BASES
DIACRÔNICAS
PARA
AS
RELAÇÕES
DE CAUSATIVIDADE
E PROCESSUALIDADE
EM
PORTUGUÊS
A
GÊNESE
DA
VOZ
MÉDIA
Paulo Mosânio T. Duarte (UFC)
Introdução
Este
artigo
tem
por
escopo
fornecer
elementos
para
o
estudo
das
relações
entre
a
chamada
voz
de
ação
/
processo
e a
voz
de
processo,
numa
abordagem
diacrônica.
Infelizmente,
não
tivemos
oportunidade
de
rastrear,
como
devíamos, as referidas
relações,
mostrando
momentos
em
que
algumas estruturações
não
ainda
estavam
em
fase
de
consolidação.
O
motivo
para
tal
insuficiência
se deve a
dois
fatores:
o
primeiro
deles diz
respeito
à
falta
de
ampla
bibliografia
pertinente
que
nos
oferecesse
um
corpus
alentado;
o
segundo
concerne à
falta
de
um
amplo
espaço
que
motivasse uma
investigação
mais
detida
sobre
o
assunto.
Para
levarmos a
termo
nosso
desiderato,
decidimos
tratar
do
assunto
sob
dois
prismas
de
base
mórfica: a) os derivados
em
–sc(ere); b) e os derivados
em
–are.
No
que
concerne ao
primeiro,
trataremos da
distribuição,
e do
sentido
do
afixo,
da transitividade e dos papéis
semânticos
actanciais,
em
seu
trânsito
de
um
emprego
estritamente
incepto-continuativo,
para,
já
no
latim
vulgar
e, daí
para
o
português,
a
admissão,
também,
do
emprego
causativo,
bem
como
da
assunção
de
um
significado
amplamente
incoativo. No
que
tange ao
segundo,
trataremos das
formas
denominais causativas
para,
daí, hipotetizarmos a
consolidação
de
um
emprego
também
incoativo.
O
sufixo
–SC(ERE):
seu
comportamento
gramatical
e
semântico
O
sufixo –SC(ERE)
remonta a
empregos
bem
antigos, uma
vez
que se
encontra, às
vezes, adjungido
como se
vê
em nosco, pasco e posco.
Era
um
sufixo
que aparecia
em
formas do infectum, indicando
que a
ação, o
processo
ou o
estado começam a
tomar uma
certa
intensidade, designando
assim o
começo de
cada
um dos referidos
estados de
coisas.
Sendo
forma
privativa do infectum, gerava
oposições
verbais do
tipo: cresco / crevi, nosco /
novi, scisco / scivi;
em
que
cada
segundo
membro de
cada
par constituía
forma de perfectum.
O
sufixo
em
tela passou a anexar-se a
verbos estativos de
segunda
conjugação.
Três possibilidades se delinearam. A
primeira delas pode
ser ilustrada
pelos
pares
abaixo:
Verbos
estativos |
Verbos
incoativos
ou
incepto-continuativo |
langueo (sou / estou
lânguido) |
languesco, ere (torno-me
lânguido)
|
liveo (sou / estou
pálido)
|
livesco, ere (torno-me
pálido / empalideço) |
madeo (sou / estou
úmido) |
madesco, ere (torno-me
úmido) |
tumeo (sou / estou inchado) |
tumesco, ere (torno-me inchado) |
Além do
esquema
acima,
outro pode
ser citado, constituído de uma
tríade:
adjetivo
→
verbo estativo
→
verbo incepto-continuativo (traduziremos
apenas os
adjetivos).
Adjetivos |
Estativos |
Incepto-continuativos |
albus, a,
um (branco) |
albeo, ere |
albesco, ere |
clarus, a,
um (ilustre) |
clareo, ere |
claresco, ere |
niger, gra, grum (negro) |
nigreo, ere |
nigresco, ere |
ruber, bra, brum (vermelho) |
rubeo, ere |
rubesco, ere |
Nem
sempre,
porém, havia o
verbo de
estado ao
qual se adjungisse o
sufixo: o
afixo
final se acrescentava
diretamente ao
adjetivo
sem a mediação de
um
verbo estativo. No
entanto,
como veremos, a
vogal –e permanece no
verbo formado (ela
pertenceria ao
verbo estativo
caso
este existisse). Se considerado uma
forma estativa
teórica, teríamos o
sufixo sc (ere),
mas, se
levada
em
conta a
mera anexação, temos o
sufixo – esc(ere). Iremos
desconsiderar as
formas estativas
virtuais. Apresentamos a
seguir o
terceiro
quadro
que prosperou
em
português.
