CANTIGA Nº 203 (CBN. 1486; CV. 1097),
de Joan Garcia de Guilhade
SINTAXE
E
SEMÂNTICA
NA
semiótica
DE a. j. A. GREIMAS
Alzira Facco
Saturnino
(UEMS e UNESP)
Greimas,
segundo Bertrand (2003: 53), define a
explicação tradicional de
textos
como sendo a explicitação
parcial das
estruturas (...),
desmistificação
que consiste
em
reduzir o
nível figurativo do
texto a
seu
nível
conceitual. A
exigência da
análise
concreta na
leitura desse
nível prioriza o
discurso,
que desencadeia a
formulação da
problemática. A
partir de
então, relevamos a multiplicidade de isotopias
figurativas
que se cruzam,
bem
como as
posições e as
funções
variáveis do(s)
sujeito(s) da
narrativa
que o
discurso vestiu. Entendemos,
portanto,
um
complexo de
valores surgidos dos
planos de
expressão e de
conteúdo,
mais enfaticamente deste,
que
marca no
texto o
andamento e a aspectualidade da significação
em
seus
processos
semânticos e
sintáxicos,
para
gerar
sentidos
pertinentes a isotopias das
leituras selecionadas.
Desta
forma, examinamos na
cantiga,
através de algumas
pistas de
análise,
possíveis
pelo
levantamento dos
campos
lexicais e
semânticos, da
coerência
narrativa e do percurso gerativo de
sentido, preconizado
por Greimas e,
todo o
processo narrativo / discursivo e,
essencialmente, figurativo da
construção dos
sujeitos: “poeta
trovador (pressuposto, enunciador, S1 e S3)” e “dona
fea” (enunciatário, S2) e
suas
ações. Verificamos,
portanto,
nos
enunciados do
texto,
aspectos
que
nos remetem aos
seus
comportamentos,
verdades,
realidades,
ideologias, intencionalidades,
enfim,
aspectos
que
nos evidenciam modalizações desses
sujeitos de
estado no
que tange ao /
ser / e /
fazer / ,
que constituem a complexidade enunciativa,
mesmo
parcialmente observada, do
discurso.
Na
cantiga, as
evidências, pressupostamente, explicitam uma
falta (ou
dívida)
que o
poeta
trovador (isotopia
gregária) sente
com
relação ao
seu /
fazer / (cantar as
belezas existentes
nos
seres).
Em outras
palavras, estudamos a isotopia
Beleza
em
oposição à
Feiúra; aquela, representada
pela
categoria
semântica da
Louvação (ou,
fazer
um
cantar)
para
destacar as
características do
sujeito “dona fea”
em
oposição ao objeto-valor (Ov) do
poeta,
que é a
beleza, a
que gera a
inspiração do
poeta
para
compor e
cantar a
composição.
Assim, a
inspiração estimula o /
fazer / do
poeta,
que se
torna
competente
para
compor a
cantiga e,
conseqüentemente, cantá-la
para o
sujeito
destinatário e, simultaneamente,
para o
mundo.
Por se
tratar de
um
texto enfaticamente narrativo,
não podemos
deixar de
destacar,
com
primazia, as
ações
tanto do
sujeito
poeta
quanto do
sujeito “dona fea”,
isto é o /
fazer / dos
sujeitos actantes,
bem
como
evidenciar a temporalidade (como
temporalização) do
discurso, marcada
por
esse /
fazer / e
pela actoralidade dos
sujeitos
que compõem a narratividade do
texto,
pois,
são
esses os
recursos
que contribuem
para a
ocorrência do
fato:
cantar
para “dona
fea”.
O texto-poema
CANTIGA Nº 203. (CBN. 1486; CV. 1097)
Ai,
dona fea,
foste-vos queixar
que
vos
nunca louv(o)
em
meu
cantar;
mais
ora quero
fazer
um
cantar
em
que
vos loarei
toda
via;
e vedes
como
vos quero
loar:
dona fea,
velha e
sandia!
