A ORAÇÃO INFINITIVA NO PORTUGUÊS ARCAICO
Raymundo José da Silva (UEMS)
INTRODUÇÃO
Com este trabalho, pretende-se detectar algumas ocorrências e variações da oração infinitiva e mostrar que as dificuldades e indecisões freqüentes em textos modernos não são uma tendência recente, mas um característico dessa forma nominal, visto que tal riqueza de possibilidades já aparecia nos textos mais antigos da língua portuguesa. Para isso, o trabalho contou, basicamente, com o suporte teórico da obra A Formação Histórica da Língua Portuguesa de Francisco da Silveira Bueno, além do respaldo de autoridades como Napoleão Mendes de Almeida e Gladstone Chaves de Melo subsidiados por gramáticas históricas de onde se extraíram exemplos que formaram o corpus. Fenômeno lingüístico de difícil exposição para o docente e de inegável relevância, tanto em virtude de sua recorrência na comunicação quanto pelas implicações que envolvem clareza, estilo e concisão, o uso do infinitivo flexionado e não-flexionado, em alguns pontos, continua merecendo a atenção dos estudiosos e amiúde gerando divergências.
A seguir, faremos um esboço do que Gladstone Chaves de Melo (1981: 117) expõe em sua obra Iniciação à Filologia e à Lingüística que contém teorias relativas à origem do infinitivo pessoal.
Para Adolfo Coelho e Leite de Vasconcelos, as formas flexionadas são uma criação vernácula feita à base do infinitivo impessoal, de modo que em frases como ter saúde é bom, iniciou-se uma idéia que levou o sujeito falante a entender assim: eu ter saúde é bom, ele ter saúde é bom, introduzindo-se, deste modo, uma pessoa para o verbo. A partir daí, por analogia, forjaram-se desinências para as demais pessoas, proporcionando o surgimento de formas como ter-es, ter-mos, ter-des, ter-em. Uma segunda teoria, atualmente bem aceita por muitos estudiosos, vê o infinitivo pessoal como uma continuação histórica do imperfeito do subjuntivo latino, que não teria desaparecido do uso vulgar na Galécia e em Portus Cale. Considera-se como principal defensor dessa tese José Maria Rodrigues, que teve o mérito de convencer até a eminente D. Carolina de Michaelis. Neste ponto surge uma outra controvérsia, uma vez que, de acordo com essa teoria que vem de encontro à opinião de alguns autores, o infinitivo flexionado não é propriamente criação vernácula, mas uma continuidade lingüística do latim vulgar.
A esse respeito, Câmara Júnior (1975: 141) não polemiza e considera a questão da origem em si mesma como secundária. Para ele o que é verdadeiramente relevante é o novo emprego das formas em função de infinitivo.
O emprego do infinitivo pode parecer questão simples, sobretudo quando a análise se limita ao exame de construções corriqueiras e reconhecidamente reprováveis pela gramática, como estas: “Somente agora vamos encontrarmos com eles”; “O fato é que todos mereciam serem castigados.” Entretanto, trata-se de ingênua e falsa impressão, porque quanto mais se adentra o tema, evidencia-se a complexidade que o domina.
Observemos, em seguida, alguns conceitos que julgamos necessário lembrar com respectivos exemplos.
O Infinitivo impessoal ou não-flexionado (também conhecido como infinitivo puro) é a forma nominal que exerce as funções próprias do substantivo.
Exemplos:
Sujeito: Trabalhar faz bem à mente.
Objeto direto: Ouviram o estalar de chicotes.
Objeto indireto: Algumas pessoas não gostam de ler.
Já o infinitivo pessoal (ou flexionado) é o infinitivo empregado com referência a um sujeito.
Exemplo:
Alegram-se por terem visto o pai. (N.M.A)
De acordo com Napoleão Mendes de Almeida (1979: 541), nesse momento é que nasce a dificuldade, porque o infinitivo pessoal “em português ora é flexionado de acordo com a pessoa do sujeito, ora não é flexionado e se confunde com o impessoal”. E o autor aponta exemplos como estes:
“Tinham necessidade de tudo declarar.”
(Eles): sujeito de tinham e de declarar.
“Julgas poder com isso.”
(Tu): sujeito de julgas e de poder.
Verifica-se, aí, que o segundo verbo de cada frase, isto é, o infinitivo pessoal não se flexionou, embora esteja cada um se referindo aos sujeitos (Eles) e (Tu).
Ciente das dificuldades que o estudioso pode enfrentar quando se depara com as variedades de ocorrências e nuanças que caracterizam os exemplos dos autores e as normas da flexão do infinitivo, Almeida, ao abordar o assunto, usa palavras como barafunda, questão escabrosa, árida e árdua.
