OS JOGOS FÚNEBRES EM HONRA DE ANQUISES”
Márcia Regina de Faria da Silva (UERJ)
Neste momento de Olimpíadas, é importante atentarmos para a dimensão histórica, social e religiosa que tinham os jogos na Antigüidade.
Na Grécia, basicamente, os jogos não eram feitos de forma circunstancial, mas fixa. Havia um calendário agonístico, ou seja, para os agônes, embates, certames, disputas. Palavra esta, no singular (agón), usada para nomear a primeira parte da comédia grega antiga. No calendário estavam inscritos os quatro grandes jogos Pan-helênicos: Olímpicos, Nemeus, Istímicos e Píticos, que se realizavam cada um em um ano, repetindo-se a cada quatro anos. Contudo, observamos, na Ilíada e na Odisséia, os jogos sendo utilizados para homenagear. No VIII canto da Odisséia, Ulisses é honrado por Alcínoo através de disputas atléticas:
(...)Assim, disse, afinal:
Escutai, amigos! Assaz nos deleitamos no banquete. Saiamos e experimentemos os jogos e exercícios, de maneira que o nosso hóspede possa contar aos seus amigos, quando voltar à pátria, como superamos o mundo, na luta de murros e na luta livre e no salto e na corrida. (HOMERO. Odisséia, p. 87)
Nada melhor do que mostrar a honra guerreira ou a areté de seus homens para homenagear o principal guerreiro grego a unir força e astúcia.
Também na Ilíada, no canto XXIII, há jogos solenes, mas em honra a um herói morto. Pátroclo é celebrado, in memoriam, por seu amigo Aquiles, o mais bravo de todos os gregos, através de jogos fúnebres, iniciados logo após às exéquias de Pátroclo, cremado em uma pira. Aquiles ordena que seus homens façam o túmulo do amigo e ali, mesmo são feitos os jogos. Vejamos a passagem:
Chorando, ajuntaram os brancos ossos de seu gentil companheiro em uma urna de ouro, com dupla camada de gordura e, colocando a urna dentro da tenda, cobriram-na com um fino pano de linho. Marcaram o lugar do túmulo e dispuseram as pedras dos alicerces em torno da pira. Sem demora, empilharam a terra e, depois, afastaram-se. Aquiles, porém, deteve ali os homens e fê-los se sentarem em ampla assembléia e trouxe dos navios prêmios (...) Em primeiro lugar, destinou valiosos prêmios aos velozes condutores de carros: (...).(HOMERO. Ilíada, p. 251)
E assim começaram os jogos fúnebres. À corrida de carros seguiu-se a luta corporal, a corrida de velocidade, a luta com armas, lançamento de peso à distância, arco e flecha e lançamento de dardo. Para honrar a memória de um herói de alta estirpe era necessário que outros de grande valor mostrassem sua força e sua bravura.
Em Roma, os jogos se tornaram muito numerosos. Segundo Junito Brandão:
Os romanos foram bem mais longe: militaristas, práticos e utilitaristas, ciues e milites, na ânsia de assegurar uma boa colheita, de ter sobretudo os deuses ctônicos e seus mortos in bono animo, “bem dispostos”, de manter o Estado firme e inexpugnável, de agradecer aos imortais pelas vitórias alcançadas nos campos de batalha, de mitigar-lhes a cólera nos momentos de crise e de honrar os seus heróis ilustres, multiplicaram seus Jogos.(BRANDÃO,1993: p. 177)
Os jogos de caráter religioso ou oficial eram designados Ludi, plural de ludus, que significa jogo, divertimento. Os Ludi romanos eram divididos em dois tipos: Ludi Solemnes (Jogos Solenes) e Ludi Votiui (Jogos Votivos). Os primeiros eram realizados em datas fixas, como os Ludi Cereales em honra da deusa Ceres, em abril, ou os Ludi Romani ou Maximi, que aconteciam em setembro, em honra de Júpiter, ou ainda os Ludi Saeculares, que ocorriam de 100 em 100 anos, e através de cerimônias de expiação pela passagem de mais um século, visavam à manutenção do Estado. Os Ludi Votiui eram jogos extraordinários que aconteciam sem uma data certa, pois dependiam das circunstâncias. Eles eram divididos em: Ludi Votiui propriamente ditos, realizados quando do cumprimento do voto de algum magistrado em momentos difíceis; Ludi Triumphales (Jogos Triunfais), feitos para o povo por um general vencedor para cumprir um voto anterior; Ludi Dedicatorii (Jogos Dedicatórias), realizados na inauguração de um templo ou monumento público; e Ludi Funebres (Jogos Fúnebres), dedicados, pelos parentes, ao morto por ocasião de seu funeral ou, de modo mais raro, em seu aniversário de morte.
