Jerônimo satirista e os satíricos latinos

Luís Carlos Lima Carpinetti (UFJF)

 

Os satíricos latinos

Se há um aspecto que nós brasileiros aprendemos e apreendemos da antiga cultura latina foi o fato de ser dado fazer sátiras. Basta ligar a televisão em dia certo da semana para apreciar a hilariante sátira de Casseta e Planeta, do Zorra Total, para lembrar dois programas da Rede Globo que têm uma veia satírica evidente.

O gênero satírico tem extensa lista de cultivadores ao longo da história da literatura ocidental. Na França, Molière constrói a sátira da burguesia que se enriquecia e dava ensejo à aparição de novos ricos em O burguês fidalgo. O mesmo dramaturgo ataca o falso pietismo em Tartufo. Em Portugal, temos Gil Vicente. Eça de Queirós tece crítica impiedosa à religião católica em A relíquia, com um discurso carregado de fina ironia, utilizando-se abundantemente de superlativos absolutos sintéticos, formas tão típicas da liturgia católica. Na Inglaterra, temos Swift, com As viagens de Gulliver. Na Espanha, a obra-prima de Cervantes contém muitos aspectos do gênero satírico.

Ora, o gênero nasceu entre os latinos. Seu fundador foi Lucílio, que teria nascido ou em 180 ou em 108 a.C. e teria morrido em 102 ou 101 a.C. O termo sátira tem como origem etimológica o advérbio satis, que quer dizer em demasia, bastante, ou o adjetivo satur, a, um que quer dizer impregnado, saciado. Com Névio e Ênio, encontramos alguns esboços do que, somente com Lucílio, poderíamos chamar de sátira.

Quintiliano afirmava no século I da nossa era que a sátira era inteiramente latina e nada ficava a dever a influências estrangeiras, como a dos gregos, no caso de outros gêneros, como o caso do romance. Satura tota nostra est, afirmava Quintiliano. Antes de Lucílio, que se admite que seja o criador do gênero em Roma, nunca havia sido publicado nenhuma obra que reunisse poemas de forma fixa, escritos em um sistema métrico a princípio tido como nobre e dedicados à denúncia irônica das taras humanas, políticas e sociais. Mas, em obras de Aristófanes, havia um momento em que o corifeu tomava a frente da cena para dirigir à platéia uma arenga na qual o mesmo expunha livremente ao público seus agravos pessoais e suas opções políticas, dando livre curso a seus sentimentos e opiniões, sobretudo aquilo de que não gostava. Essa intervenção no decorrer da apresentação da comédia chamava-se parabase, e o fato deste recurso preexistir à aparição do criador latino da sátira, que é Lucílio, isto relativizaria as pretensões de Quintiliano acerca da criação genuinamente latina da sátira, imputável aos latinos.

Pérsio foi o mestre da sátira de inspiração estóica. Juvenal se notabilizou pela expressão da cólera e da indignação. Quanto a Horácio, este foi um divulgador amável de um epicurismo reconciliado com a velha sabedoria romana.

 

O aspecto satírico
da
Apologia de Jerônimo contra
Rufino

Os escritos de Jerônimo ( as epístolas, a obra exegética, a obra polêmica, a obra homilética, a obra histórica ) a todo momento trazem traços satíricos que importa tratar, seja pela freqüência das ocorrências em toda sua obra, seja pelo fato de tal traço evidenciar uma marca de sua personalidade e caráter. David S. Wiesen dedicou uma obra a esse tema que mencionamos em nossa bibliografia (WIESEN, 1964), na qual estuda os diversos alvos da verve satírica de nosso autor, como a sociedade de seu tempo de modo geral, os costumes eclesiásticos e clericais, as mulheres e o casamento, os hereges, os judeus e os pagãos, seus inimigos pessoais, entre os quais Rufino; na sua conclusão analisa a visão da sátira pelo próprio Jerônimo. Nossa preocupação nesse tópico é levantar as ocorrências desse traço satírico no corpus literário que colocamos como objeto de análise.

