A
NOÇÃO
DE LETRAMENTO
COMO
HORIZONTE
POLÍTICO
PARA
O
TRABALHO
ALFABETIZADOR
QUESTÕES
PARA
A
PRÁTICA
E
PARA
A
PESQUISA
Cecília Goulart (PUC-Rio e UFF)
Apresentação
do
estudo
O
estudo tem
como
objetivo
discutir a
relevância da
noção de letramento
para a
prática
pedagógica de alfabetização e
para a
pesquisa da
área, tomando
como
base as
categorias de
polifonia,
linguagem
social e
gêneros do
discurso da
teoria da
enunciação de Bakhtin.
O
processo de alfabetização é concebido
como a aprendizagem da
escrita inserida no
mundo
social da
escrita, o
mundo
letrado. O
ponto de
partida pressuposto é a
ideologia do
cotidiano, neste
caso o
conhecimento de
mundo das
crianças,
especialmente
aquele relacionado a
práticas
ainda
que sutis de
escrita, e
seus
desejos e
necessidades
em
relação a esta
prática cultural, dando concretude aos
sistemas de
referências constituídos.
Estes
sistemas caracterizariam
modos
diferentes de
ser
letrado.
No
sentido do
acima
exposto, discute-se
como a
sala de
aula,
entendida
como
um
espaço discursivo, pode
ser
um
espaço
em
que estejam
disponíveis e circulem
diferentes
linguagens
sociais,
por
meio de variados
gêneros do
discurso, constituindo-se
como
um lócus polifônico.
Novas textualidades,
novas
formas de
conhecer o
mundo e
novos
conhecimentos, estas
são as
relevantes
introduções
que o
mundo da
escrita possibilita às
pessoas. Os
modos
como os
textos se organizam
espacialmente, discursivamente, sintaticamente,
lexicalmente, argumentativamente,
entre outras possibilidades, expressam
modos de
apresentar e de
dividir o
conhecimento das
diferentes
áreas, ordenando-o e, de uma
certa
forma, codificando-o.
A
noção de
polifonia é
entendida na
perspectiva
dialética,
tanto do
que se repete
nos
discursos e
cria,
em
diferentes
grupamentos
sociais, e de
modo
relativamente
estável,
significações e
gêneros de
discurso,
quanto do
que se
diferencia
nos
discursos e
permite
pensar o
signo
ideologicamente
aberto
para
diferentes
interpretações.
Como essa
noção tem sido
relacionada às
vozes dos
sujeitos,
podemos
pensar
tanto
em
vozes
que se
aproximam, consonantes,
quanto
em
vozes
que se
afastam, dissonantes.
A
noção de
polifonia é
vista
como
básica
para a
compreensão da
noção de
letramento no
sentido de
que o
letramento está relacionado ao
conjunto de
práticas
sociais,
orais e
escritas, e a
instituições,
atravessados
pelo
poder
que a
língua
escrita possui
na
sociedade e aos
conteúdos a
que,
histórica e
culturalmente, essa
modalidade de
linguagem está
associada (ver
Gnerre, 1985). Estaria,
conseqüentemente,
relacionado de
modo
forte à
formação dos
diferentes
campos de
conhecimento e
das
diferentes
configurações
discursivas.
Assim, vivendo
em
sociedades
letradas,
tanto os
sujeitos
escolarizados,
quanto os
não
escolarizados
são
afetados de
alguma
forma
pelo
fenômeno do letramento.
Contextualizando a
relação
entre
alfabetização e letramento
O
conceito de
alfabetização vem-se modificando
através dos
tempos.
Podemos
relacionar
tais
modificações a
determinantes
político-sociais
que
historicamente trouxeram mudanças
para a
própria
organização
discursiva da
linguagem
escrita,
associadas a
novas
demandas
culturais
para esta
modalidade de
linguagem (ver
Morrison, 1993).