Os Jogos Fúnebres eram realizados normalmente nove dias após a morte, no momento em que as cinzas eram enterradas e consistiam num dever religioso. Só eram dedicados a personagens extremamente importantes, conforme Junito Brandão:
(...) “a heróis” que, semelhantes aos deuses subterrâneos, podiam definhar, pondo em risco a fecundidade da Mãe-Terra e da prosperidade do mundo. (...) Rejuvenescer esses últimos (os mortos) para remoçar simultaneamente a natureza e os governantes era o objetivo de muitas culturas primitivas.(BRANDÃO, 1993: p. 186)
Neste contexto, vemos o quinto canto da Eneida de Vergílio, no qual Enéias, após abandonar Dido e deixar Cartago, é levado para Sicília, mais precisamente, para a cidade do também troiano Acestes, onde seu pai havia sido sepultado um ano antes. Anquises é, então, honrado por Enéias através de uma série de eventos: procissões solenes, sacrifícios, jogos.
Como dissemos acima, os Jogos Fúnebres só eram realizados para heróis e raramente no aniversário de morte. Anquises precisava ser honrado, pois além de ser pai, companheiro e conselheiro, em vida, do grande herói Enéias, fundador do povo romano, descendia ele próprio de Júpiter e seria a chave, no canto VI, para animar Enéias. Este encontra os Manes de seu pai nos Infernos e tem a visão da Roma gloriosa, continuando sua busca pela Itália, onde deveria cumprir seu destino, fundando uma nova Tróia.
Enéias é o representante do povo romano. Através de seu epíteto pius, o piedoso, observamos que ele está repleto da pietas, principal virtude romana, que se resume pela obediência irrestrita aos deuses. É justamente essa obediência que o leva à Sicília, como vemos nessa passagem:
O piedoso Enéias retrucou: “Realmente, já vi que é isto que querem os ventos e que lutas em vão contra eles. Muda a direção das velas. Que terra me seria mais cara e onde procurar melhor refúgio para as naves castigadas do que na terra que guarda o dardânio Acestes e que conserva em seu seio os ossos de meu pai Anquises?”(VIRGÍLIO, Eneida, p. 78)
Ele interpreta, portanto, essa volta ao lugar em que seu pai foi enterrado, justamente quando se completava um ano, como um presságio divino de que ele deveria honrá-lo novamente, como na época da morte. Ele cumpre então os votos - daí os Jogos Votivos - e os confirma, prometendo renová-los anualmente, após a fundação da cidade na Itália. Observemos:
Agora não creio que estejamos perto das cinzas e dos ossos de meu pai trazidos pelas ondas para um porto amigo, sem que fosse intenção e a vontade dos deuses. Vamos, pois, juntos tributemos-lhe as honras; peçamos-lhe ventos propícios, e possa eu, com sua vênia, quando tiver fundado a cidade, renovar todos os anos estes mesmos sacrifícios, em templos que lhe serão dedicados. (idem, p. 79)
Após a exortação dos companheiros, começam as libações, homenagens e sacrifícios a Anquises. Depois de nove dias, como mandava a tradição, iniciam-se os Jogos que, apesar de terem o nome de Fúnebres, eram marcado por uma atmosfera de muita alegria. É o que se nota nesta passagem que dá início às competições:
Então, toda floresta ressoa com os aplausos e o frêmito dos espectadores, e as vozes partidas das praias vão ecoar nas colinas que as rodeiam.(idem, p. 81)
Isso, de modo algum, é contrário aos ritos. Em Roma, acreditava-se que os mortos deveriam ser alegrados, pois senão retornariam para perturbar a ordem, quer das pessoas que não os honraram devidamente, quer, no caso de heróis, da própria cidade que poderia ser assolada por pestes ou dominada por inimigos.