Matthew Hodgart (1969: 108-131) assinala em sua obra alguns processos básicos na composição da sátira. Um deles é a técnica da redução de tamanho do alvo ou personagem ou grupo a ser atacado satiricamente, que pode dar-se de forma literal, como acontece na obra As viagens de Gulliver, de Swift, ou pelo despojamento da vítima de todos seus apoios de posição e classe social, para a qual a indumentária simboliza posição e classe social, mas que, uma vez desprovida da indumentária, revela-se a vítima ser mero mortal, sujeito a situações vergonhosas, torpes, sujas, a tudo que é próprio de um animal. A sátira, além dos aspectos da animalidade e até da mineralidade, interessa-se também pelo automatismo em que se acha imerso o ser humano, vindo a afigurar-se esse ser humano como homem-máquina, qualquer que seja o mecanismo de época e de sociedade e cultura em que se insira o ser humano em questão. Os satíricos mimetizam o automatismo de suas vítimas na cena teatral, pela imitação dos traços realísticos dos vícios, torpezas e indignidades em que se apresentam as vítimas da sátira. Utiliza-se também a paródia, procedimento pelo qual identificamos distorções com a presença de umoutro canto” (assim se definiria, etimologicamente, o termo grego “para-ode”) sob as aparências de um texto ou canto ou um estilo que é tomado por modelo. Ainda também importante é a dessimbolização que consiste na destruição dos símbolos com a finalidade de advertir os homens quanto à má e indevida utilização dos mesmos, muitas vezes por tiranos e demagogos para fins injustos. As religiões são alvos propícios a este tipo de procedimento, devido à riqueza e complexidade de seus simbolismos. Por fim, a ironia que sempre deita abaixo a máscara das grandes pretensões humanas, expondo em sua crueza toda a realidade que se esconde sob intenções e ideais mais nobres. Northrop Frye lembra que “a sátira é a ironia militante” (em Anatomia da Crítica, p. 219): o satírico utiliza a ironia para fazer com que o leitor se sinta incomodado, para tirá-lo de sua complacência e convertê-lo em um aliado na luta contra a estupidez humana.

O gênero satírico assume, na Apologia de Jerônimo contra Rufino, a função de agudizar o retrato do adversário Rufino, desqualificando-o sensivelmente e acentuando seus vícios, sua ignorância, suas más qualidades, bem como os resultados a que podem conduzir algumas crenças heréticas que seu adversário Rufino defendia.

Jerônimo concentra no parágrafo 17 do Livro I de sua Apologia uma visão satírica de seu ex-amigo Rufino. Descreve Rufino como alguém que, em latim, guarda silêncio, por causa de uma ignorância que se assemelha à daquela serva de Euclião, Estáfila, no primeiro ato da peça Aululária de Plauto, momento em que Euclião ameaça espancá-la se ela não cumprir a sua obrigação de vigiar e tomar conta da casa, local em que, a partir daquele momento Euclião ocultava seu tesouro. Estáfila, serva lenta no raciocínio e desprovida de inteligência, de quem Jerônimo evoca, na citação retirada de Plauto, o movimento que se assemelha a passos de tartaruga, carrega, com a imagem deste animal, a idéia de lentidão, de silêncio, de ignorância[1].