Dona fea, se
Deus
mi pardon,
pois avedes (a) tan gran
coraçon
que
vos
eu loe, en
esta razon
vos quero
já
loar
toda
via;
e vedes
qual será a
loaçon:
dona fea,
velha e
sandia!
Dona fea,
nunca
vos
eu loei
em
meu trobar,
pero
muito trobei;
mais
ora
já
um
bom
cantar farei,
em
que
vos loarei
toda
via;
e direi-vos
como
vos loarei:
dona fea
velha e
sandia!
Joan Garcia de Guilhade
TRADUÇÃO
Ai,
senhora
feia,
foste-vos queixar
porque
nunca
vos louvo
em
minhas
cantigas
mas
agora quero
fazer
um
cantar
em
que
vos louvarei,
todavia;
e vede
como
vos quero
louvar:
senhora
feia,
velha e
louca.!
Senhora
feia,
assim
Deus
me perdoe,
pois tendes
tão
bom
coração
que
eu
vos louvo, e
por esta
razão
eu
vos quero
louvar,
todavia;
e vede
qual será a
louvação:
senhora
feia,
velha e
louca!
Senhora
feia,
eu
nunca
vos louvei
em
meu
trovar,
mas
muito
já trovei;
entretanto,
farei
agora
um
bom
cantar
em
que
eu
todavia
vos louvarei:
e
vos direi
como louvarei:
senhora
feia,
velha e
louca!
Evidenciamos
que,
por
meio da temporalização
explícita na
narrativa, ocorre uma
certa continuidade do
fato,
negativamente acentuado
pelo
sintagma
verbal “foste-vos queixar”,
que evidencia uma anterioridade do
fato “não
louvar”; dos
advérbios “nunca”, “agora”
(“ora”),
que denota o
presente, e o
início da transformação da “não
louvação” à “louvação”,
realizadas
pelo
sujeito enunciador “poeta” (pressuposto),
marcada
pelo
sintagma
verbal “vos loarei”
(louvarei)
que
nos remete a
um
futuro
certo,
pois se apresenta no
modo
indicativo no
tempo
futuro
presente.
Existem,
ainda, na
narrativa,
muitos
elementos
que evidenciam a temporalização. Observemos o
quadro
abaixo
onde buscamos
registrar o
tempo da narratividade
que ocorre no(s)
fato(s)
entre os
sujeitos: “o
poeta
cantador” (S1 e S3) e “dona
fea” (S2),
que
por
um
processo de
manipulação, faz
com
que o S1 seja
competente à
performance do
cantar
para
ela, transformando
em
sujeito S3.
QUADRO
1. - A temporalização na
cantiga
de nº 203 (CBN 1486; CV. 1097)
Passado
(anterioridade) |
Presente
(concomitância) |
Presente
(continuidade) |
Futuro |
Foste queixar |
Nunca
louv(o) (passado,
presente e
futuro) |
Nunca
(não
o faço
ainda) |
|
Nunca
(em
momento
algum)
vos
eu
loei |
Nunca
vos
louvo |
|
|
Muito
trobei |
Ora
(agora)
quero |
|
loarei (loarei) |
|
vedes |
|
quero
louvar |
|
tendes |
|
Deus
mi
pardon |
|
loe (louvo) |
|
farei |
|
quero
já
loar |
|
loarei |
Contudo,
além de evocarem a temporalização, os
verbos marcam, prioritariamente, a
ação dos
atores
com
relação ao objeto-valor (Ov) desejado e a
realização da
aquisição desse Ov (o
loar
para
Dona fea).
Conforme podemos
observar no
quadro
acima, temos, na
narrativa da
cantiga, enfaticamente preterido, o
tempo
presente,
que denota o
estado de transformação do S1 (então
destinatário da
manipulação do S2),
entre
um / não-fazer / e
um /
fazer / a
louvação
para
esse
sujeito (destinatário, “dona
fea”). Desta
forma,
já temos
em
mãos o
programa narrativo (PN)
básico
que
conta a transformação do S1,
onde explicita
um percurso de significação
que
nos remete, figurativamente a:S1
Ov (loaçon) desejado
pelo S2.
