A REALIZAÇÃO DO ACUSATIVO ANAFÓRICO
DE
TERCEIRA PESSOA NA ESCRITA SEMIFORMAL
BRASILEIRA E PORTUGUESA

Gilson Costa Freire (UFRJ)

 

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, diferentes trabalhos lingüísticos acerca do português falado no Brasil vêm registrando uma mudança praticamente consumada na realização do acusativo anafórico de terceira pessoa, visto que o clítico recomendado pela tradição gramatical apresenta baixa ou nenhuma produtividade, o que propiciou o surgimento de outras estratégias em sua substituição, como o uso do pronome lexical em função acusativa, de SNs anafóricos e do objeto nulo (cf. Omena, 1978; Duarte, 1986; Freire, 2000). Bem diversa, no entanto, é a situação da variedade lusitana falada, em que a variante considerada padrão pela gramática tradicional apresenta um uso bastante robusto (cf. Freire, 2000). Esse contraste entre as duas variedades do português parece ratificar a hipótese de Galves (1998), segundo a qual o Português Brasileiro e o Português Europeu (doravante PB e PE, respectivamente) constituiriam duas gramáticas distintas.

Sabe-se que existem trabalhos que investigaram a escrita no que diz respeito à ocorrência de estratégias alternativas ao clítico de terceira pessoa na representação do acusativo anafórico, porém tais trabalhos focalizaram, de um modo geral, textos produzidos por estudantes (cf. Corrêa, 1991; Averbug, 2000) ainda em fase de aprendizagem da língua padrão e sob a influência normativa da escola. Por conseguinte, pouco se sabe sobre a implementação das referidas estratégias no registro escrito semiformal do português, ou seja, aquele que tem pontos de contato com a fala, uma vez que, em tese, não tem um compromisso tão direto com a norma codificada nas gramáticas, ao contrário dos textos estudantis. Dessa forma, o presente trabalho focaliza o fenômeno em questão, a partir de entrevistas transcritas em revistas e em jornais do Rio de Janeiro e de Lisboa, por constituírem amostras representativas da escrita semiformal, o que pode conduzir a uma reflexão sobre a atuação da escola em sua tarefa de ensinar as formas prestigiadas pela gramática normativa.

 

O ACUSATIVO ANAFÓRICO DE TERCEIRA PESSOA

Na constituição das amostras, foram colhidos 21 textos de entrevistas curtas para o PB e sete textos de entrevistas longas para o PE, de modo que as duas amostras ficaram equilibradas. A partir dos dados obtidos, foram definidas as seguintes variantes:

a) uso do clítico acusativo

(01)  Esse livro me persegue há muito tempo. Comecei a escrevê-lo em 1967. (PB: Revista DOMINGO do JB, 28-03-99)[1]

(02)  Esse é um homem de quem gosto muito. Conheci-o de uma forma engraçada. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-00)

b) uso do SN anafórico

(03)  Nossa cultura é muito machista e terminamos por reproduzir essa cultura quando botamos as meninas para cuidar da casa. (PB: Revista DOMINGO do JB, 25-04-99)

(04)  Entretanto tive um caso com o Júlio Isidro que durou dois anos, e foi uma fase engraçada da minha vida. Conheci o Júlio por via dessa gente toda e começo a trabalhar com ele, curiosamente depois de nos termos separado. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-00)

c) uso do objeto nulo

(05)  Era uma época em que os grandes artistas estavam fazendo álbum duplo, com arte gráfica bem feita. Eu queria fazertambém. (PB: Revista DOMINGO do JB, 07-11-99)

(06)  Quando digo isto parece que vou comer lagostas todos os dias e que tenho carros de 18 mil contos. Não tenho–. Nem ambiciono. (Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-00)

O cômputo geral dos dados, distribuído de acordo com as variantes levantadas, é apresentado a seguir:

Tabela 1. Distribuição dos dados computados segundo a variante usada.

