A
REALIZAÇÃO DO
ACUSATIVO
ANAFÓRICO
DE
TERCEIRA
PESSOA NA
ESCRITA
SEMIFORMAL
BRASILEIRA E
PORTUGUESA
Gilson
Costa
Freire (UFRJ)
INTRODUÇÃO
Nas últimas
décadas,
diferentes
trabalhos
lingüísticos
acerca do
português
falado no Brasil vêm registrando uma
mudança praticamente
consumada na
realização do
acusativo anafórico de
terceira
pessoa,
visto
que o clítico recomendado
pela
tradição
gramatical apresenta
baixa
ou nenhuma produtividade, o
que propiciou o
surgimento de outras
estratégias
em
sua
substituição,
como o
uso do
pronome
lexical
em
função
acusativa, de SNs anafóricos e do
objeto
nulo (cf.
Omena, 1978; Duarte, 1986;
Freire, 2000).
Bem
diversa, no
entanto, é a
situação da
variedade
lusitana
falada,
em
que a
variante considerada
padrão
pela
gramática tradicional apresenta
um
uso
bastante
robusto (cf.
Freire, 2000).
Esse
contraste
entre as duas
variedades do
português parece
ratificar a
hipótese de Galves (1998),
segundo a
qual o
Português
Brasileiro e o
Português
Europeu (doravante PB
e PE,
respectivamente) constituiriam duas
gramáticas distintas.
Sabe-se
que existem
trabalhos
que
já investigaram a
escrita no
que diz
respeito à
ocorrência de
estratégias
alternativas ao clítico de
terceira
pessoa na
representação do
acusativo anafórico,
porém
tais
trabalhos focalizaram, de
um
modo
geral,
textos produzidos
por
estudantes (cf.
Corrêa, 1991;
Averbug, 2000)
ainda
em
fase de aprendizagem da
língua
padrão e
sob a
influência normativa da
escola.
Por
conseguinte,
pouco se sabe
sobre a
implementação das referidas
estratégias no
registro
escrito semiformal do
português,
ou seja,
aquele
que tem
pontos de
contato
com a
fala, uma
vez
que,
em
tese,
não tem
um
compromisso
tão
direto
com a
norma codificada nas
gramáticas, ao
contrário dos
textos estudantis. Dessa
forma, o
presente
trabalho focaliza o
fenômeno
em
questão, a
partir de
entrevistas transcritas
em
revistas e
em
jornais do
Rio de
Janeiro e de Lisboa,
por constituírem
amostras representativas da
escrita semiformal, o
que pode
conduzir a uma
reflexão
sobre a
atuação da
escola
em
sua
tarefa de
ensinar as
formas prestigiadas
pela
gramática normativa.
O
ACUSATIVO ANAFÓRICO DE
TERCEIRA
PESSOA
Na
constituição das
amostras, foram colhidos 21
textos de
entrevistas curtas
para o PB e
sete
textos de
entrevistas longas
para o PE, de
modo
que as duas
amostras ficaram equilibradas. A
partir dos
dados obtidos, foram definidas as
seguintes
variantes:
a)
uso do clítico
acusativo
(01)
Esse
livro
me persegue há
muito
tempo. Comecei a escrevê-lo
em 1967. (PB:
Revista
DOMINGO do JB, 28-03-99)
(02)
Esse é
um
homem de
quem
gosto
muito. Conheci-o de uma
forma
engraçada. (PE:
Suplemento DNA do
Diário de
Notícias, 05-02-00)
b)
uso do SN anafórico
(03)
Nossa
cultura é
muito
machista e terminamos
por
reproduzir essa
cultura
quando botamos
só as meninas
para
cuidar da
casa. (PB:
Revista
DOMINGO do JB, 25-04-99)
(04)
Entretanto tive
um
caso
com o Júlio Isidro
que durou
dois
anos, e foi uma
fase
engraçada da
minha
vida. Conheci o Júlio
por
via dessa
gente
toda e
começo a
trabalhar
com
ele,
curiosamente
depois de
nos
termos separado. (PE:
Suplemento DNA do
Diário de
Notícias, 04-03-00)
c)
uso do
objeto
nulo
(05)
Era uma
época
em
que os
grandes
artistas estavam fazendo
álbum
duplo,
com
arte
gráfica
bem
feita.