Junito Brandão nos lembra que “os espetáculos fúnebres incluíam, entre outras modalidades, lutas de gladiadores e ludi scaenici, representações cênicas, sobretudo de comédias, porque aos mortos se faz rir e não chorar.” (BRANDÃO, 1993: 124)
Não há nem uma coisa, nem outra na Eneida. Logicamente, porque seria até mesmo um anacronismo colocar esses espetáculos que se proliferaram especialmente na época imperial, antes mesmo da chegada dos troianos ao Lácio.
As competições seguem a seguinte ordem: corridas de barco e a pé, luta com cestos, arco e flecha, corrida de carros. E são marcadas por ricos presentes destinados aos competidores. Todos os que se oferecem para a disputa são premiados, ainda que não consigam completar a prova, reinando o espírito esportivo acima do competitivo. Como vemos na premiação de Sergesto que teve seu navio preso nas pedras e seus remos destruídos.
Enéias dá a Sergesto a recompensa prometida, satisfeito por ver a nave salva e os companheiros de regresso. Dá-lhe uma escrava que não ignora os trabalhos de Minerva, da nação cretense, e os gêmeos que ela está amamentando. (VIRGÍLIO, Eneida, p. 83)
Apesar da predominância desse espírito esportivo, Virgílio utiliza a tradição homérica, quando dá destaque à genealogia do herói que se apresenta para competir:
Acorrem de todos os lados, confundidos, teucros e sicilianos, sendo os primeiros Niso e Euríalo, Euríalo notável por sua beleza e sua juventude, e Niso pela profunda afeição que dedica ao jovem; atrás deles vinha Diores da real e insigne estirpe de Príamo; depois Sálio juntamente com Pátron, um da Arcánia, outro de sangue árcade, de uma família de Tegeu; (idem, p. 83)
Também é Homero e toda tradição épica que o inspira a fazer com que uma personagem repreenda aqueles que não estão dispostos a lutar e se mostram covardes.
Então, Acestes censura vivamente Entelo que se encontra sentado perto dele em um verde leito de relva: “Entelo, em vão terás sido outrora o mais valoroso dos heróis, e resignar-te-ás que um tão grande prêmio seja ganho sem luta? Onde está, pois, aquele deus, o mestre que conosco exaltavas em vão, Èrix? Que é dessa fama que se estendia por toda a Sicília e destes despojos que pendem de teu teto?” (idem, p. 85)
Contudo, sempre prevalece a dignidade do herói e mesmo a repreensão nunca é feita com ofensa. Isso aponta para uma particularidade da Eneida e especialmente de seu herói, Enéias: a uirtus. Não se sobrepõe nas atitudes dos heróis a busca pela areté guerreira, ou seja, a glória guerreira acima de tudo e de todos, conquistada de forma individual, como acontecia em Homero, mas a base heróica aqui é a uirtus, que busca a glória que servirá para o bem-estar coletivo. O herói é membro de uma comunidade que deve ser honrada e preservada. Por isso, Enéias, quando vê que os ânimos se exaltam, interrompe as disputas e conclama ao bonus animus e à pietas:
Então, o patriarca Enéias não permitiu que a ira fosse mais longe e que Entelo entregasse o coração a um furor perverso, mas pôs fim ao combate e, tendo salvo o exausto Dares, consolou-o com estas palavras: “Desventurado! Que acesso de loucura apoderou-se de teu espírito? Não percebes que as forças são outras e a vontade dos deuses mudou? Cede a um deus.” (idem, p. 86)
Essa personificação, em Enéias, de dois grandes valores morais romanos - a uirtus e a pietas - fará com que ele consiga, apesar de todos os percalços, realizar seu fatum, mesmo que tenha que abdicar de coisas que realmente fariam felizes os companheiros cansados de uma extenuante viagem, como as mulheres que, incitadas por Juno, interrompem os jogos, incendiando os navios para que Enéias não possa mais partir e funde ali uma nova cidade.