Adjetivos |
Incepto-continuativos |
crassus, a,
um (espesso) |
crassesco, ere |
gravis, e (pesado) |
gravesco, ere |
maturus, a,
um (maduro) |
maturesco, ere |
Um
quarto
tipo,
similar
ao
terceiro,
diz
respeito
a
verbos
incepto-continuativos de
raiz
substantival. Neste
grupo,
reconhecemos
dois
subtipos:
aqueles
mediados
por
verbos
estativos e
aqueles
mediados
por
estes
verbos.
Substantivos |
Estativos |
Incepto-continuativos |
flos, oris (flor) |
floreo, ere |
floresco, ere |
frons, frondis (fronde) |
frondeo, ere |
frondesco, ere |
lac, lactis (leite) |
lacteo, ere |
lactesco, ere |
Substantivos |
Incepto-continuativos |
aurora,
ae |
auroresco, ere |
aurum, i |
auresco, ere |
cinis, eris |
cineresco, ere |
lapis, idis |
lapidesco, ere |
As
formas
em –esco ostentavam
mais
alto
rendimento
em
relação às
formas
em –asco,
obtidas
por
analogia
com derivados de
verbos
em –are.
São
exemplos deadjetivais: tenerasco, ere (de
tener, eris; “tenro”); veterasco, ere
(de vetus, eris; “velho”);
dessubstantivais: purpurasco, ere (de purpura, ae );
vesperasco, ere ( de vesper, eris).
Convém
reiterar o
que asseveramos no
início desta
secção: o
sufixo é originariamente uma
marca de infectum e continua a sê-lo
mesmo nas
formas incepto-continuativas,
que
são subdomínio das infectivas. As
incepto-continuativas lograram
assim chamar-se,
por
um
efeito estrutural e
analógico, a
que Bréal (1998) denomina
irradiação.
Privativo
que
era do perfectum, a
forma sufixal se ausentava do infectum. Acrescentavam-se
assim, se fosse o
caso, as
desinências próprias deste micro-sistema
aspectual. Às
vezes os
dicionários, convém
salientar,
não assinalam a
forma
básica de perfectum, o
que significa
que
não foram consignadas,
não
que inexistissem
em
uso,
permitido
pelo
sistema de possibilidades
que é a
língua. Podemos
tão
somente
especular
que as
formas perfectivas fossem evitadas
em
virtude da
homonímia
com as
formas perfectivas dos
verbos estativos. À
guisa de
ilustração, temos candesco / candui
(torno-me / tornei-me
branco
brilhante); candeo / candui (sou / fui
branco
brilhante). No
entanto, o
dicionário
em
que
nos apoiamos (cf.
Saraiva, 1993)
não consigna
formas pretéritas
para as
formas
verbais crassesco (torno-me
espesso) e mitisco (torno-me
doce).
Independentemente das abonações lexicográficas,
relativas,
porque dependem da
extensão da
fonte, admitimos, de boa
vontade,
que a referida
homonímia deve
ter sido
um
tanto
incômoda.
Aspectos
sintáticos
e
semânticos
das
formas
inceptivo-incoativas
Podemos
afirmar
que,
como
regra, as
formas inceptivo-incoativas tendiam a
ser intransitivas, a
exemplo de:
·
homo senescit ( o
homem envelhece).
·
vultus feminae pallescit ( o
rosto da
mulher empalideceu).
Frases
como estas
eram tipicamente indicadoras de
voz
medial,
já
que há
um
só actante, o
sujeito,
que é
paciente do
processo
verbal.
Semanticamente, a
oração se
configura
como de
processo,
isto se
nos utilizamos
da
nomenclatura
de Chafe (1979).
Em
termos da
terminologia
de Dik (1989),
esses
verbos
codificam
estados de
coisa de
eventos,
em
que há
dinamicidade,
mas
não há
controle. O
mesmo
ponto de
vista é
acolhido
por
Peres (1984).
Assim sendo, o
latim evitava
construções do
tipo
ação-processo,
em
que o
verbo tem à
esquerda
um
agente
ou
um
causador e à
direita
um
elemento
afetado
ou
paciente.
Eram,
portanto,
agramaticais
frases do
tipo:
·
* tristitia oculos feminae
pallescit.( a
tristeza empalidece os
olhos da
mulher).