Eu queria
fazer–
também. (PB:
Revista
DOMINGO do JB, 07-11-99)
(06)
Quando digo
isto parece
que vou
comer
lagostas
todos os
dias e
que tenho
carros de 18
mil
contos.
Não tenho–.
Nem ambiciono. (Suplemento
DNA do
Diário de
Notícias, 04-03-00)
O
cômputo
geral
dos
dados,
distribuído de
acordo
com
as
variantes
levantadas, é apresentado a
seguir:
Tabela
1.
Distribuição
dos
dados
computados
segundo
a
variante usada.
Variedades |
Clítico |
SN anafórico |
Objeto
nulo |
PB |
33 / 69 |
48% |
11 / 69 |
15% |
25 / 69 |
37% |
PE |
50 / 69 |
73% |
9 / 69 |
13% |
10 / 69 |
14% |
A
tabela
acima revela
que o clítico
constitui
estratégia
significativa
para
representar o
acusativo
anafórico de
terceira
pessoa na
escrita
semiformal das duas
variedades,
porém
com uma
diferença
marcante:
enquanto no PE
ele é de
longe a
variante
majoritária
(73%), no PB
ele
já aparece
ligeiramente
superado pelas
demais
estratégias
somadas (52%).
Por
conseguinte,
os
resultados
relativos à
variedade
brasileira
revelam
que,
pelo
menos na
escrita
semiformal,
já se
encontram
plenamente
infiltradas as
formas
alternativas
ao clítico
acusativo de
terceira
pessoa
presentes na
fala, o
que aponta
para
um
fato
contundente e
inegável: se,
por
um
lado, a
escola
consegue
eliminar da
escrita o
pronome
lexical
em
função
acusativa,
por
outro,
não consegue
estabelecer o clítico
como
forma
majoritária na
representação
do
acusativo
anafórico de
terceira
pessoa, haja
vista a
ocorrência
vultosa do
objeto
nulo seguido
do SN anafórico
como
estratégias
legítimas
para essa
representação.
A
tabela a
seguir
mostra a
distribuição
das
variantes de
acordo
com o
antecedente do
acusativo
anafórico:
Tabela
2.
Distribuição
das
variantes
segundo
a
estrutura
do
antecedente
do
objeto.
PB |
Clítico |
SN anafórico |
Objeto
nulo |
SN |
32 / 58 |
56% |
7 / 58 |
12% |
19 / 58 |
32% |
Oração
ou
predicativo |
1 / 11 |
9% |
4 / 11 |
36% |
6 / 11 |
55% |
PE |
Clítico |
SN anafórico |
Objeto
nulo |
SN |
45 / 59 |
77% |
6 / 59 |
10% |
8 / 59 |
13% |
Oração
ou
predicativo |
5 / 10 |
50% |
3 / 10 |
30% |
2 / 10 |
20% |
Os
resultados
obtidos revelam
que o clítico
no PB praticamente se restringe aos
objetos
cujo
antecedente é
um SN e
mesmo
assim
com
pequena
vantagem (56%)
sobre a
soma das outras
variantes
(44%).
Já na
realização de
objetos
oracionais e
de
predicativos
anafóricos, o
uso do clítico
é
flagrantemente
periférico,
cedendo
espaço ao SN
anafórico e ao
objeto
nulo, o
que evidencia
a
consolidação
crescente
dessas duas últimas
formas na
variedade
brasileira. No
PE, ao
contrário,
verifica-se
que o clítico
se
encontra
em
correferência
com
todos os
tipos de
estrutura:
entre os
objetos
cujo
referente é
um SN, exibe
larga
vantagem (77%)
sobre as
demais
variantes
somadas (23%);
com os
objetos
oracionais e
os
predicativos,
apresenta-se
igualmente
robusto,
visto
que constitui
a
metade de
todos os
dados desses
contextos.
Por
conseguinte, a
diferença
quantitativa
de
ocorrência do
clítico nas duas
variedades se
deve
em
parte à
natureza do
antecedente do
acusativo
anafórico,
visto
que no PB a
variante
padrão estaria
restrita a
contextos
em
que retoma
um SN, ao
contrário do
PE. No
entanto,
mesmo
que
só se
considerem os
contextos
em
que o
antecedente do
acusativo
anafórico é
um SN,
ainda se podem
perceber
diferenças
qualitativas no
uso do clítico
acusativo
entre as duas
variedades,
conforme
serão
evidenciadas
durante a
análise dos
condicionamentos
lingüísticos.