O
papel
que a
escrita
assumiu,
por
sua
vez, nas
sociedades
chamadas
letradas
forma o
que
Rama (1985)
denominou de
cinturão de
poder,
já
que se
caracteriza
pelo
acesso de
um
grupo
social
privilegiado aos
conhecimentos
de
ordem
jurídica,
científica e
literária,
entre
outros, e
que
são produzidos
na
forma
escrita, o
que mantém
afastada das
decisões
políticas
parte
expressiva da
população.
Desse
modo
não se
escamoteia o
caráter
excludente das
sociedades
capitalistas.
Estes
determinantes,
brevemente
aludidos
acima,
tensionam o
conceito de
alfabetização e a
prática alfabetizadora,
condicionando-os de
diversos
modos.
Por
conta de
fatores
relacionados
àqueles
determinantes,
a
luta
contra o
analfabetismo no Brasil,
apesar de
ser uma
luta
antiga,
mostra
resultados
tímidos, se
considerarmos a
realidade dos
países
desenvolvidos.
No
contexto desta
reflexão está
a
questão do alfabetismo
funcional
que tem sido
largamente
apresentada
em
pesquisas e
em
testes
nacionais e
internacionais,
como o
PISA, SAEB,
INAF.
Isto
quer
dizer
que
além dos
cerca de 16
milhões de
analfabetos,
temos uma
parcela
significativa
da
população
que,
embora
considerada alfabetizada
pela
escola,
não
lê e
não escreve
além do
próprio
nome, de
pequenos
bilhetes e de
outras
mensagens
simples do
cotidiano. Estas
pessoas têm
acesso à
escrita,
mas
não participam
do
mundo da
escrita de uma
forma
plena; estão
fora do
cinturão de
poder,
para
usar a
expressão de
Rama.
A
entrada da
noção de
letramento no
contexto dos
estudos e da
discussão
sobre
alfabetização tem-se mostrado
relevante,
então,
para
melhor
esclarecer a
diferença
posta
acima
entre
acesso à
escrita e
acesso ao
mundo da
escrita,
principalmente
em
países
como o
nosso,
com
alto
índice de
analfabetismo,
como diz
Soares (2003).
O
processo de
ensino-aprendizagem da
língua
escrita tem
sido marcado
por uma
preocupação
grande
com o
que vou
chamar de micro-aspectos
da
linguagem
escrita,
isto é,
com a
relação
fonema-grafema,
com o
desenho das
letras,
com o
tipo de
letra a
ser utilizado,
contextualizados
por uma
visão
estrutural da
língua
em
que se
destacam
exercícios
para
separação de
sílabas,
para
substituição
de
letras e
sílabas na
formação de
novas
palavras e,
mesmo,
frases,
entre
outros
exercícios,
voltados
para o
treino
ortográfico e
para
estudos
gramaticais de
cunho
normativista,
como
número e
gênero de
substantivos;
grau de
adjetivos; o
uso de
formas
verbais, no
singular e no
plural, no
presente,
pretérito e
futuro. Os
micro-aspectos de
um
modo
geral
também
são
contextualizados
pela
crença de
que a
escrita é a
fala
por
escrito, o
que pode
acarretar uma
série de
equívocos
metodológicos.
A
língua desse
modo é
trabalhada de uma
forma
fragmentária e
descolada de
seus
usos e
funções
sociais. De
um
modo
geral, o
estudo de
aspectos
discursivos da
linguagem
escrita têm
sido deixados
para uma
fase
escolar
posterior, acreditando-se
que
primeiramente
a
criança deve
aprender a
escrita
para,
em
seguida,
aprender a
fazer
uso da
linguagem
escrita,
ou
entrar no
mundo da
escrita. O
uso da
língua fica,
então,
subordinado à
análise da
língua. Esta
questão vem sendo
bastante
discutida,
principalmente
a
partir de 1980,
quando os
estudos
lingüísticos,
psicolingüísticos, sociolingüísticos e do
discurso
começaram a
dialogar
de
modo
mais
efetivo
com a
área de
Educação.