Lembrando a Rufino que o ofício das letras não tem nenhuma relação com o poder aquisitivo de quem as cultiva, uma vez que as mesmas exigem trabalho, jejum, continência e, a exemplo de Demóstenes[2], muitas vigílias noturnas, Jerônimo justifica seu aprendizado da língua hebraica como fruto e exercício desse ofício que requer muita atividade e disciplina por parte daqueles que o praticam. Jerônimo contrapõe a seu aprendizado trabalhoso a pompa da antonomásia “Aristarco de nosso tempo[3], referindo-se a um símbolo da cultura grega, Aristarco de Samotrácia, que morreu por volta de 145 a.C. e que dirigiu a biblioteca de Alexandria e cujas recensões, sobretudo as de Homero, fizeram dele o tipo do crítico exigente. O pedido de desculpas, por parte de Jerônimo, de lembrar exemplos estrangeiros a quemtanto se gaba de conhecer os gregos[4], colabora com a antonomásia de “Aristarco de nosso tempo”, mas percebe-se, por outro lado, que um discurso irônico pela incompatibilidade entre o que faz Rufino – gabar-se de conhecer os autores gregos, a ponto de esquecer a própria língua – e a comparação de Rufino com a própria deusa Minerva, a quem Jerônimo recusa-se a instruir, na condição de “porco”, ou a comparação de Rufino com uma grande floresta que, prescindindo que se lhe traga mais madeira, é como que a imagem de um eminente sábio que dispensa novos aprendizados.[5]

Nessa estocada contra Rufino, Jerônimo invoca seu cabedal de cultura satírica clássica. A princípio, as duas expressões proverbiais de que tratamos no parágrafo anteriorsus Mineruam, ut aiunt, qui inepte Mineruam docet e in siluam non ligna feras – tendo esta última citada por Horácio na décima sátira do Livro I, são retomadas no texto com uma vinculação clara a um propósito irônico da parte de Jerônimo. Este utiliza satiricamente uma passagem da III Écloga de Virgílio, comparando a incompetência do personagem-alvo de sua sátira à imperícia e à falta de talento daquele que, nas encruzilhadas, revelava incapacidade de tocar bem uma charamela.[6] Evoca também Jerônimo uma farça grosseira, o Testamentum Grunnii Corocottae Porcelli, que narra a história de um porco que deixa em herança a seus pais e amigos seus próprios membros, história que fornece a Jerônimo o apelido que ele vai impor a Rufino[7]. Evocando cenas de espetáculos públicos com falsos advinhos, em torno dos quais se aglomeravam pessoas, as quais participavam dos pequenos e prosaicos jogos dessa espécie de charlatães, Jerônimo cria a cena a que se poderia comparar os livros de um autor incapaz com sua ignorância, e os “imbecis” que o acompanham e rendem culto a tal espécie de mestre.[8]

Quanto às posições heréticas de Rufino quanto ao mundo que haverá de vir, Jerônimo declara ironicamente: “...isto é o que tememos mais: que pudéssemos chegar ao céu sem narizes ou orelhas, com ou sem nossas partes genitais amputadas e cortadas, e que, então, se construísse uma cidade de eunucos na Jerusalém celeste...”[9] Nessa amputação podemos ler a castração que Orígenes infligiu a si mesmo; ora o seguir as doutrinas de Orígenes traz consigo o prestar culto a um homem castrado, e, pela heresia, reproduzir, por assim dizer, várias cópias humanas do castrado Orígenes.

Ora, ao tratarmos neste artigo a sátira, seria possível evocar também todos os elementos que compõem um retrato desqualificado do adversário Rufino, no item sobre a diatribe cínico-estóica, em nossa tese de doutorado (cf. www.teses.usp.br/teses/disponiveis/ 8/8143/tde-01122003132058), como exemplos de utilização do discurso satírico do autor, nos quais vemos a atuação do espírito irônico de Jerônimo na destruição da carga simbólica de que se revestia provavelmente Rufino na sociedade romana em que vivia, na passagem do século IV para o século V, recebendo da sociedade o culto que Jerônimo se incumbe de solapar com a desqualificação irônica de sua poderosa veia satírica. É preciso estarmos atentos ao fato de que o texto é um tratado polêmico e que, portanto, as duas partes se mantêm sempre em posição de ataque e de defesa, e que não se pode, por esta razão, tomar os pronunciamentos de ambas as partes como dados inteiramente objetivos.