Condicionamentos
lingüísticos
Os
dados
das
amostras
foram submetidos à
análise
de
fatores
como
forma
verbal,
tipo
de
estrutura
sintática
e
traço
semântico,
a
fim
de
investigar
as
condições
que
mais
favorecem a
ocorrência
de
cada
variante
na
realização
do
acusativo
anafórico de
terceira
pessoa.
Forma
verbal
A apresenta as
variantes
entre
diferentes
formas
verbais:
Tabela
3.
Distribuição
das
variantes
segundo a
forma
verbal.
PB |
Clítico |
SN anafórico |
Objeto
nulo |
Tempos
simples |
15 / 39 |
38% |
9 / 39 |
24% |
15 / 39 |
38% |
Locução
com
infinitivo |
11 / 17 |
66% |
2 / 17 |
11% |
4 / 17 |
23% |
Infinitivo |
7 / 13 |
54% |
— |
— |
6 / 13 |
46% |
PE |
Clítico |
SN anafórico |
Objeto
nulo |
Tempos
simples |
30 / 47 |
65% |
7 / 47 |
14% |
10 / 47 |
21% |
Locução
com
infinitivo |
10 / 10 |
100% |
— |
— |
— |
— |
Infinitivo |
10 / 12 |
84% |
2 / 12 |
16% |
— |
— |
A
tabela
anterior
indica
que no PE,
independentemente
da
forma
verbal, o
clítico é
sempre a
variante
majoritária,
havendo uma
tímida
competição
com as
demais
variantes
apenas
entre os
tempos
simples,
mas
que
não
chega a
ameaçar a
supremacia do
pronome
acusativo
(65%).
Já no PB o
índice de
ocorrência do
clítico (38%)
entre as
formas
verbais
finitas é
inferior ao
das
demais
variantes
somadas (62%), o
que sinaliza
ser
esse o
contexto
que
mais propicia
o
uso das
estratégias de
esquiva à
variante prestigiada
pela
tradição
escolar na
escrita
semiformal
brasileira.
Por
outro
lado,
com as
formas do
infinitivo,
verifica-se uma
predileção
pelo clítico na
realização do
acusativo
anafórico de
terceira
pessoa. O
exame da
ordem desse
elemento
em
relação ao
seu
hospedeiro
verbal pode
ajudar a
elucidar
esse
fenômeno na
variedade
brasileira.
Observe-se a
tabela
seguinte:
Tabela
4..
Ordem do
clítico
acusativo nas
duas
variedades do
português.
Ordem |
PB |
PE |
Próclise
|
11 / 33 |
33% |
20 / 50 |
40% |
Ênclise |
4 / 33 |
12% |
15 / 50 |
30% |
Ênclise
ao
verbo
principal
em loc.
verbais |
11 / 33 |
34% |
4 / 50 |
8% |
Próclise
ao
verbo
auxiliar
em loc.
verbais |
— |
— |
3 / 50 |
6% |
Ênclise
ao
infinitivo |
7 / 33 |
21% |
3 / 50 |
6% |
Próclise
ao
infinitivo
regido
por
preposição |
— |
— |
5 / 50 |
10% |
Pela
tabela
acima,
percebe-se
que os
clíticos encontrados na
amostra
brasileira
ocorrem
preferencialmente
em
torno de
formas
verbais no
infinitivo e
em
posição
enclítica,
chegando ao
índice de 55%
a
soma de
todos
esses
contextos.
Registre-se
que
em Freire
(2000),
trabalho envolvendo
somente
dados de
fala de
indivíduos
com
nível
superior
completo,
tais
contextos
foram os
únicos
que
apresentaram
ocorrência de
clítico
acusativo.
Isso parece
sugerir
que no PB há
certa
preferência
pela
superficialização do
pronome
acusativo
como lo,
de
volume
fonético
mais
expressivo
que o.
Veja-se o
exemplo a
seguir:
(07)
Confesso
que sou
fã da
vice-governadora Benedita da Silva (...)