Desde
então,
também, vem-se
debatendo
novas
formas de
conceber a alfabetização
e, ao
mesmo
tempo,
novos
princípios e
diretrizes
para a
prática de alfabetização.
Da
forma
como vimos
considerando, a
noção de
letramento
ganha
relevância na
relação
com o
processo de alfabetização,
principalmente,
porque dá
destaque (i)
aos
usos e
funções
sociais da
linguagem
escrita; (ii)
ao atravessamento da
linguagem
escrita na
fala de
quem é
letrado; (iii)
aos
modos
como
instituições,
objetos,
situações,
procedimentos, de
vários
tipos, estão
impregnados das
marcas da
escrita e de
seus
valores
sociais.
Conceber a alfabetização
na
dimensão do
letramento possibilita
aliar os micro-aspectos
comentados
anteriormente
com os
macro-aspectos, relacionados
com o
conhecimento
da
organização
discursiva dos
textos; de
instituições,
atividades e
situações
sociais
que
são marcadas
pela
linguagem
escrita
em
diferentes
esferas
sociais de
conhecimento;
de
gêneros
discursivos e de
suas
particularidades
e
usos,
entre
outros
aspectos. A
aliança
entre os
micro-aspectos e os macro-aspectos do
processo de aprendizagem
da
linguagem
escrita vem
recentemente
merecendo a
atenção de
pesquisadores
e
professores,
já
que se observa
uma
tendência
para
ou se
privilegiarem uns,
ou
outros, e de
uma
forma e de
outra se
deixam
conhecimentos
importantes
para aquela aprendizagem
de
lado.
Segundo
Soares (2003),
os
processos da
alfabetização e de letramento,
embora
processos
distintos,
são
interdependentes
e
indissociáveis.
Aprofundando a
compreensão
do
problema:
polifonia,
linguagens
sociais
e
gêneros
do
discurso
Os
estudos
que venho
realizando
desde 1992 (Pacheco,
1992; 1994; 1995; 1997; Goulart,
2001; 2003) vêm deixando à
mostra
caminhos
que as
crianças
percorrem
para se tornarem
alfabetizadas,
bem
como
conhecimentos
que estão
envolvidos nestes
processos.
Vêm, do
mesmo
modo,
contribuindo
para a
reflexão
sobre
novas
possibilidades de
ação
pedagógica
com a
língua
escrita, na
perspectiva de
se repensarem
metodologias
de
trabalho
que favoreçam
a
formação de
sujeitos
letrados. A
formação
destes
sujeitos
estaria intimamente relacionada à
construção da autoria e da
cidadania, na
medida
em
que associamos
estas
condições à
condição
letrada,
isto é, à
inclusão e participação
efetivas dos
sujeitos no
tecido
social
que se
constitui
com
apropriação da
chamada
variedade
padrão da
língua e da
linguagem
escrita. Nesta
perspectiva,
sugerimos a
noção de
letramento
como
horizonte
ético-político
para a
ação
pedagógica
nos
espaços
educativos.
A
teoria da
enunciação de
Bakhtin,
entre
outros
autores, tem
sido uma
fonte
importante
para o aprofundamento da
compreensão
das especificidades do
processo de alfabetização
na
dimensão do
letramento,
ou seja,
mais
especificamente
para o
entendimento
dos macro-aspectos deste
processo. E
como as
formulações
teóricas de Bakhtin têm contribuído
para
adensar
tal
compreensão?
Partimos do
princípio de
que a
constituição do
sujeito, da
linguagem e do
conhecimento está irremediavelmente interligada,
entendendo
que
constituir
linguagem é
constituir
sistemas de
referências do
mundo (Franchi,
1992).
Esses
sistemas de
referência
são
interpretações
possíveis
que
grupos
humanos organizam do
mundo
ou de
aspectos do
mundo e podem/devem ir-se tornando
cada
vez
mais abrangentes. Ao
mesmo
tempo, existem
interpretações
diferentes
para
complexos de
saberes
semelhantes,
sem
que
isso signifique
que uma
interpretação,
ou
um
sistema de
referências, possa
ser a
correta. Pode-se
falar
entretanto de
interpretações
mais e
menos valorizadas
socialmente.