·
* dolor militem senescit. (a
dor envelhece o
soldado).
Neste
particular, o
latim difere do
português,
que admite duas
construções
com
formas
em –esc(er):
·
a
tristeza empalidece os
olhos da
mulher.
·
a
dor envelhece o
soldado.
O
motivo
para esta
divergência de
transitividade será apresentado
ainda neste
artigo.
A
herança
latina
das
formas
em
–sc(ere) no
português
Distribuição
e
sentido
Em
português,
o
sufixo
é –esc(er), derivado de esc(ere), deadjetival e
dessubstantival.
Não
prosperou o
padrão
estativo → incoativo → inceptivo-continuativo.
Afinal,
como
bem
assinala Maurer Jr. (1959), o
emprego
dos
verbos
de
estado
era
limitado,
mormente
na
língua
vulgar.
Não
havia,
portanto,
possibilidades ‘normais’
(correntes
no
uso)
de
formas
como
* crasseo, ere, *crebeo, ere, * graveo,
ere, *miteo, ere, *noteo, ere, etc,
apesar
de
possíveis
no
sistema.
Um
segundo
fato
sobre
o
qual
se deve
fazer
menção
é a
extensão
do
elemento
sufixal a todas as
formas
verbais
em
português.
Este
fato
merece
considerações
mais
detidas.
Em
primeiro
lugar,
ressalte-se
que
a supressão do
sufixo,
para
receber
desinências,
constituiria
um
fato
ímpar
em
português
e
mesmo
em
outras
línguas
românicas.
Não
há
lugar
para
um
esquema
destoante e
caprichoso,
semelhante
ao
latino,
o
qual
engendraria
hoje
oposições
do
tipo:
* alvorece / alvoreu, * escureço / escuri, * amareleço / amareli, * obscureço /
obscuri.
O aludido
fato
ampara-se
em
uma
condição
estrutural
mais
ampla:
a
derrocada
do
harmonioso
sistema
verbal
latino,
que
se fundava na
oposição
infectum / perfectum. A
distinção
das
séries,
ancorada no
aspecto,
foi perturbada,
sobretudo
pela
necessidade
de
expressar
as
relações
temporais.
Para
Câmara
Jr (1985:125), as raízes deste
desarranjo
já
se encontravam no
próprio
latim
clássico.
Apresentamos
abaixo
a
interpretação
do
lingüista
brasileiro,
tomando
como
eixo
apenas
as
formas
do
indicativo:
IMPERFEITO |
amava |
Amaria |
amo |
amarei |
PERFEITO |
amei |
|
|
|
MAIS-QUE-PERFEITO |
amara |
|
|
|
|
PRETÉRITO |
FUTURO |
PRESENTE |
FUTURO |
Desaparecidas as
condições
que
davam
sustentação
ao
esquema
opositivo
original,
fundado
no
aspecto,
alterou-se
conseqüentemente
a
caracterização
semântico-gramatical do
sufixo
–ec(er),
que
se estendeu a todas as
formas
verbais,
passando a
indicar
o
processo
ou
a
ação
/
processo
no
começo,
no
curso
ou
no
término.
Em
outras
palavras,
a
noção
de tornar-se
deixa
de
ser
incepto-continuativa,
para
ser
amplamente
incoativa.
A transitividade
Em
latim,
como
já
asseveramos, o
caráter
incepto-continuativo das
formas
em
-sc(ere) se associava ao
comportamento
intransitivo
das
formas
verbais,
em
que
o
sujeito
era
paciente,
afetado.
Se quiséssemos
dar
relevo
a
um
agente,
causador
ou
instrumento,
teríamos de
lançar
mão
da
forma
ablativa
ou
de uma
preposição
acompanhada do
devido
caso,
a
exemplo
de:
·
Ignaviā animi hominum languescunt.
(Por
causa
da
covardia,
o
espírito
dos
homens
enlanguesce).
·
Propter ignaviam, animi hominum languescunt.
(Traduz-se
como
acima).
Assim,
a
estrutura
básica
intransitiva
era
mantida,
diferentemente
do
que
ocorre
com
o
português,
onde
são
possíveis
os
empregos
intransitivo
e
transitivo
consoante
demonstramos na
seção
precedente.