Tempos
depois, fui
visitá-la
em
sua
casa no
Chapéu
Mangueira
(...) (PB:
Revista
DOMINGO
do JB, 25-04-99)
Na
escrita
semiformal do PB,
também aparece
o
pronome
acusativo
sob a
forma o,
todavia
restrito aos
tempos
simples do
indicativo,
notadamente o
presente e o
pretérito
perfeito, seja
em
ênclise seja
em
próclise:
(08)
Gosto
imensamente do
Chico, considero-o
um
compositor
com
alma
feminina. (PB:
Revista
DOMINGO
do JB, 03-10-99)
(09) Conheci a Joanna
quando a
entrevistei no
programa de
rádio
que fazia na
FM O
Dia
em 1996. (PB:
Revista
DOMINGO
do JB, 03-10-99)
No
entanto,
conforme
demonstrou a
tabela 3,
deve-se
lembrar
que nesses
contextos o
clítico está
em
desvantagem
em
relação à
soma das
demais
estratégias de
representação
do
acusativo
anafórico de
terceira
pessoa, de
modo
que é
entre as
formas de
infinitivo
que a
variante de
prestígio se
mostra
mais
pujante,
muito
provavelmente
pelo
fato de no PB
ser
esse
contexto o
único
que permite o
licenciamento
do onset de
sua
sílaba,
como defende
Nunes (1993).
Já os
dados do PE
apresentam o clítico
acusativo
pujante
não
somente
entre as
formas
verbais do
infinitivo,
mas
também
entre os
tempos
simples do
indicativo,
numa
distribuição
bem
regular,
em
próclise
ou
em
ênclise.
Registre-se
ainda
que,
além de
aparecer
em
ênclise ao
verbo
principal,
esse
mesmo
elemento pode
figurar
em
próclise ao
verbo
auxiliar nas
locuções
verbais
com
infinitivo. Do
mesmo
modo, pode
ocorrer proclítico ao
infinitivo
regido
por
preposição, o
que revela
um
comportamento
diferenciado
em
relação à
variedade
brasileira
que prefere
nesses
contextos a
forma lo à
forma o.
Observem-se os
exemplos a
seguir
com as
diferentes
possibilidades de
ordem do
clítico no PE:
(10)
Como
trabalhador
por
conta de
outrem, faço
os
meus
papéis e entrego-os à
minha
mulher. (PE:
Suplemento
DNA do
Diário
de
Notícias,
11-03-00)
(11) O Eanes é uma
pessoa
que poucas
pessoas
compreenderam. (...)
Por
isso o
retratei
com os
relógios,
por
causa da
precisão. (PE:
Suplemento
DNA do
Diário
de
Notícias,
05-02-00)
(12) [...]as
pessoas
andam
muito
distraídas. A
fotografia
pode
ajudar a alertá-las.
(PE:
Suplemento
DNA do
Diário
de
Notícias,
05-02-00)
(13) [Sobre
Maria Rueff] O Herman diz
que a
vai "soltar"
em 2001. (PE:
Suplemento
DNA do
Diário
de
Notícias,
04-03-00)
(14)
Passado o
tempo
recebemos a
carta de uma
senhora de Luanda,
que vivia
bem, e queria
saber
quem
era
a
criança
para a
ajudar. (PE:
Suplemento
DNA do
Diário
de
Notícias,
05-02-00)
Sem
dúvida alguma,
a
análise da
distribuição
das
variantes
entre as
formas
verbais
evidenciou
diferenças
qualitativas na
ocorrência do
clítico
entre as duas
variedades. É
certo
que a
escrita
semiformal de ambas apresenta uma
significativa
presença de clíticos,
todavia a
ocorrência
desses
elementos é
muito
mais
regular e abrangente no PE
do
que no PB, o
que pode
fornecer
indícios
em
favor da
hipótese de
esses
dois
sistemas serem
duas
gramáticas
distintas.
Contexto
sintático
Segundo Raposo
(1986
apud
Galves, 1998) há
certos
contextos
sintáticos
em
que o
objeto
nulo sofre
marcantes
restrições
para
sua
realização no
PE,
como nas
orações
subordinadas subjetivas, completivas
nominais,
interrogativas, relativas e adjuntas. Seriam
tais
contextos
tomados
como “ilhas
sintáticas”,
visto
que
bloqueariam a
ocorrência do
objeto
nulo.
Por
outro
lado, o PE
licencia a
categoria
vazia nas
orações
independentes,
raízes,
coordenadas e
objetivas
direta e
indireta.
Com
relação ao PB,
o
trabalho de Cyrino (1993)
aponta
que nessa
variedade o
objeto
nulo
não sofre as
mesmas
restrições
encontradas no PE,
visto
que pode
ocorrer
livremente
em
qualquer
contexto
sintático.