Os
modos
como as
pessoas expressam
suas
vivências,
crenças,
sentimentos e
desejos
são
suas
formas subjetivas de
apresentar
seus
conhecimentos e
suas
relações
com o
mundo.
São,
portanto, as
interpretações
possíveis no/do
interior de
seus
universos referenciais antropoculturalmente
formados. A
linguagem tem
um
papel
fundador neste
processo,
não
só do
ponto de
vista da
construção da singularidade dos
sujeitos,
mas
também da
construção das
suas
marcas de pertencimento a
determinado(s)
grupo(s).
O
destaque
dado
por Bakhtin ao
estudo da
linguagem na
perspectiva da
enunciação ressalta a
natureza
social da
situação de
produção. É
pela
linguagem, na
linguagem e
com a
linguagem
que os
feixes de
sentidos se constroem, dialogam e disputam
espaço, instaurando-se
como
signos ideológicos. O
Outro,
como
parte constitutiva da
situação
social de
enunciação, permite
que o
sujeito
também seja
parte constitutiva dessa
organização, constituindo-se. O
diálogo,
então, é
condição
fundamental
para se
conceber a
linguagem. A verdadeira
substância da
língua é constituída
pelo
fenômeno
social da
interação
verbal, realizada
através da
enunciação
ou das
enunciações (cf.
Bakhtin, 1988: 123). No
movimento dos
sujeitos nas
infindáveis
situações de
enunciação, os
signos,
pelo
seu
caráter
vivo, polissêmico e ideologicamente
opaco, têm
sua significação
determinada
pelos
contextos
em
que
são produzidos.
As significações
que os
signos comportam estão
ligadas às
experiências da
vida
cotidiana e à
tradição de
formação de
áreas de
conhecimento,
como a
religião, a
ciência, a
filosofia, a
arte, conformando o
que Bakhtin chamou de
dialética
interna do
signo.
Tanto no
cotidiano,
quanto na
tradição de
formação de
áreas de
conhecimento, o
autor analisa
que foram se constituindo
linguagens
sociais
características,
ou seja, foram-se formando
modos de
dizer a
realidade,
ou
melhor, foram-se formando determinadas
textualidades
que organizam os
discursos,
como o
religioso, o
literário, o
científico, o filosófico,
entre
muitos
outros.
Esta
reflexão remete à
noção de
gênero do
discurso
também
desenvolvida
por Bakhtin (1992).
Para o
autor todas as
esferas da
atividade
humana estão relacionadas à
utilização da
língua. Esta
utilização se organiza
em
forma de
enunciados
concretos e
únicos,
orais e
escritos. O
enunciado reflete as
condições específicas e as
finalidades de
cada uma das
esferas
por
meio de
três
aspectos: o
conteúdo
temático; o
estilo
verbal, ligado à
seleção operada
nos
recursos da
língua; e,
sobretudo
pela
construção composicional.
Este
último
aspecto estaria
mais relacionado à
formação de
gêneros do
discurso.
Cada
esfera da
atividade
humana elabora
tipos
relativamente
estáveis de
enunciados
que se constituem
em
gêneros do
discurso.
Esses
gêneros
são de uma
riqueza e
variedade infinitas e marcados
pela heterogeneidade. Vinculados às
esferas da
atividade
humana, vão-se diferenciando, e
também se ampliando, no
caso das
esferas se desenvolverem e ficarem
mais complexas. Os
gêneros organizam os
conhecimentos de determinadas
maneiras, associadas às
intenções e
propósitos dos
locutores.
O
autor atribui
grande
relevância
teórica à
distinção dos
tipos de
gêneros
primário e
secundário. Os
gêneros do
discurso
secundário
aparecem
em
circunstâncias
de
comunicação
cultural
mais complexas
e
relativamente
mais
evoluídas,
principalmente
associados à
escrita,
diferentemente
dos
gêneros
primários.