Obviamente, não é propósito deste trabalho aprofundar-se nas complexas teorias relativas à flexão do infinitivo. Entretanto, julgamos conveniente destacar que, nas primeiras tentativas de elucidar esta intrigante questão do nosso idioma, dois gramáticos se destacaram: Jerônimo Soares Barbosa com sua Gramática Filosófica, e Frederico Diez com Gramática das Línguas Românicas. Assim sendo, segue uma síntese das regras desses autores, contidas na Gramática Metódica da Língua Portuguesa de Napoleão Mendes de Almeida.
A Regra formulada por Soares Barbosa (contém duas partes):
a) primeira parte: o infinitivo com sujeito próprio flexiona-se.
Exemplos:
“Declaramos (nós) estarem (eles) prontos.”
“Ouvi (eu) chamarem-me os amigos” (os amigos)
“Solicitamos a V. Sas. o obséquio de enviarem...” (V. Sas.)
“Referi-me à intenção de partirem.” (eles)
b) segunda parte: o infinitivo com sujeito idêntico não se flexiona.
Exemplos:
“Declaramos (nós) estar (nós) prontos.”
“Declararam (eles) estar (eles) prontos”.
“Eles tinham a certeza de triunfar”. (eles)
Não obstante a grande contribuição de Soares Barbosa, Almeida apresenta alguns exemplos que desobedecem a essas regras, mesmo com sujeitos idênticos:
“Folgarás de veres”. (Camões)
“Que traça dariam para todavia comerem até fartar-se?” (Bernardes)
“Assaz mostraste seres cabal...” (Castilho)
Por sua vez, 33 anos depois de Soares Barbosa, Frederico Diez propõe uma outra regra: “Só se flexiona o infinitivo quando é possível ser substituído por uma forma modal, sendo indiferente que esse infinitivo tenha sujeito próprio ou não”.
Alguns exemplos:
“Alegram-se por terem visto o pai”. (porque viram...), (sujeitos idênticos)
“Acreditando tu não me teres ofendido”. (...que não me ofendeste), (sujeitos idênticos)
“Afirmo terem chegado os navios”. (... que chegaram os navios), (infinitivo com sujeito próprio)
“Os dois dias que me pediste para chorares o teu cativeiro”. (Herculano) (...para que chorasses...), (sujeitos idênticos)
“Que também esses se ergam para pelejarem batalhas tremendas. (para que pelejem), (sujeitos idênticos)
São, como se vê, duas regras que se complementam ou se esclarecem e, ao mesmo tempo, se chocam, uma vez que a segunda pode permitir a flexão do infinitivo, mesmo nos casos com sujeitos idênticos.
Convém lembrar, porém, que nem todos os autores aceitaram a lógica e a validade dessas regras, mesmo com todos os benefícios que elas possam ter trazido. Haja vista a dura crítica que Gladstone Chaves de Melo (1981: 117) faz à teoria de Soares Barbosa e, um pouco mais branda, à de Diez:
Sobre o emprego do infinitivo pessoal formulou no começo do século passado Jerônimo Soares Barbosa umas regras que, apesar de cerebrinas e contraditórias, apesar de nascidas de especulação e não da observação exata dos fatos da língua, pegarem e perturbam até hoje a cabeça de muita gente, porque entraram a ser repetidas pelas gramáticas posteriores. ...Frederico Diez enunciou outras regras, já agora com muito melhor orientação; porém, escaparam ao lingüista germânico certos matizes, e assim deixa a desejar a nova sistematização.
Daí, nota-se que o emprego do infinitivo, apesar das regras formuladas por grandes conhecedores da língua portuguesa, continua gerando novos estudos e algumas controvérsias, inclusive quanto à sua origem. A propósito da importância do tema e da antiguidade do infinitivo pessoal, leiamos o que dizem estes dois autores: a) Ismael de Lima Coutinho (1976: 278) : “Das línguas ou dialetos românicos só o português possui, com o galego e o mirandês, a forma flexionada do infinitivo, que já aparece nos mais antigos escritos. Assim, ele ocorre num documento latino-português do ano 1000”. b) Gladstone Chaves de Melo (1981:116): “...constitui o infinitivo flexionado o mais importante idiomatismo morfológico e sintático da língua portuguesa”.
Em Said Ali (1964: 344, 345), podemos encontrar muitos exemplos, dos quais relacionamos alguns:
Deviam-no trazer todos vocês nas palmas, dar mil graças aos céus, e acabarem de crer. (Castilho, Tart. II) (Só o último verbo flexionou)
Possas tu, descendente maldicto de uma tribu de nobres guerreiros, implorando cruéis forasteiros seres presa de vis Aymorés. (Gonçalves Dias, I-Juca Pirama). (Observe-se que os sujeitos são idênticos).