Para
testar a aplicabilidade
dessas
descrições
diante do
registro
escrito
semiformal, investigou-se a
interferência
do
contexto
sintático na
representação
do
acusativo
anafórico de
terceira
pessoa
em
cada uma das
variedades.
Observe-se a
tabela a
seguir:
Tabela
5.
Distribuição
das
variantes
segundo a
estrutura
sintática.
PB |
Clítico |
SN anafórico |
Objeto
nulo |
Ilha
sintática |
14 / 23 |
60% |
— |
— |
9 / 23 |
40% |
Não
ilha
sintática |
19 / 46 |
41% |
11 / 46 |
24% |
16 / 46 |
35% |
PE |
Clítico |
SN anafórico |
Objeto
nulo |
Ilha
sintática |
14 / 19 |
74% |
4 / 19 |
21% |
1 / 19 |
5% |
Não
ilha
sintática |
36 / 50 |
72% |
5 / 50 |
10% |
9 / 50 |
18% |
Acerca do PB,
a
tabela
acima revela
um
fato
interessante
sobre a
escrita:
nos
contextos de
ilha
sintática,
não há
restrições
quanto à
ocorrência do
objeto
nulo, uma
vez
que
este
corresponde a 40% dos
dados, o
que evidencia
o
seu
caráter
pronominal na
variedade
brasileira.
Observem-se os
exemplos:
(15) A
arma,
quando está na
mão de
quem sabe e
tem
responsabilidade
pra
usar–, tem
que
ser respeitada. (PB:
Revista
DOMINGO
do JB, 11-07-99)
(16) Sabe aquela
massa
de
criança
brincar,
que parece uma
geléia? É
como se
puséssemos–
dentro de
gavetas, de
caixinhas e
não coubesse,
ficasse vazando. (PB: JB, 28-11-99)
Com
relação ao PE,
percebe-se
que os
contextos de
ilha
sintática
impõem
restrições à
categoria
vazia, sendo
comum nesses
casos a
ocorrência do
clítico, na
maior
parte das
vezes,
ou do SN
anafórico:
(17)
Eu sou
muito
tímido e acho
até
que a
maioria das
pessoas
me conhece
muito
mal.(...) Às
vezes
quando
não as
cumprimento
não é
por
falta de
educação, é
por
constrangimento. (PE:
Suplemento
DNA do
Diário
de
Notícias,
05-02-00)
(18) A colecção é
fantástica,
tem uns
sapatos
transcendentes
e
depois, no
meio disto
tudo aparecem
umas
plataformas!
Por
que é
que
ela insiste
em
fazer
estas
plataformas?
(PE:
Suplemento
DNA do
Diário
de
Notícias,
08-04-00)
Por
conseguinte, o
objeto
nulo na
variedade
européia do
português
não tem
status
de
um
pronome,
mas de uma
variável,
podendo
ocorrer
apenas
em
contextos
que
não sejam de
ilha
sintática, o
que parece
ser uma
característica
universal das
línguas
humanas:
(19) (...) pegavam nas
saias,
cortavam-nas e
não compravam
–
novas! (PE:
Suplemento
DNA do
Diário
de
Notícias,
08-04-00)
Houve uma
única
ocorrência de
objeto
nulo
em
contexto de
ilha
sintática,
porém
perfeitamente
explicável: o
referente do
acusativo
anafórico
era uma
oração, o
que licencia a
categoria
vazia,
porquanto os
objetos
oracionais
como os
predicativos
anafóricos costumam
ser
apagados no
discurso:
(20)
Mas
ele chegou a
propor-me
enviar
um
empregado
para
fazer
as
fotografias
e
eu
era
só o
responsável.
É
claro
que
nunca
aceitei–. (PE:
Suplemento
DNA do
Diário
de
Notícias,
05-02-00
A
análise dos
contextos
sintáticos
revelou
diferenças
fundamentais
entre as duas
variedades
focalizadas: na
variedade
brasileira, o
objeto
nulo aparece
livremente
em
qualquer
ilha
sintática,
chegando a
competir
com o clítico
na
condição de
verdadeiro
elemento
pronominal;
já na
variedade
lusitana, o
objeto
nulo é
apenas uma
variável,
visto
que nas
ilhas
sintáticas
sua
ocorrência é
bloqueada
em
favor do clítico.