Variedades

Clítico

SN anafórico

Objeto nulo

PB

33 / 69

48%

11 / 69

15%

25 / 69

37%

PE

50 / 69

73%

9 / 69

13%

10 / 69

14%

A tabela acima revela que o clítico constitui estratégia significativa para representar o acusativo anafórico de terceira pessoa na escrita semiformal das duas variedades, porém com uma diferença marcante: enquanto no PE ele é de longe a variante majoritária (73%), no PB ele aparece ligeiramente superado pelas demais estratégias somadas (52%). Por conseguinte, os resultados relativos à variedade brasileira revelam que, pelo menos na escrita semiformal, se encontram plenamente infiltradas as formas alternativas ao clítico acusativo de terceira pessoa presentes na fala, o que aponta para um fato contundente e inegável: se, por um lado, a escola consegue eliminar da escrita o pronome lexical em função acusativa, por outro, não consegue estabelecer o clítico como forma majoritária na representação do acusativo anafórico de terceira pessoa, haja vista a ocorrência vultosa do objeto nulo seguido do SN anafórico como estratégias legítimas para essa representação.

A tabela a seguir mostra a distribuição das variantes de acordo com o antecedente do acusativo anafórico:

Tabela 2. Distribuição das variantes segundo a estrutura do antecedente do objeto.

PB

Clítico

SN anafórico

Objeto nulo

SN

32 / 58

56%

7 / 58

12%

19 / 58

32%

Oração ou predicativo

1 / 11

9%

4 / 11

36%

6 / 11

55%

PE

Clítico

SN anafórico

Objeto nulo

SN

45 / 59

77%

6 / 59

10%

8 / 59

13%

Oração ou predicativo

5 / 10

50%

3 / 10

30%

2 / 10

20%

Os resultados obtidos revelam que o clítico no PB praticamente se restringe aos objetos cujo antecedente é um SN e mesmo assim com pequena vantagem (56%) sobre a soma das outras variantes (44%). na realização de objetos oracionais e de predicativos anafóricos, o uso do clítico é flagrantemente periférico, cedendo espaço ao SN anafórico e ao objeto nulo, o que evidencia a consolidação crescente dessas duas últimas formas na variedade brasileira. No PE, ao contrário, verifica-se que o clítico se encontra em correferência com todos os tipos de estrutura: entre os objetos cujo referente é um SN, exibe larga vantagem (77%) sobre as demais variantes somadas (23%); com os objetos oracionais e os predicativos, apresenta-se igualmente robusto, visto que constitui a metade de todos os dados desses contextos. Por conseguinte, a diferença quantitativa de ocorrência do clítico nas duas variedades se deve em parte à natureza do antecedente do acusativo anafórico, visto que no PB a variante padrão estaria restrita a contextos em que retoma um SN, ao contrário do PE. No entanto, mesmo que se considerem os contextos em que o antecedente do acusativo anafórico é um SN, ainda se podem perceber diferenças qualitativas no uso do clítico acusativo entre as duas variedades, conforme serão evidenciadas durante a análise dos condicionamentos lingüísticos.

 

Condicionamentos lingüísticos

Os dados das amostras foram submetidos à análise de fatores como forma verbal, tipo de estrutura sintática e traço semântico, a fim de investigar as condições que mais favorecem a ocorrência de cada variante na realização do acusativo anafórico de terceira pessoa.

 

Forma verbal

A apresenta as variantes entre diferentes formas verbais:

Tabela 3. Distribuição das variantes segundo a forma verbal.

PB

Clítico

SN anafórico

Objeto nulo

Tempos simples

15 / 39

38%

9 / 39

24%

15 / 39

38%

Locução com infinitivo

11 / 17

66%

2 / 17

11%

4 / 17

23%

Infinitivo

7 / 13

54%

6 / 13

46%

PE

Clítico

SN anafórico

Objeto nulo

Tempos simples

30 / 47

65%

7 / 47

14%

10 / 47

21%

Locução com infinitivo

10 / 10

100%

Infinitivo

10 / 12

84%

2 / 12

16%

A tabela anterior indica que no PE, independentemente da forma verbal, o clítico é sempre a variante majoritária, havendo uma tímida competição com as demais variantes apenas entre os tempos simples, mas que não chega a ameaçar a supremacia do pronome acusativo (65%). no PB o índice de ocorrência do clítico (38%) entre as formas verbais finitas é inferior ao das demais variantes somadas (62%), o que sinaliza ser esse o contexto que mais propicia o uso das estratégias de esquiva à variante prestigiada pela tradição escolar na escrita semiformal brasileira. Por outro lado, com as formas do infinitivo, verifica-se uma predileção pelo clítico na realização do acusativo anafórico de terceira pessoa. O exame da ordem desse elemento em relação ao seu hospedeiro verbal pode ajudar a elucidar esse fenômeno na variedade brasileira. Observe-se a tabela seguinte:

Tabela 4.. Ordem do clítico acusativo nas duas variedades do português.