Contudo,
vale
a
pena
atentar
que
a
regra
de intransitividade das
formações
em
-sc(ere)
não
se manteve
incólume
nas
formas
vulgares,
que
resgatam
inclusive
usos
transitivos
do
latim
arcaico,
como
demonstra a
seguinte
passagem
de Väänänen (1975):
Graças
a
sua
expressividade e a
sua
unidade
de acentuação no
presente,
esta
formação
conheceu uma
sorte
próspera.
Por
um
lado,
esta
categoria
se estendeu aos
transitivos:
assuescere, insuescere ‘acostumar”
do
latim
antigo;
no
baixo
latim
augescere ‘aumentar’
( = augere), innotescere “dar
a
conhecer”(1975:218).
À
guisa
de
reforço,
acrescentamos esta
outra
de Ernout (1953):
Esta
formação
em
–sco teve uma
fortuna
considerável
em
latim.
Na
língua
vulgar,
ela
serve
para
criar
não
somente
intransitivos,
mas
ainda
causativos
com
sentido
transitivo,
assim
no
século
V, d.C., encontra-se innotescere ‘fazer
conhecer’,
mollescere ‘amolecer’(1953:133).
Os
trechos
acima,
que
concernem à
língua
vulgar,
têm a
vantagem
de
precisar
o
fenômeno
da transitividade. Cabendo,
todavia,
fazer
algumas ressalvas.
Primeiro,
os
fatos
históricos
não
ocorrem de
súbito.
Segundo,
os
processos
históricos
não
se deixam
fotografar
com
exatidão,
a
fim
de serem surpreendidos punctualmente.
Terceiro,
todo
fato
oriundo
da
língua
escrita
jamais
é
totalmente
representativo:
ele
reflete
apenas
tendências
que
se
vão
consagrando no
uso
diário,
de
modo
que,
quando
são
registradas na
escrita,
estão
temporalmente
em
desvantagem
ao
que
já
vinha
consolidado na
fala.
Esta,
mais
representativa, tem
natureza
fluidia, no
entanto;
é
um
processo
que
apresenta
tamanha
dinamicidade e
variedade
que
é
difícil,
senão
impossível.
Toda
datação
é,
quando
muito,
aproximativa. Podemos,
assim,
inferir
que
a transitivação das
formas
incoativas
já
vinha
germinando no
próprio
latim
antigo.
Ernout e
Thomas (1953) fornecem
alguns
curiosos
exemplos
de
verba
timendi,
atribuídos,
respectivamente,
a Virgílio e
Cícero:
·
exhorrescere vultus
(temer
o
que
se
mostra
no
rosto).
·
perhorrescere rem (temer
vivamente
uma
coisa).
A
título
de
mais
corroboração,
consultamos o
dicionário
de Sousa (s / d), de
onde
retiramos os
seguintes
exemplos,
em
que
se registram o
emprego
transitivo
dos
verbos
assuescere e insuescere:
·
assuescere mentem
(fazer
o
entendimento
acostumar-se).
·
insuevit pater optimus hoc
me
(meu
boníssimo
pai
acostumou-se a
isso).
Eis
outras
passagens
do referido
dicionário,
com
verba
timendi (talvez
por
influência
do
verbo
timere),
embora
os
exemplos
estejam truncados:
·
expavescere ensem.
(recear
a
espada).
·
expavescere gradus
(recear
o
passo).
·
pavescere bellum.
(recear
a
guerra).
Outros
exemplos
referidos
pelo
autor,
além
de truncados, encontram-se
fora
de
contexto
frasal:
·
desuescere
(desacostumar)
·
extimescere
(
recear).
Ao
generalizar-se a transitividade
para
as
formações
com
sufixo
–esc(ere), alomorfe de sc(ere), a
língua
vulgar
deu
expansão
a uma
tendência.
Em
vez
de
um
verbo
marcado
apenas
pelo
traço
[+
intransitivo],
podemos
ter
um
verbo
com
traço
[+transitivo].
Assim,
reconfiguram-se
plenamente
os papéis
semânticos
no
que
concerne ao
emprego
transitivo:
o
sujeito
pode
ser
agente
e
causador
e o
objeto
direto
ser
um
afetado.
Propiciam-se
assim
construções
como
estas
abaixo:
·
O
dia
escureceu.
·
A
lua
escureceu o
dia.
Formações denominais
em –are.
