A NECESSIDADE DE USAR TRANSCRIÇÕES FONÉTICAS NO ESTUDO DA VARIEDADE POPULAR DO LATIM
Nestor Dockhorn (FERP / UNIG)
A presente exposição apresenta as seguintes partes: a grafia latina; a necessidade de um sistema de transcrição fonética; modelo de um sistema de transcrição; exemplos de transcrição.
A grafia latina
Os romanos inspiraram-se num alfabeto etrusco por volta do século VII, para organizar seu alfabeto. Fizeram várias reformas ortográficas. Os nomes das 23 letras do período clássico são: a, be, ce [ke], de, e, ef, ge[ge], há, i, ka, el, em, em, o, pe, qu, er, es, te, u ,ix, upsilon( i graeca), zeta.
A letra K quase não era usada. As letras C e G sempre representam sons velares. O H era aspirado. O I representava a vogal [i] e a semivogal [j]. A letra V representava a vogal [u] e a semivogal [w].
Os romanos usaram inicialmente letras maiúsculas, chamadas capitais. Depois empregaram uma escrita chamada cursiva, que utilizava minúsculas.
Quanto à pronúncia dessas letras no latim, temos muitas informações dadas por gramáticos latinos da época. Ernesto Faria, um dos grandes latinistas do Brasil, em sua obra Fonética Histórica do Latim, menciona Quintiliano, Mário Vitorino, Terenciano, Marciano Capela, Lucílio, Sérgio, Consêncio, Festo, Nigídio, Prisciano e Varrão.
A pronúncia correta do latim sofreu uma influência negativa pela pronúncia das línguas românicas e também pela determinação do Vaticano de que nos seminários fosse utilizada a pronúncia romana do latim. Essa pronúncia romana não tinha nada de “romana”, sendo apenas a pronúncia italiana do latim. É de lamentar que professores universitários ainda usem tal pronúncia que não propicia um estudo adequado da Filologia Românica.
Necessidade de transcrição fonética
Os sistemas de grafia usados e ensinados nas escolas oferecem muitos problemas. O grande problema é que os símbolos gráficos, em geral, são polivalentes: o mesmo símbolo é empregado para representar fones diferentes e o mesmo fone é representado por símbolos diferentes. Isso ocorre na própria grafia utilizada na Variante Culta do Latim.
A grafia da VC, apesar de se aproximar muito de uma transcrição fonética, ainda oferece os seguintes problemas:
a) Não distingue a altura das vogais médias
b) Não distingue as vogais longas e breves por natureza.
c) Não indica a sílaba tônica.
d) Para muitos estudiosos, não está clara a pronúncia de determinadas consoantes, tais como C, G, X, S.
Por essa razão, é de suma importância que os estudiosos de latim trabalhem com transcrições fonéticas que possam apresentar representações fonéticas univalentes.
Os sistemas de simbolização fonética são variados. Um sistema muito importante é o da IPA (International Phonetic Association). É esse alfabeto fonético que seguimos em nossos estudos, com algumas adaptações.
Princípios práticos de transcrição
Apresentamos, a seguir, certos casos especiais e quadros com símbolos fonéticos.
Apontamos aqui alguns casos especiais:
a) A vogal / a / é representada de duas maneiras: quando tônica, é representada pelo símbolo [a];quando átona, é representada pelo símbolo [
b) A semivogal / w / é representada pelo símbolo [w].
c) A semivogal / j / é representada pelo símbolo [j].
d) O agma (embrião de nasalidade, representado na grafia por -g- é representado por
[+]).e) As vogais longas por natureza são representadas por [:].
f) As vogais breves por natureza não são representadas.
g) Todo / e / longo por natureza é representado por [e:].
h) Todo / e / breve por natureza é representado por
[E].i) Todo / o / longo por natureza é representado por [o:].
j) Todo / o / breve por natureza é representado por
[O].k) Todo / i / átono é representado por
[I].l) Todo / u / átono é representado por [
U].Na hora de fazer a transcrição, o estudioso deve prestar atenção aos seguintes pontos:
1 - A transcrição fonética deve sempre vir precedida de colchete que se abre ([) e, no final da transcrição, deve ser posto o colchete que se fecha (]).
2 - Não podem ser usadas maiúsculas nem pontuação alguma, como na grafia comum.
3 - A sílaba tônica deve vir precedida de acento ou apóstrofo.
4 - Há símbolos que sobem acima da linha, e outros que descem.
5 - Alguns símbolos têm uma curvinha na base da perna, outros têm uma barrinha.
6 - Os símbolos devem ser feitos com exatidão, não ao capricho de qualquer um.
7 - O estudioso deve se esforçar por fazer os símbolos exatos e bonitos.
8 - O estudioso deverá ter paciência para verificar se as vogais são longas ou breves por natureza. Deve-se ter atenção, porque os dicionários costumam marcar a quantidade (duração) das vogais por posição. É importante, porém, observar a natureza da vogal, uma vez que sua evolução fonológica depende disso. Um exemplo simples seria a palavra porcus, no seu acusativo porcum. Se fôssemos olhar os dicionários, faríamos a transcrição
[´po:rkUm]. Essa forma não evoluiria para o espanhol [´pwerko]. Para chegarmos a essa forma, devemos partir da variedade popular do latim [´pOrkU].Abaixo colocamos alguns quadros com os símbolos usados e seus exemplos.