Assim, o S2 está
em
disjunção a
esse Ov (S2 U Ov),
que, num
primeiro
momento,
não tem
competência
para obtê-lo,
em
vista de
precisar de fazer-se
bela,
contraponto de “fea”.
Contudo, o S1 pressupõe
que
precisa
executar
um /
fazer / (o
cantar
para
Dona fea),
possível
pela
competência desse
sujeito
em
ver a
beleza do S2
sob
outro
aspecto, o da “bondade”, marcado
pelo
sintagma
verbal “avedes (a) tan gran coraçon”.
Para explicitarmos
todo o
processo de transformação de
estado do S1, abordamos a
teoria
semiótica greimasiana,
que preconiza a
leitura da narratividade
em
etapas
que se estruturam
sob o
aspecto de
um percurso gerativo do
sentido,
conforme
mostra o
quadro
abaixo.
QUADRO
2.- Percurso gerativo da significação (Greimas)
|
Sintaxe
Fundamental
Semântica
Fundamental |
Estruturas
Sêmio-narrativas
FORMA
DO
CONTEÚDO
|
Relação
entre
semas
Quadro
semiótico articulado
Relação
entre
sememas
/
sintaxe /
|
(Paradimático)
Inventário
de
categorias
sêmicas
Axiologia
Valores
(morais,
políticos,
sociais)
Sememas
antes
de
combinarem-se
entre
si.
/
morfologia
/ |
Estruturas
Sêmio-narrativas
Superficiais
|
|
|
sintaxe
narrativa
de
superfície
=
actantes: destinador,
objeto,
sujeito
PN (Programa
Narrativo)
M C P S
Substância
do
Conteúdo
|
|
Estruturas
Discursivas
Sintaxe
discursiva
Semântica
discursiva
O
ATOR no
TEMPO
e no
ESPAÇO
DISCURSIVIZAÇÃO
FIGURA
(papel
temático
+
papel
actancial) e
TEMA |
As
duas primeiras
estruturas
são analisadas
textualmente
em
dois
níveis de
profundidade superpostos (o
profundo e o
superficial,
ou,
fundamental e o narrativo,
respectivamente). Essas
estruturas, denominadas sêmio-narrativas,
constituem o
nível
mais
abstrato do percurso gerativo e se apresentam
pelos
componentes
sintáxico e
semântico.
As
estruturas discursivas, “menos
profundas,
são encarregadas de
retornar as
estruturas
semióticas de
superfície e de colocá-las
em
discurso”, fazendo-as
passar
pela
instância da
enunciação (Greimas
& Courtés 1979: 208).
Com a textualização,
enquanto
disposição
linear da temporalidade e espacialidade, o
discurso pode
intervir a
qualquer
momento do percurso gerativo
com
seus
componentes figurativos
ou não-figurativos, a
fim de
explorar o
sentido do
enunciado, e transformá-lo
em
discurso.
Essa transformação é
possível
por
meio da
sintaxe discursiva,
que se constitui pelas
estruturas
narrativas da actorialização, temporalização e
espacialização, e,
por
meio da
semântica discursiva,
com
sua tematização e figurativização,
que produzem os
discursos
abstratos
ou figurativos.
Esses
discursos
são considerados no percurso gerativo de
sentido,
como a
forma semanticamente
mais
concreta e sintaticamente
mais
fina das
articulações da significação (Greimas
& Courtés,1979: 208).
Por
sua
vez, a textualização,
que entendemos
ser a tematização constituída
em problematização, e a
manifestação do
discurso fazem
com
que
esse percurso torne-se uma
construção
ideal,
independente das
línguas
ou
mundos
naturais
em
que o
enunciado se apóia
para investir-se e manifestar-se
em
discurso.