O
estudo do
sufixo –are,
nesta
secção,
só levará
em
conta a participação deste
elemento mórfico
em
formações derivacionais portadoras da
noção de tornar-se. O referido morfe será
tratado
como porte-manteau,
pois
comporta
natureza de
sufixo
lexical propriamente
dito e de
desinência. No
papel de
sufixo
lexical, concorre
para
enriquecer o
acervo
lexical,
semelhantemente a
qualquer
outro
afixo
final e assume
noções diversas. No
papel desinencial,
ele é o
responsável
por
enquadrar o derivado no
paradigma
verbal de
primeira
conjugação.
Outra
possível
caracterização é
postular
sufixação
zero,
que tem
amparo distribucional. No
contexto da
língua
latina, confrontando-se,
por
exemplo,
dois derivados,
como albare e albicare, optaríamos
pelas
segmentações: alb-Æ-are
e alb-ic-are. A
presença do
sufixo –ic imporia a
existência de uma
casa
vazia no
primeiro
exemplo.
Não seguiremos,
todavia, esta
orientação,
em
virtude de
não julgarmos
econômico postularmos
zeros, de
modo a
sobrecarregar a
descrição.
Isto
dito, apresentamos as
formações causativas
em –are, de
natureza denominal.
Formações causativas denominais
em –are.
Abaixo apresentamos
alguns derivados deadjetivais de
natureza causativa.
Adjetivos |
Verbos |
angustus, a,
um (estreito) |
angusto,
are (tornar
estreito) |
densus, a,
um (denso) |
denso,
are (tornar
denso) |
maturus, a,
um (maduro) |
maturo,
are (tornar
maduro) |
tenuis, e (tênue) |
tenuo,
are (tornar
tênue) |
Tais
verbos
participam de
construções
causativas,
mais
especificamente, de
oração
ação
/
processo,
como
estas
abaixo:
·
tenebrae oculos caecant. (As
trevas cegam os
olhos).
·
tenebrae noctem densant. (As
trevas adensam a
noite).
·
Imber agros viridat. (A
chuva enverdece os
campos).
O
sufixo –are
também se acrescentava a
substantivos formando
verbos
transitivos e causativos. Parece-nos
que as
formações ocorriam,
todavia,
em
escala
menor
que as
adjetivais. Exemplificamos:
Adjetivos |
Verbos |
fortuna,
ae (sucesso) |
fortuno,
are (dar
sucesso) |
sopor,
oris (sono
pesado) |
soporo,
are (
causar
sono
pesado) |
tenebrae, arum (trevas,
escuridão) |
tenebro,
are (fazer
ficar
escuro) |
torpor,
oris (torpor) |
torporo,
are (causar
torpor) |
Inserindo-se os derivados
em
sentenças
exemplificadoras, tem-se:
·
odium mentem soporat. (o
ódio entorpece a
razão).
·
Fessitudo eos torporavit. (A
fadiga os entorpeceu).
A incoativização dos
verbos causativos
Para
tornar os
verbos de
ação /
processo
verbos processuais, o
latim recorria a
formas de
natureza médio-passiva,
que,
como
todos sabemos, é mórfica
nos
tempos do infectum e perifrástica
com
esse,
nos
tempos do perfectum. Ilustremos:
Verbos
ativos |
Verbos
médio-passivos |
angusto,
are (tornar
estreito) |
angustor, ari (tornar-se
estreito) |
denso,
are (tornar
denso) |
densor, ari (tornar-se
denso) |
duro,
are (tornar
duro) |
duror, ari (tornar-se
duro) |
laeto,
are (tornar
alegre) |
laetor, ari (tornar-se
alegre) |
virido,
are (tornar
verde) |
viridor, ari (tornar-se
verde) |
·
homines pugnis laetantur. (Os
homens se alegram
com as
lutas).
·
Dies luna densatur. (O
dia se adensa
com a
lua).
Todavia, na
deriva do
latim
vulgar, os
morfemas de médio-passiva foram desaparecendo. As
formas
ativas foram,
paulatinamente, se prestando a
desempenhar o
papel de incoativas e, semanticamente, a
indicar o
caráter
afetado do
sujeito.
Não
nos interessa
aqui
mostrar
todo o percurso
por
meio do
qual
formas médio-passivas conflitavam no
uso
com
formas
ativas,
para
veicular processualidade. Interessa-nos
tão
somente
assinalar
que as
formas
ativas assumiram, no
final das
contas,
caráter incoativa, amparado
em
dois
parâmetros: 1. intransitivação do
verbo; 2.
sujeito
com
papel
semântico de
afetado.