 

À guisa de conclusão:

Os exemplos que utilizamos demonstram que o gênero satírico pôde ser aplicado e utilizado por autores da época cristã, como, aliás, se pode observar em muitos outros contextos de épocas posteriores. Sempre, em todas as situações, épocas e lugares, o satirista desmascara tudo quanto encubra a verdadeira face do ser humano e seus verdadeiros valores, indo ao âmago de todas as farsas, disfarces, discursos, simulacros, corrupções de costumes, falsas religiões etc. Na obra Apologia de Jerônimo contra Rufino, o alvo da sátira é o ex-amigo e a sátira desempenha um papel importante na construção do texto polêmico de Jerônimo, no seu intento panfletário.

 

Bibliografia

CARPINETTI, L.C. O aspecto polêmico da Apologia de Jerônimo contra Rufino. Tese de doutorado, USP, 2003. www.teses.usp.br/te-ses/disponiveis/8/8143/tde-01122003-132058

HIGHET, G. The anatomy of satire. Princeton: Princeton Univ. Press, 1962.

HODGART, Matthew. La sátira. Madrid: Guadarrama, 1969.

LARDET, P. L’Apologie de Jérôme contre Rufin. Un commentaire. Leiden, New York, Köln: Brill, 1993.

MARTIN, R. e GAILLARD, J. Les genres littéraires à Rome. Paris: Nathan, 1990.

ROSTAGNI, A. Storia della letteratura latina. Turim: Unione Tipografico-Editrice Torinese, 1964.

SÃO JERÔNIMO. Apologie contre Rufin. Introdução, texto crítico, tradução e índice por Pierre Lardet. Paris: Cerf, 1983.

––––––. Epistolario. Edição de Juan Bautista Valero. Madrid: BAC, 1993.

VULLIAMY, C. E. The anatomy of satire. Londres: Michael Joseph, 1950.

WIESEN, D. S. St. Jerome as a satirist. A study in Christian Latin Thought and Letters. New York: Cornell University Press, 1964.


 


 

[1] São Jerônimo, Apologia, p. 48: “...Tu qui in latinis mussitas et testudineo gradu moueris potius quam incedis, uel graece debes scribere ut, apud homines graeci sermonis ignaros, aliena scire uidearis, uel si latina temptaueris, ante audire grammaticum, ferulae manum subtrahere et inter paruulos aqhnogerwn, artem loquendi discere...”

[2] São Jerônimo, Apologia, p. 48: “...Demosthenes plus olei quam uini expendisse se dicit, et omnes opifices nocturnis semper uigiliis praeuenisse...”

[3] São Jerônimo, Apologia, p. 46: “...Aristarchus nostri temporis...”

[4] São Jerônimo, Apologia, p. 46: “...Praetermitto Graecos, quorum tu iactas scientiam...”

[5] São Jerônimo, Apologia, p. 46: “...Praetermitto Graecos, quorum tu iactas scientiam et, dum peregrina sectaris, paene tu sermonis oblitus es -, ne ueteri prouerbio sus Mineruam docere uidear et in siluam ligna portare...”

[6] São Jerônimo, Apologia, p. 50: “...Non tu in triuis, indocte, solebas stridenti miserum stipula disperdere carmen?...”

[7] São Jerônimo, Epístola 125, 18, 2: “...Testudineo Grunnius incedebat ad loquendum gradu et per interualla quaedam uix pauca uerba capiebat, ut eum putares singultire, non proloqui...”

[8] São Jerônimo, Apologia, p. 50: “...Cottidie in plateis fictus hariolus stultorum nates uerberat et obtorto scipione dentes mordentium quatit, et miramur si imperitorum libri lectorem inueniant?...”

[9] São Jerônimo, Apologia, p. 108: “...Scilicet hoc timuimus ne sine naso et auribus surgeremus, et amputatis sectisque genitalibus, eunuchorum in caelesti Ierusalem ciuitas conderetur!...”