Em
síntese,
para
construir o
sentido do
texto, a
semiótica concebe o
seu
plano do
conteúdo
sob a
forma de
um percurso gerativo (Barros,
1990: 8),
que se desenvolve
em
três
patamares
básicos de
análise: o
fundamental,
que determina a
oposição
ou
oposições,
onde as
oposições
semânticas
fundamentais assumem
valores a
um
sujeito,
que circulam
entre
sujeitos,
em
vista de se
afirmar
ou
negar
conteúdos neles
expressos
ou
implícitos; o discursivo,
que verifica as
relações
que se instauram
entre a
enunciação (responsável
pela
produção e
comunicação do
discurso) e o texto-enunciado. Neste
patamar, as
oposições
fundamentais
com
seus
valores narrativos apresentam-se
sob a
forma de
temas e /
ou
concretizam-se
por
meio de
figuras.
Segundo Greimas (1975: 149), a
análise estrutural de
um
texto poético
busca
explicar o
efeito de
sentido
que se
encontra na
origem de
sua
percepção
emotiva.
Através da
aparente
obscuridade da
exposição sintagmática, oferece
ela a possibilidade de
descobrir a
coerência e a
clareza de
sua
organização paradigmática,
tal
como se
manifesta
em
todos os
níveis ao
mesmo
tempo: fonêmico,
gramatical,
semântico,
prosódico.
Portanto, ao
empreender uma
análise de
um
texto
literário, Greimas (1975: 150) preconiza
que, seja
qual for o
gênero, o
texto constitui-se
em
sistema fechado
sobre
si
mesmo, co-expressivo a
seu
próprio
grupo de transformação. Enfatiza
que, ao
contrário do
romance,
que
toma
seu
tempo e no
qual a
composição se
vê privilegiada
em
detrimento dos
outros
planos,
cada
obra
poética, voltada
para
si
mesma, atua
em
todos os
planos ao
mesmo
tempo: fônico,
gramatical,
semântico,
prosódico,
entre
outros
possíveis.
Para Greimas,
submeter
um
poema à
análise estrutural equivale reconhecê-lo
como
discurso de uma
linguagem
em
segundo
grau,
que reorganiza o
significante e /
ou o
significado (ibidem,
p. 150).
Assim, esquematiza esta
linguagem da
seguinte
forma, observando as transformações pelas
posições das
flechas:
A
segmentação
textual é uma
estratégia de
leitura
que Greimas & Courtés (1979: 390) preconizam se
constituir na
primeira
etapa do
estudo
analítico
com o texto-discurso, e se
realizar nas
partes
menores do texto-objeto.
Apesar das
dificuldades
que a
segmentação do
texto da
cantiga
nos apresenta,
em
vista de
estar num
plano de
expressão
verbal
complexo, a
abordagem ao
sentido
feita
em
partes possibilita-nos a
percepção
distinta das modalizações de
estado
ser /
parecer e as de /
fazer / (manipulação,
competência,
performance,
sanção) dos
sujeitos envolvidos e as
relações
euforia / disforia
entre
elas, permitindo-nos,
conseqüentemente, uma
visão do
conjunto e da
estrutura
global do
discurso,
que
nos faz
compreender as
premissas norteadoras da
leitura do
discurso.
Existem
vários
critérios
que fazem a
organização da
segmentação dos
elementos a serem analisados;
contudo, asseveramos a
sugestão de Greimas (1993: 19),
em recorrermos, de
início, aos
critérios
referentes à temporalidade e à espacialidade,
presentes
em
todo
discurso
pragmático,
por relatarem
acontecimentos
ou
fatos
que marcam, no
texto, os
aspectos espácio-temporais,
que possibilitam a narratividade ao
texto. A
cantiga de
estrutura
pragmática
narrativa permitiu-nos
trabalhar
com os
recursos especificamente
textuais
lingüísticos estilísticos
como:
léxico
preciso
que
fala
por
meio de
metáforas,
metonímias,
hipérboles,
entre outras
figuras de
linguagem (elementos
da
expressão) e
elementos da
organização
textual
quanto à
forma, constituída
por
versos e
estrofes
que explicitam
um
discurso
direto
entre os
sujeitos,
poeta e
dona
feia,
para
vestir os
planos de significação (expressão
e
conteúdo)
que, combinados, evocam o
plano de
manifestação e,
conseqüentemente, o discursivo.