Ordem

PB

PE

Próclise

11 / 33

33%

20 / 50

40%

Ênclise

4 / 33

12%

15 / 50

30%

Ênclise ao verbo principal em loc. verbais

11 / 33

34%

4 / 50

8%

Próclise ao verbo auxiliar em loc. verbais

3 / 50

6%

Ênclise ao infinitivo

7 / 33

21%

3 / 50

6%

Próclise ao infinitivo regido por preposição

5 / 50

10%

Pela tabela acima, percebe-se que os clíticos encontrados na amostra brasileira ocorrem preferencialmente em torno de formas verbais no infinitivo e em posição enclítica, chegando ao índice de 55% a soma de todos esses contextos. Registre-se que em Freire (2000), trabalho envolvendo somente dados de fala de indivíduos com nível superior completo, tais contextos foram os únicos que apresentaram ocorrência de clítico acusativo. Isso parece sugerir que no PB há certa preferência pela superficialização do pronome acusativo como lo, de volume fonético mais expressivo que o. Veja-se o exemplo a seguir:

(07)  Confesso que sou da vice-governadora Benedita da Silva (...) Tempos depois, fui visitá-la em sua casa no Chapéu Mangueira (...) (PB: Revista DOMINGO do JB, 25-04-99)

Na escrita semiformal do PB, também aparece o pronome acusativo sob a forma o, todavia restrito aos tempos simples do indicativo, notadamente o presente e o pretérito perfeito, seja em ênclise seja em próclise:

(08)  Gosto imensamente do Chico, considero-o um compositor com alma feminina. (PB: Revista DOMINGO do JB, 03-10-99)

(09)  Conheci a Joanna quando a entrevistei no programa de rádio que fazia na FM O Dia em 1996. (PB: Revista DOMINGO do JB, 03-10-99)

No entanto, conforme demonstrou a tabela 3, deve-se lembrar que nesses contextos o clítico está em desvantagem em relação à soma das demais estratégias de representação do acusativo anafórico de terceira pessoa, de modo que é entre as formas de infinitivo que a variante de prestígio se mostra mais pujante, muito provavelmente pelo fato de no PB ser esse contexto o único que permite o licenciamento do onset de sua sílaba, como defende Nunes (1993).

os dados do PE apresentam o clítico acusativo pujante não somente entre as formas verbais do infinitivo, mas também entre os tempos simples do indicativo, numa distribuição bem regular, em próclise ou em ênclise. Registre-se ainda que, além de aparecer em ênclise ao verbo principal, esse mesmo elemento pode figurar em próclise ao verbo auxiliar nas locuções verbais com infinitivo. Do mesmo modo, pode ocorrer proclítico ao infinitivo regido por preposição, o que revela um comportamento diferenciado em relação à variedade brasileira que prefere nesses contextos a forma lo à forma o. Observem-se os exemplos a seguir com as diferentes possibilidades de ordem do clítico no PE:

(10)  Como trabalhador por conta de outrem, faço os meus papéis e entrego-os à minha mulher. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 11-03-00)

(11)  O Eanes é uma pessoa que poucas pessoas compreenderam. (...) Por isso o retratei com os relógios, por causa da precisão. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-00)

(12)  [...]as pessoas andam muito distraídas. A fotografia pode ajudar a alertá-las. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-00)

(13)  [Sobre Maria Rueff] O Herman diz que a vai "soltar" em 2001. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 04-03-00)

(14)  Passado o tempo recebemos a carta de uma senhora de Luanda, que vivia bem, e queria saber quem era a criança para a ajudar. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-00)

Sem dúvida alguma, a análise da distribuição das variantes entre as formas verbais evidenciou diferenças qualitativas na ocorrência do clítico entre as duas variedades. É certo que a escrita semiformal de ambas apresenta uma significativa presença de clíticos, todavia a ocorrência desses elementos é muito mais regular e abrangente no PE do que no PB, o que pode fornecer indícios em favor da hipótese de esses dois sistemas serem duas gramáticas distintas.

 

Contexto sintático

Segundo Raposo (1986 apud Galves, 1998) há certos contextos sintáticos em que o objeto nulo sofre marcantes restrições para sua realização no PE, como nas orações subordinadas subjetivas, completivas nominais, interrogativas, relativas e adjuntas. Seriam tais contextos tomados comoilhas sintáticas”, visto que bloqueariam a ocorrência do objeto nulo. Por outro lado, o PE licencia a categoria vazia nas orações independentes, raízes, coordenadas e objetivas direta e indireta. Com relação ao PB, o trabalho de Cyrino (1993) aponta que nessa variedade o objeto nulo não sofre as mesmas restrições encontradas no PE, visto que pode ocorrer livremente em qualquer contexto sintático.