Este é
um
entre
muitos
dados
que corroboram a
intensificação do analitismo
em
língua
vulgar.
O
emprego
também
intransitivo dos
verbos
em –are
nos é reportado
por Väänänen (1975:205,206). O
autor
finlandês aduz
exemplos
como: coagulare (coalhar e
fazer
coalhar); mutare (mudar;
fazer
mudar)
entre
outros,
que,
embora
não sejam denominais de
primeira, revelam
certa
reciprocidade
entre causatividade e processualidade,
como coquere (cozer;
fazer
cozer) e frangere (quebrar;
fazer
quebrar).
Um
outro
fato aludido
pelo
lingüista
finlandês
concerne à
disseminação
um
tanto
irregular da
forma se,
para
expressar
voz
média. Atentemos
para
esse
trecho
que Väänänen
(1975:205) retirou de Quirão e de Plínio,
respectivamente:
·
cum cicatrices se
clauserint (quando
as
feridas se
fecharem).
·
Myrina quae Sebastopolim se vocat
(Myrina
que se
chama Sebastopólis).
Podemos
resumir o
que se passou
com os denominais
em –are,
conforme o
seguinte
esquema:
1. [(X)Nare]V
/ [(X)Nari]V (causativa X incoativa);
2a. [(X)Nare]V
/ [(X)Nare]V (causativa X incoativa,
conforme transitividade);
2b. [(X)Nare]V
/ se[(X)Nare]V. (causativa X incoativa,
conforme transitividade).
Considerações
finais
Nosso
trabalho constitui uma
tentativa
parcial de
mostrar,
com
certos
grupos de
verbos,
em –sc(ere) e –are,
como se engendraram as
relações
frasais de processualidade e causatividade.
Rigorosamente,
este
artigo contribui
para
que estudemos o
processo
mais a
fundo,
tanto no
âmbito do
latim
clássico, do
latim
vulgar e do
português
antigo,
porque, reconhecemos, as
coisas merecem
um
tratamento
que transcenda o
esqueleto
diretivo
que apresentamos.
Além disto, muitas
indagações afloram,
entre
elas: a)
por
que
ora o
emprego
com o se,
ora o
emprego
sem
ele,
que dá
lugar,
em
vernáculo, a
formas
em
que o
pronome é
facultativo,
obrigatório
ou
ausente?; b) dependendo da
resposta à
pergunta
anterior,
qual o
papel do
morfema se?; c)
que
relação se pode
estabelecer
entre a
voz
média
em
latim e a deponência
verbal? Neste
último
caso, a
resposta
não é
tão
simples. Há
casos
que mostram a
isenção de
responsabilidade
pela
omissão do
sujeito,
que seria, provavelmente, de
caráter
geral,
como
em pugnatur (luta-se) e curritur
(corre-se),
em
que os
morfemas
não têm
uso médio-passivo,
mas
um
aspecto desta diátese,
já
destacado, a
isenção de
responsabilidade.
Todavia, na deponência, há
verbos
por
explicar,
como sequor (sigo), de
sentido nitidamente
ativo,
pelo
menos
para
nós
tão
distantes no
tempo.
Um
outro
aspecto a estudar-se é se
a
voz
média
em
português –
bem
como a
causativa –
são
efetivamente
relacionadas. A
resposta a
esta
indagação
levar-nos-á a
postular duas
entradas
lexicais,
ou uma
única
entrada,
configurando-se,
respectivamente,
homonímia
ou polissemia.
Por
fim,
resta
investigar as referidas
vozes
como de
base
discursiva, precipuamente,
ou, de
base
formal, sendo,
neste
caso,
sub-aspectos da
voz
ativa.
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vulgar. Madrid: Gredos, 1975.
Gracias a su expresividad y a su unidad de acentución en el
presente,
esta formación ha conocido
una
suerte
próspera.
Por
una
parte,
esta categoría se ha estendido a los
transitivos:
assuescere, insuescere ‘acostumbrar”
desde
el latín antiguo; en bajo latín augescere ‘aumentar’
( = augere), innotescere “dar
a conocer”.
Cette formation en –sco a
eu
une fortune considérable en latin. Dans la langue vulgaire, elle servit à
créer non seulement des intransitifs,
mais
encore des causatifs à
sens
transitif; ainsi au Ve siècle après J.C. on trouve innotescere
“faire connaître”, mollescere “amollir”.