E as matronas, a princípio hesitantes, contemplavam as naves com olhar malévolo, partilhadas entre o mísero amor à terra onde se encontram e o reino aonde as chamam os fados, quando a deusa subiu ao céu desdobrando as asas e deixou em fuga entre as nuvens um imenso arco. Então, estupefatas com esse prodígio e tomadas de furor, as mulheres gritam ao mesmo tempo e apoderam-se dos fogos acendidos nos santuários das casas vizinhas: algumas despojam os altares e atiram as folhas, os ramos e as tochas: o fogo atiçado alastra-se pelos bancos dos remadores, pelos remos e pelas pintadas popas de abeto. (idem, p. 89)
Enéias, mostra toda sua fragilidade de ser humano, invocando o pai dos deuses e questionando seu fatum:
Júpiter onipotente, se não detestas até o último troiano, se tua velha piedade ainda olha as provações humanas, livra, agora, a frota das chamas, ó Pai, e livra da destruição os parcos recursos dos treucos! Ou, então, para completar, lança sobre mim teu raio, se o mereço, e esmaga-me com a tua destra. (idem, p. 90)
O herói é ajudado por Júpiter que manda uma grande chuva e apaga o fogo dos navios e repleto de humanitas, um forte sentimento de humanidade que o faz sofrer juntamente com aqueles que sofrem, decide deixar quem se cansou da viagem com Acestes.
Contudo, vê revigorar em si o desejo de realizar a vontade dos deuses e sua própria de chegar à Itália, através de uma visita inesperada: a sombra de seu pai Anquises, que responde às homenagens e pede ao filho que o encontre nos Infernos, onde terá então uma visão de quão gloriosa será sua descendência.
(...)leva à Itália jovens de escol, de grande coragem. É um povo valente e de costumes rudes que terás de vencer no Lácio. Antes, porém, procura a morada subterrânea de Plutão e, através do profundo Averno, vem se reunir comigo, meu filho; eis que não me guardam as tristes sombras do nefando Tártaro, mas habito o Eliseu, na amável companhia dos piedosos. Para ali te conduzirá a casta sibila, desde que derrames em quantidade o negro sangue das vítimas. Ficarás conhecendo, então, toda a tua posteridade e os baluartes, as cidades que te caberão. (idem, p. 91)
Mas esse é o livro VI e fica para outra ocasião.
Percebemos, portanto, a importância dos Ludi Funebres em Roma, representada pelos jogos em honra de Anquises, que faziam lembrar aos contemporâneos de Virgílio outros jogos, muito mais próximos e reais: os Ludi Funebres que Augusto vitorioso ofereceu à memória de César.
BIBLIOGRAFIA
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia e da religião romana. Petrópolis: Vozes, 1993.
------. Teatro grego: origem e evolução. Rio de Janeiro: Tarifa Aduaneira do Brasil, 1980.
GRIMAL, Pierre. Virgílio ou o segundo nascimento de Roma. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
HOMERO. A Ilíada. Trad. Fernando C. de Araújo Gomes. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [s/d.].
------. A Odisséia. Trad. Fernando C. de Araújo Gomes. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [s/d.].
PARATORE, Ettore. História da literatura latina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1983.
VIRGÍLIO. Eneida. Trad. David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Ediouro, [s/d.].