Com Bakhtin aprendemos
que “o
centro
organizador de
toda
enunciação, de
toda
expressão,
não é
interior,
mas
exterior: está situado no
meio
social
que envolve o
indivíduo” (p. 121). A
noção de
polifonia,
que entrelaçamos
com a de letramento,
então, se organiza a
partir desse
centro
organizador, desse
exterior,
que é
povoado de muitas
visões de
mundo, muitas
palavras, muitas
histórias, de várias
origens,
que dialogicamente se fundam no
social.
Um
social
não
homogêneo,
não
transparente:
um
social ideologicamente
opaco, constituído de
signos.
A
noção de
polifonia é
aqui
entendida
por
meio do
fenômeno
social da
interação
verbal
como
realidade
fundamental constitutiva da
linguagem e da
consciência dos
sujeitos. No
movimento de
interação
social os
sujeitos constituem os
seus
discursos
através das
palavras alheias de
outros
sujeitos (e
não da
língua,
isto é,
já ideologizadas),
que ganham significação no
seu
discurso
interior e, ao
mesmo
tempo, geram as contrapalavras, as
réplicas ao
dizer do
outro,
que
por
sua
vez
vão
mobilizar o
discurso desse
outro, e
assim
por
diante. É
então num emaranhado discursivo
que se formam o
discurso
social e os
discursos
individuais.
Como
nos acrescenta
Bakhtin,
a
experiência
verbal
individual do
homem
toma
forma e evolui
sob o
efeito da
interação
contínua e
permanente
com os
enunciados
individuais do
outro. (...)
Nossa
fala,
isto é,
nossos
enunciados
(...) estão
repletos de
palavras dos
outros,
caracterizadas,
em
graus
variáveis,
pela
alteridade
ou
pela
assimilação,
caracterizadas,
também
em
graus
variáveis,
por
um
emprego
consciente e
decalcado. As
palavras dos
outros
introduzem
sua
própria
expressividade,
seu
tom
valorativo,
que
assimilamos, reestruturamos, modificamos.” (Bakhtin,
1992: 313-314)
Segundo o
autor, é nesse
movimento
também
que
certos
sentidos
vão se tornando
mais
estáveis nas diversas
situações
sociais, marcadas historicamente, e
vão se estabilizando
gêneros do
discurso,
tanto ligados às
situações da
vida
cotidiana,
quanto às
diferentes
esferas
simples e complexas da
vida
social.
Ainda de
acordo
com o
autor, os
gêneros do
discurso
primários e
secundários se inter-relacionam e, de uma
forma
imediata,
sensível e
ágil, refletem a
menor
mudança na
vida
social.
Quando Bakhtin
afirma
que “a
variedade dos
gêneros do
discurso pode
revelar a
variedade dos
estratos e dos
aspectos da
personalidade
individual”
(1992, p.283), estabelecemos uma
ponte da
noção de
polifonia
com a
noção de
letramento
que é
central no
nosso
estudo.
Entendemos
que a
variedade dos
gêneros do
discurso
(vinculados a
linguagens
sociais)
utilizada
por uma
pessoa pode
revelar a
sua
variedade de
conhecimentos
(conhecimentos
de
vários
estratos
sociais) e
aspectos de
sua
personalidade,
em duas
medidas: (i)
na
medida
em
que os
conhecimentos
produzidos pelas
diferentes
classes
sociais
circulam na
sociedade de
um
modo
geral; e (ii)
na
medida
em
que
classes
sociais
diferentes
atribuem
valores
diferentes aos
signos
ideologicamente constituídos e vivenciam as
situações
sociais de
modos
diferentes. O
fenômeno do letramento
está, na
perspectiva
que adotamos,
associado a
diferentes
linguagens
sociais e
gêneros
discursivos caracterizando as
classes
sociais de
modo
diferente.
Uma
questão interessante
aparece ao
nos colocarmos
na
perspectiva da
noção de
letramento e dos
aspectos
aí envolvidos.
Diz
respeito ao
modo
como o
autor encara o
processo de
formação
desses
gêneros.