E aaquelles que alli nom vieron podeis lhes notificar vossa tençon pedindo-lhes conselho e ajuda ... e des y ordenardes per bom espaço como la vades com entençom de morrer ou vencer (Zurara, apud Inéd. Port. 2,482)
Quem te deu, pois, o direito de correres a morte certa? Quem te deu o direito de apagar no sangue dos últimos godos o único facho que alumia as trevas do futuro da escravizada Hespanha? (Herculano, Eur. 183)
Silveira Bueno (1965:193) é outro autor que se opõe veementemente a essas regras, e tendo constatado a impossibilidade de se elaborar uma síntese de teorias que pudessem abranger as ocorrências e dirimir as dúvidas sobre o emprego do infinitivo, assim se expressa:
Apesar de todos os esforços de Soares Barbosa, Diez e outros teóricos, a cada regra por eles dada podemos opor, não só um, mas dezenas de exemplos clássicos em contrário. É que a oração infinitiva, mormente a de infinitivo pessoal, pertence mais ao estilo que a gramática, obedecendo aos dois grandes e únicos critérios aceitáveis: a clareza do pensamento e a eufonia da frase.
Depois o autor cita vários exemplos ficando evidente que alguns não obedecem às teorias propostas:
“... do qual poço pareciam sair chamas espantosas. (Crôn. Frades Menores)
“... vi IIII mil cavaleiros portugueses fazer por gaanhar prez e onra de cavalaria sobre todolos que eu vi e ouvi falar.” (Batalha do Salado)
“Primeyra e mais principal, que conheçamos avermos por sua especial graça todo nosso ben.” (D. Duarte - Leal Conselheiro)
“Por tentaçon desta terceira tiba voontade vejo muytos errar em sua maneira de viver. (Idem - Ibidem)
“E porq
ue vy muytos homěes errarem per mingua de querer ou saberem assy reger seus coraçons. (Idem - Ibidem)“... e elles em suas palavras e obras mostrarem serem em tudo gente nobre e bem agradecida. (G. de Resente - Crôn. De D. João )
“... e assi licença para nos castellos do extremo d’estes reinos se poderem dizer missas em logares honestos sem perjuízo das igrejas e parochias”. (G. de Resende - Crôn. de D. João II)
Gladstone Chaves de Melo (1981: 120) também registra exemplos, como estes dois:
“O juramento ... e, mais do que isso, a lealdade de guerreiros godos não lhes consentiam abandonarem a irmã do seu capitão”. (Eurico, 34ª ed., de David Lopes, p. 239)
“... e, alongando a vista pelo portal do recinto, viu alvejar os turbantes, e, depois, surgirem rostos tostados, e, depois, reluzirem armas.” (Ib. p. 244)
Depois o autor assevera: “São poucos os casos em que é obrigatório o emprego das formas flexionadas.”
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante das teorias referidas e dos muitos exemplos desse fenômeno lingüístico; face às possibilidades de uso oferecidas pelo verbo na forma infinitiva bem como devido à liberdade manifestada por grandes autores, dos mais antigos aos modernos, pensamos que, nesse aspecto, o erro talvez não seja um fato tão freqüente. Entretanto, o redator, sobretudo o mais exigente e conhecedor da língua portuguesa e dos recursos da linguagem - embora pareça paradoxal - pode ver-se em dúvida sobre qual forma deve ser escolhida, a mais elegante ou adequada e que contribua para a melhor construção da frase. Enfim, este estudo deixa-nos a forte impressão de que o infinitivo está fadado a continuar produzindo alguma polêmica.
Os gramáticos, ao mesmo tempo que o declaram um idiotismo, uma criação vernácula surgida nos documentos mais remotos, às vezes nos surpreendem, como o faz Silveira Bueno (1965: 193) com esta declaração:
Parece-nos que as orações infinitivas nunca foram do cunho da nossa língua e isto o dizemos pela raridade de seus exemplos na língua arcaica e pelas dificuldades que sempre apresentaram, quer aos clássicos, quer aos modernos. Toda a propensão esteve sempre em substituí-las por outras integrantes, quer objetivas, quer predicativas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática Metódica da Língua Portuguesa. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 1979.
CÂMARA JUNIOR, J. Mattoso. História e Estrutura da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Padrão, 1975.
COUTINHO, Ismael de Lima. Gramática Histórica. 7ª ed. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1982.
CUNHA, Celso Ferreira da. Gramática da Língua Portuguesa. 4ª ed. Rio de Janeiro: FENAME, 1977.
LAPA, M. Rodrigues. Vocabulário Galego-Português. In: --. Cantigas de Escarnho e Mal Dizer. [s / l.]: Galáxia, 1970.
MATTOS e SILVA, Rosa Virgínia. Estruturas Trecentistas. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1984.
MELO, Gladstone Chaves de. Iniciação à Filologia e à Lingüística Portuguesa. Rio de Janeiro: Ao Livro Técnico, 1981.
SAID ALI, Manoel. História da Língua Portuguesa. 3ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1964.
SILVEIRA BUENO, Francisco da. A Formação Histórica da Língua Portuguesa. 3ª ed. São Paulo: Edição Saraiva, 1965.