Tais
diferenças
reforçam uma
vez
mais a
hipótese de
Galves (1998),
segundo a
qual essas
duas
variedades
constituiriam na
verdade duas
gramáticas
internas
diferentes.
Traço
semântico
Na
descrição da
escolha da
variante
candidata à
representação
do
acusativo
anafórico na
escrita
semiformal
brasileira e
portuguesa, mostra-se
bastante
reveladora uma
abordagem
que
leve
em
conta o
traço
semântico do
antecedente do
objeto.
Observe-se a
tabela
seguinte:
Tabela
6.
Distribuição
das
variantes
segundo o
traço
semântico.
PB |
Clítico |
SN anafórico |
Objeto
nulo |
[+
animado] |
18 / 20 |
90% |
1 / 20 |
5% |
1 / 20 |
5% |
[–
animado] |
14 / 38 |
36% |
6 / 38 |
15% |
18 / 38 |
49% |
PE |
Clítico |
SN anafórico |
Objeto
nulo |
[+
animado] |
28 / 31 |
91% |
3 / 31 |
9% |
— |
— |
[–
animado] |
17 / 28 |
62% |
3 / 28 |
10% |
8 / 28 |
28% |
De
acordo
com a
tabela
acima,
com
objetos de
traço
semântico [+
animado], o
clítico é a
variante
predileta
tanto no PB
quanto no PE,
não havendo
neste
último uma
ocorrência
sequer de
objeto
nulo.
Em
contrapartida,
é
entre os
objetos de
traço
semântico [–
animado]
que se
manifestam as
diferenças
entre as duas
variedades: no
PB, o clítico apresenta
um
percentual
abaixo da
soma das
demais
variantes
(64%),
entre
elas
sobressaindo o
objeto
nulo; no PE, o
clítico se mantém
robusto e
estável,
porém
já cede
espaço ao
objeto
nulo.
Em
suma, na
escrita
semiformal, os
objetos de
traço
semântico [+
animado] têm
praticamente o
mesmo
comportamento
nas duas
variedades,
isto é,
são realizados
pelo clítico,
enquanto os de
traço [–
animado]
seguem
realizações
distintas: no PB é
preferencialmente
representado
pelo
objeto
nulo; no PE,
pelo clítico:
(21) Vou
falar disso no
meu
próximo
livro.
Ainda
não comecei a
escrever,
mas é
um
livro
para o
ano 2000. (PB:
Revista
DOMINGO
do JB, 05-12-99)
(22)
Mas existe
uma
certa
preocupação
dessa
cultura
e obviamente tenho-a,
não a
larguei
quando há
dez
anos saí. (PE:
Suplemento
DNA do
Diário
de
Notícias,
11-03-00)
CONCLUSÃO
Em
vista da
análise das
amostras,
foram evidenciadas significativas
diferenças
entre as
variedades
brasileira e
européia do
português
quanto à
realização do
acusativo
anafórico de
terceira
pessoa na
escrita
semiformal:
por
um
lado, a
pujança da
variante
padrão no PE;
por
outro, a
infiltração de
variantes
já
bem conhecidas da
fala
em
uso
alternativo ao
clítico no PB.
Por
conseguinte, a
última
constatação
revela
que o clítico
já
não é a
única
maneira
legítima de
realizar o
acusativo
anafórico no
registro
escrito
brasileiro,
como a
escola
quer
fazer
acreditar.
De
um
modo
geral, os
resultados
ora
apresentados fornecem
argumentos
em
favor da
hipótese de
Galves (1998)
sobre o
fato de o PB e
o PE constituírem
dois
sistemas
gramaticais
distintos,
visto
que essas
variedades
francamente
seguem
caminhos
diferentes:
um
em
direção a uma
gramática
sem clíticos
de
terceira
pessoa;
outro,
com clíticos,
respectivamente.
De
qualquer
forma,
este
trabalho representa
um
passo
inicial na
investigação
da
presença de
estratégias
alternativas
ao
uso do clítico
no
registro
escrito
brasileiro, restando
agora
checar
outros
padrões de
escrita:
tarefa a
ser empreendida,
que poderá
elucidar
muitos
fatos
acerca das
características
do
que
realmente vem
a
ser a
norma
brasileira no
que diz
respeito à
produção
textual.
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