Para testar a aplicabilidade dessas descrições diante do registro escrito semiformal, investigou-se a interferência do contexto sintático na representação do acusativo anafórico de terceira pessoa em cada uma das variedades. Observe-se a tabela a seguir:


 

Tabela 5. Distribuição das variantes segundo a estrutura sintática.

PB

Clítico

SN anafórico

Objeto nulo

Ilha sintática

14 / 23

60%

9 / 23

40%

Não ilha sintática

19 / 46

41%

11 / 46

24%

16 / 46

35%

PE

Clítico

SN anafórico

Objeto nulo

Ilha sintática

14 / 19

74%

4 / 19

21%

1 / 19

5%

Não ilha sintática

36 / 50

72%

5 / 50

10%

9 / 50

18%

Acerca do PB, a tabela acima revela um fato interessante sobre a escrita: nos contextos de ilha sintática, não restrições quanto à ocorrência do objeto nulo, uma vez que este corresponde a 40% dos dados, o que evidencia o seu caráter pronominal na variedade brasileira. Observem-se os exemplos:

(15)  A arma, quando está na mão de quem sabe e tem responsabilidade pra usar–, tem que ser respeitada. (PB: Revista DOMINGO do JB, 11-07-99)

(16)  Sabe aquela massa de criança brincar, que parece uma geléia? É como se puséssemos– dentro de gavetas, de caixinhas e não coubesse, ficasse vazando. (PB: JB, 28-11-99)

Com relação ao PE, percebe-se que os contextos de ilha sintática impõem restrições à categoria vazia, sendo comum nesses casos a ocorrência do clítico, na maior parte das vezes, ou do SN anafórico:

(17)  Eu sou muito tímido e acho até que a maioria das pessoas me conhece muito mal.(...) Às vezes quando não as cumprimento não é por falta de educação, é por constrangimento. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-00)

(18)  A colecção é fantástica, tem uns sapatos transcendentes e depois, no meio disto tudo aparecem umas plataformas! Por que é que ela insiste em fazer estas plataformas? (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 08-04-00)

Por conseguinte, o objeto nulo na variedade européia do português não tem status de um pronome, mas de uma variável, podendo ocorrer apenas em contextos que não sejam de ilha sintática, o que parece ser uma característica universal das línguas humanas:

(19)  (...) pegavam nas saias, cortavam-nas e não compravam – novas! (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 08-04-00)

Houve uma única ocorrência de objeto nulo em contexto de ilha sintática, porém perfeitamente explicável: o referente do acusativo anafórico era uma oração, o que licencia a categoria vazia, porquanto os objetos oracionais como os predicativos anafóricos costumam ser apagados no discurso:

(20)  Mas ele chegou a propor-me enviar um empregado para fazer as fotografias e eu era o responsável. É claro que nunca aceitei–. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 05-02-00

A análise dos contextos sintáticos revelou diferenças fundamentais entre as duas variedades focalizadas: na variedade brasileira, o objeto nulo aparece livremente em qualquer ilha sintática, chegando a competir com o clítico na condição de verdadeiro elemento pronominal; na variedade lusitana, o objeto nulo é apenas uma variável, visto que nas ilhas sintáticas sua ocorrência é bloqueada em favor do clítico. Tais diferenças reforçam uma vez mais a hipótese de Galves (1998), segundo a qual essas duas variedades constituiriam na verdade duas gramáticas internas diferentes.

 

Traço semântico

Na descrição da escolha da variante candidata à representação do acusativo anafórico na escrita semiformal brasileira e portuguesa, mostra-se bastante reveladora uma abordagem que leve em conta o traço semântico do antecedente do objeto.

Observe-se a tabela seguinte:

Tabela 6. Distribuição das variantes segundo o traço semântico.

