras viram jogos

Palavras pra brincar

Brinquedos quebram logo

Palavras pra esquecer

Versos que repito

Palavras pra dizer

De novo o que foi dito

Todas as folhas em branco

Todos os livros fechados

Tudo com todas as letras

Nada de novo debaixo do sol.