QUADRO I - VOGAIS E DITONGOS
FONE | SÍMBOLO | EXEMPLO |
a breve, tônico | [a] | [´kane:s] |
a breve, átono | [a] | [´rOsa] |
a longo, tônico | [a:] | [´pa:ne:s] |
a longo, átono | [a:] | [´rOsa:] - ablativo |
e breve, tônico | [E] | [´pEdEm] |
e breve, átono | [E] | [´ki:wEm] |
e longo, tônico | [e:] | [´re:tE] |
e longo, átono | [e:] | [pa:re:´ba:mUs] |
i breve, tônico | [i] | [´wide:s] |
i breve, átono | [I] | [´re:tIbUs] |
i longo, to nico | [i:] | [´ki:wIs] |
i longo, átono | [I:] | [´a:krI:] |
o breve, tônico | [O] | [´rOsa] |
o breve, átono | [O] | [´dOlOr] |
o longo, tônico | [o:] | [a´mo:rEm] |
o longo, átono | [o:] | [prajto:rI´a:nUs] |
u breve, tônico | [u] | [´lupUs] |
u breve, átono | [U] | [´lupUs] |
u longo, tônico | [u:] | [´ku:lUs] |
u longo, átono | [U:] | [rU:´mo:rEm] |
i semivogal | [j] | [´jam] |
u semivogal | [w] | [´wi:nUm] |
ai, ditongo tônico | [aj] | [´kajlUm] |
ai, ditongo átono | [aj] | [´pOrtaj] |
oi, ditongo tônico oi, ditongo átono | [Oj] [Oj] | [´fOjda] [pOj´na:rUm] |
QUADRO II - CONSOANTES
CONSOANTE | SÍMBOLO | EXEMPLO |
b | [b] | [´bo:s] |
p | l[p] | [´parIo:] |
f | [f] | [´f7kIo:] |
g(antes de m / n) | [+] | [´di+nUs] |
d | [d] | [´di:ko:] |
t | [t] | [´t7bUla] |
s | [s] | [´s7lIo:] |
g | [g] | [´gEnU] |
c | [k] | [´kirkUs] |
ch | [x] | [´xristUs] |
ph | [ph] | [phIlO´lOgIa] |
th | [th] | [thE´7:trUm] |
x | [ks] | [´7ksIs] |
m | [m] | [´marE] |
n | [n] | [´na:tUs] |
h | [h] | [´habEo:] |
l | [l] / [L] | [´lupUs] / [´saL] |
r | [r] | [´du:ra] |
rr | [rr] | [´kurro:] |
z | [ts] | [´tse:lUs] |
É controvertida a pronúncia do / z / .
Exemplos de transcrição fonética.
Colocamos, a seguir, alguns exemplos de transcrição fonética da Variedade Culta do latim. Depois, também apresentamos exemplos da Variedade Popular.
EXEMPLOS DA VARIEDADE CULTA
a) MILITES ROMANI VENERVNT, VIDERUNT, VICERVNT.
[´
mi:lIte:s ro:´m7:nI: we:´ne:rUnt wI:´de:rUnt wI:´ke:runt]b) MAGISTRA DISCIPVLOS SALVTAT.
[
ma´gistra dIs´kipUlo:s sa´lu:tat ]c) GLORIA IN EXCELSIS DEO ET IN TERRA PAX.
[´
glo:rIa In Eks´kElsI:s ´dEo: Et In ´tErra: ´p7:ks]d) DISCIPVLI SENTENTIAS TRANSCRIBVNT.
[
dIs´kipUlI: sEn´tEntIa:s trans´kri:bUnt]e) VACCAE FOEDAE IN CAMPVM IAM FVGERVNT.
[´
w7kkaj ´fOjdaj In ´k7mpUm ´j7m fU:´ge:runt]f) PAVPER SITIT, DVM DIVES VINVM BIBIT.
[´
p7wpEr ´sitIt ´dum ´di:wEs ´wi:nUm ´bibIt]g) FOEDAE PVELLAE, CVM VACCAS VIDERVNT,
VESTES IECERVNT ET NVDAE FVGERVNT.
[´
fOjdaj pU´Ellaj ´kum ´w7kka:s wI´de:rUnt´wEste: s je:´ke:runt Et ´nu:daj fU:´gerUnt]
EXEMPLOS DA VARIEDADE POPULAR
(partindo da Variedade Culta e passando por duas etapas)
a) RAMI ERANT SICCI; VINVM SITIM NON VINCEBAT.
NVLLA GVTTA PLVVIAE CADEBAT.
VC: [´
r7:mI: ´Erant ´sikkI: ´wi:nUm ´sitIm ´no:n wIn´ke:bat ´nu:lla ´gutta ´pluwIaj ka´de:bat]VP (1ª etapa) [;r7mI ;Eran ;sekkI ;vinU ;setI ;non
vIn;keba ;nulla ;gotta ;plovIE ka;deba]
VP (2ª etapa): [los;r7mos ;Eran ;sekkos lo;vinU ;non
vIn;keba la;sete ;nulla ;gotta de;plovIa ka;deba
]BIBLIOGRAFIA
BOURCIEZ, Édouard. Éléments de linguistique romane. 3e éd. rév. Paris: Klincksieck, 1950.
FARIA, Ernesto. Fonética histórica do latim. 2. ed. rev. aum. Rio de Janeiro: Acadêmica, 1957.
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LABOV, William. Sociolinguistique. Paris: De Minuit, 1976.
LOWE, Robert J. Fonologia: avaliação e intervenção: aplicações na patolo- gia da fala. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
SILVA, Maria Cecília Pérez de Souza e, KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. Lingüística aplicada ao português:morfologia. 3. ed. São Paulo: Cortez, 1986.
SILVA, Thais Cristófaro. Fonética e fonologia do português. São Paulo: Contexto, 1999.
VÄÄNÄNEN, Veikko. Introducción al latin vulgar. Trad. Manuel Carrión. Madrid: Gredos, 1967.