PB

Clítico

SN anafórico

Objeto nulo

[+ animado]

18 / 20

90%

1 / 20

5%

1 / 20

5%

[– animado]

14 / 38

36%

6 / 38

15%

18 / 38

49%

PE

Clítico

SN anafórico

Objeto nulo

[+ animado]

28 / 31

91%

3 / 31

9%

[– animado]

17 / 28

62%

3 / 28

10%

8 / 28

28%

De acordo com a tabela acima, com objetos de traço semântico [+ animado], o clítico é a variante predileta tanto no PB quanto no PE, não havendo neste último uma ocorrência sequer de objeto nulo. Em contrapartida, é entre os objetos de traço semântico [– animado] que se manifestam as diferenças entre as duas variedades: no PB, o clítico apresenta um percentual abaixo da soma das demais variantes (64%), entre elas sobressaindo o objeto nulo; no PE, o clítico se mantém robusto e estável, porém cede espaço ao objeto nulo.

Em suma, na escrita semiformal, os objetos de traço semântico [+ animado] têm praticamente o mesmo comportamento nas duas variedades, isto é, são realizados pelo clítico, enquanto os de traço [– animado] seguem realizações distintas: no PB é preferencialmente representado pelo objeto nulo; no PE, pelo clítico:

(21)     Vou falar disso no meu próximo livro. Ainda não comecei a escrever, mas é um livro para o ano 2000. (PB: Revista DOMINGO do JB, 05-12-99)

(22)     Mas existe uma certa preocupação dessa cultura e obviamente tenho-a, não a larguei quando dez anos saí. (PE: Suplemento DNA do Diário de Notícias, 11-03-00)

 

CONCLUSÃO

Em vista da análise das amostras, foram evidenciadas significativas diferenças entre as variedades brasileira e européia do português quanto à realização do acusativo anafórico de terceira pessoa na escrita semiformal: por um lado, a pujança da variante padrão no PE; por outro, a infiltração de variantes bem conhecidas da fala em uso alternativo ao clítico no PB. Por conseguinte, a última constatação revela que o clítico não é a única maneira legítima de realizar o acusativo anafórico no registro escrito brasileiro, como a escola quer fazer acreditar.

De um modo geral, os resultados ora apresentados fornecem argumentos em favor da hipótese de Galves (1998) sobre o fato de o PB e o PE constituírem dois sistemas gramaticais distintos, visto que essas variedades francamente seguem caminhos diferentes: um em direção a uma gramática sem clíticos de terceira pessoa; outro, com clíticos, respectivamente.

De qualquer forma, este trabalho representa um passo inicial na investigação da presença de estratégias alternativas ao uso do clítico no registro escrito brasileiro, restando agora checar outros padrões de escrita: tarefa a ser empreendida, que poderá elucidar muitos fatos acerca das características do que realmente vem a ser a norma brasileira no que diz respeito à produção textual.

 

BIBLIOGRAFIA

AVERBUG, Mayra C. G. Objeto direto anafórico e sujeito pronominal na escrita de estudantes. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: UFRJ, 2000.

CORRÊA, Vilma R. O objeto direto nulo no português do Brasil. Dissertação de mestrado. Campinas: UNICAMP. 1991.

CYRINO, Sonia Maria Lazzarini. “Observações sobre a mudança diacrônica no português do Brasil: objeto nulo e clíticos.” In: KATO, Mary A. & ROBERTS, Ian. (orgs.) Português brasileiro — uma viagem diacrônica. Campinas: UNICAMP, 1993.

DUARTE, M. Eugênia Lamoglia. Variação e sintaxe: clítico acusativo, pronome lexical e categoria vazia no português do Brasil. Dissertação de mestrado. São Paulo: PUC-SP, 1986.

––––––. “Clítico acusativo, pronome lexical e categoria vazia no português do Brasil.” In: TARALLO, F. (org.) Fotografias sociolingüísticas. Campinas: Pontes, 1989.

FREIRE, Gilson Costa. Os clíticos de terceira pessoa e as estratégias para sua substituição na fala culta brasileira e lusitana. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, UFRJ, 2000.

GALVES, Charlotte. “Gramática do português brasileiro.” Línguas e instrumentos lingüísticos, n.º 1, Campinas: Pontes, 1998.

NUNES, Jairo. “Direção de cliticização, objeto nulo e pronome tônico na posição de objeto em português brasileiro.” In: KATO, Mary A. & ROBERTS, Ian. (orgs.) Português brasileiro — uma viagem diacrônica. Campinas: UNICAMP, 1993.

OMENA, Nelize Pires de. Pronome pessoal de terceira pessoa. Suas formas variantes em função acusativa. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 1978.


 


 

[1] Em todos os exemplos, a variante focalizada aparece em negrito e itálico, com o antecedente sublinhado.