Segundo
ele, os
gêneros
secundários
absorvem e transmutam os
gêneros
primários
ligados à
comunicação
verbal
espontânea.
Nessa transformação, os
gêneros
primários
adquirem uma
característica
particular:
perdem
sua
relação
imediata
com a
realidade existente e
com a
realidade dos
enunciados
alheios.
Refletindo
sobre o
espaço da
sala de
aula, podemos
pensá-lo
como
um
espaço
discursivo e polifônico. Discursivo
porque se
caracteriza
pela
produção de
linguagem
verbal
pelos
diferentes
sujeitos:
professores,
alunos,
autores de
livros e
materiais
escritos,
em
geral; e
polifônico, na
mesma
direção,
já
que muitas
vozes povoam
este
espaço de
várias
maneiras.
Neste
sentido, o
letramento
visto
como o
conjunto de
práticas
sociais,
orais e
escritas, está
relacionado de
modo
forte à
formação dos
diferentes
campos de
conhecimento e
das
linguagens
sociais
associadas e dos
diferentes
gêneros do
discurso. A
condição
letrada é
pressuposta intimamente relacionada
tanto aos
discursos
que se
elaboram nas
diferentes
instituições e
práticas
sociais
orais e
escritas,
quanto aos
muitos
objetos e
formas de
expressão
sociais,
entre
elas a
expressão
em
língua
escrita.
Trabalhamos
com a
hipótese de
que há
diferentes
modos de
ser
letrado. As
diferenças estariam relacionadas aos
cotidianos dos
alunos, envolvendo
sujeitos,
objetos,
atividades, e às
linguagens
sociais
que permeiam
estes
cotidianos
por
meio de
diversos
gêneros de
discurso.
Para
finalizar,
algumas
considerações
e
dados
anedóticos
relacionados à
problemática
tratada
Na
perspectiva de
não
dissociar alfabetização de letramento,
ou seja, os micro-aspectos dos macro-aspectos,
nos preocupamos
em
não “esconder e
camuflar a
história das
pessoas, do
seu
trabalho e de
sua
produção
lingüística”,
como defende Moyses (1985, p. 87),
assim
como,
por
meio da
própria
escrita dessa
história contada, preocupamo-nos
em
gerar
espaços
para
tornar a
análise da
língua
possível, gerando ao
mesmo
tempo
em
cada
criança a
necessidade e o
desejo de
assumir a
própria
escrita.
Isto implica
compreender o
funcionamento do
sistema alfabético-ortográfico de
dentro do
funcionamento discursivo da
linguagem,
isto é,
junto
com os
modos
como os
textos se organizam
espacialmente, graficamente, morfossintaticamente,
lexicalmente, argumentativamente,
entre outras possibilidades, expressando
modos de
apresentar e de
organizar o
conhecimento das
diferentes
áreas.
Apresentamos, a
título de
ilustração,
três
textos
escritos,
em
sala de
aula,
por uma
menina de
seis
anos, Pâmela,
em
processo de alfabetização. O
primeiro
texto foi produzido no
início do
ano
letivo do
primeiro
ano do
ensino
fundamental,
depois
que a professora leu uma
história
para as
crianças, conversou
sobre a
mesma e solicitou
que
elas escrevessem
sobre a
parte da
história
que
mais tivessem gostado.
ACACIACRIPELPRPALLA. (A
sereia
estava na
pedra...)
EFLELRIPER. (e se assustou
com
o
polvo.)
LAELA (Fim.)
Pâmela
nos diz
com a
escrita e
leitura (entre
parênteses) de
seu
texto
que
já sabe
que
são necessárias
letras
para
escrever,
que se escreve da
esquerda
para a
direita e de
cima
para
baixo, e
também
que produziu
um
texto narrativo
significativo, de
acordo
com a
proposta da professora.
O
segundo
texto é a
escrita de uma
receita de
pipoca. A professora havia conversado
com a
turma
sobre
pratos e
receitas
culinárias e
sobre a
organização deste
gênero do
discurso. Trabalhou no
quadro de
giz
com a
receita de
pipoca, distinguindo a
pipoca
doce e a
pipoca
salgada.
Em
seguida, solicitou
que os
alunos escrevessem a
receita, deixando
claro o
tipo de
receita
que estavam elaborando.
PIOPCA SALHDA
|
MILO DE
POR
(milho
de
pipoca) |
MIHO (milho) |
O
SAL.
DOT O OLOHO (Bote
o
óleo) |
SAL |
E DE
POR
(e
depois) |
MANTAHA (manteiga) |
TAMPA
PARA
(tampe
para) |
ASUH (açúcar) |
NA
NÃO
POR
LA (não
pular) |
|
MANTAHA.
ASADA.
(manteiga
assada) |
Como podemos
observar, a
escrita do
texto de Pâmela apresenta as duas
partes,
ingredientes e
modo de
fazer,
embora
com
alguns
problemas,
mas
com uma textualidade
própria do
discurso de
receitas
culinárias,
como os
verbos no
imperativo,
por
exemplo.
Já o
terceiro
texto foi
escrito, ao
final do
primeiro
ano
letivo,
quando a professora estava trabalhando
sobre
características das
aves. As
crianças haviam tido
muito
acesso a
materiais
escritos
sobre
aves:
revistas,
álbuns,
enciclopédia e
jornais. Ouviram muitas
leituras
sobre
aves
também.
AVES
AS
AVES
SÃO
ORISINAIS AU RÉPTEIS HÁ
MILHÕES
DE
ANOS
ATRÁS.
ELA
TEM O
SANGUE
QUENTE
E O
CORPO
COBERTO
DE
PENAS.
ESSE
ANIMAIS
TEM O
BICO
NO LONGAR DE
DENTES
ELA
TEM DUAS
PERNA
SEUS
OSSO
SÃO
OCOS
PARA
FACILITAR O
VÔO
ESXISTEM APROXIMADAMENTE 8.600 ESPECE DE
AVES
NO
MUNDO
AS
AVES
NASCEM DE
OVOS
ELAS
TEM
ASAS.
Neste
terceiro
texto, a
menina apresenta
um
gênero de
discurso
em
que
ela expõe o
que aprendeu
sobre as
aves,
um relato. Destacam-se o
uso dos
verbos no
presente e
alguns
recursos
expressivos
que devem
estar sendo utilizados
como
palavras alheias,
como na
primeira
linha “As
aves
são orisinais au répteis há
milhoes de
anos
atrás”. Algumas
palavras,
por solicitação de
alunos, foram
escritas no
quadro de
giz
pela professora.
Ilustra-se
assim a possibilidade
que as
crianças têm de se alfabetizarem,
sem
dissociar o
processo de alfabetização,
aqui relacionados aos micro-aspectos da
linguagem
escrita, do
processo de letramento, relacionado aos macro-aspectos do
discurso da
linguagem
escrita. No
processo, as
crianças vão-se apropriando de
novas textualidades,
novas
linguagens
sociais, ampliando
seus
sistemas de
referências do
mundo e do
próprio
objeto
em
questão, a
linguagem
escrita.
Este é
um
terreno
que necessita de muitas
pesquisas
para
que se tornem
mais
claros os
fatores
que intervêm no
processo de
apropriação desta
modalidade de
linguagem
verbal.
Assim, pressupomos
que seja no
encontro das
linguagens
sociais e dos
gêneros do
discurso, construídos no
cotidiano dos
alunos, e
que
são trazidos
para a
escola,
com as
linguagens
sociais e
gêneros
que a
escola tem a
oferecer aos
alunos,
que se
dê
um
processo
íntegro de ensino-aprendizagem da
linguagem
escrita. Os micro-aspectos e os macro-aspectos do
objeto
em
questão estão intimamente relacionados e
assim devem
ser trabalhados, analisados, ensinados e aprendidos.
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Alfabetizar –
Partilhar
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Especial de
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