Na
cantiga,
por
exemplo, temos
com
relação ao
léxico
preciso os
adjetivos “fea,
velha e sandia”
para
possibilitar, necessariamente, a
descrição do Ov
que promove a
busca do S1 e S2. Temos
também a
expressão metafórica “gran coraçon” e hiperbólica
“tan gran coraçon”
que gera a transformação do S1
em
um
outro
sujeito (S3)
que aceita /
fazer / a “loaçon”
para “dona féa”.
No
nível discursivo, os
critérios
que enfatizam a
disjunção actorial,
temporal e
espacial possibilitam-nos a
apreensão do
texto
como
um
todo,
pois fundamentam-se nas
oposições e /
ou
diferenças
que promovem o pressuposto e o
implícito, identificados
por
meio do
posto,
nos
enunciados nocionais do
texto. Neste
caso, temos o
elemento “fea”
que se opõe à “beleza (pressuposta
pela
expressão “tan gran corazon”)
ou
oposição
gregária “beleza
física” x
feiúra e “beleza
física” (externa
e
concreta) x “beleza
espiritual” (interna
e
abstrata).
A
segmentação
textual
para a
leitura
semiótica da
cantiga
estruturou-se
conforme o
seguinte
esquema:
1.
Introdução –
1ª
estrofe
Ai,
dona
fea, foste-vos queixar
mais
ora
quero
fazer
um
cantar
em
que
vos
loarei
toda
via;
e vedes
como
vos
quero
loar:
dona
fea,
velha
e sandia!
Explicitamente
introdutória
do
discurso,
essa
estrofe
utiliza-se à
composição
do
sentido
expressões
sintaticamente dialógicas do enunciador (interlocutor)
com
o enunciatário (interlocutário),
em
que
já
de
início
inicia a
narrativa
expressando os
seus
elementos
básicos:
temporalidade (passado,
presente
e
futuro),
actoralidade (“Dona
fea” (enunciatário-interlocutário) e o
poeta
trovador
(enunciador-interlocutor); a
ação
(“queixar, louv(o),
cantar,
loarei),
para
dinamizar
o discursivo.
2.
Desenvolvimento
–
composto
pela
2ª
estrofe
e
pelos
4
primeiros
versos
da 3ª
estrofe.
Dona fea, se
Deus
mi pardon,
pois avedes (a) tan gran
coraçon
que
vos
eu loe, en
esta razon
vos
quero
já
loar
toda
via;
e vedes
qual será a
loaçon:
dona fea,
velha e
sandia!
em
meu trobar,
pero
muito trobei;
mais
ora
já
um
bom
cantar farei,
em
que
vos loarei
toda
via;
Constituído de
figuras
de
linguagem
que
denotam a transformação do
Sujeito
de
estado
(S1) a
um
/
parecer
/ condoído
pela
falta
que
cometera o
sujeito
de
fazer
(S1
antes
da transformação).
Na 2ª
estrofe
ocorre, implicitamente
em
oposição
ao
termo
“fea”, a
categoria
semântica
Beleza
(elemento
que
representa o Ov “inspiração”
do S1, obviamente
como
recurso
expressivo
para
estimular
a
produção
da
louvação,
ou
seja, a
composição
de
um
canto
para
o S2 (dona
fea).
Para
tanto,
o S1 transforma o
conceito
de “beleza”
à significação “bondade”
explícita
na
expressão
“avede (a) tan gran coraçon”,
que,
a
nosso
ver,
denota
como
a
um
clichê
que
evidencia “um
ser
compreensivo,
bom,
solidário,
confiável,
amável,
entre
outros
aspectos
que
descrevem uma
pessoa
muito
bela
espiritualmente).
Nesta
estrofe
também
aparece a
categoria
semântica
do
arrependimento,
denotada
pelo
sintagma
verbal
“se
Deus
mi
pardon”,
expressão
que
denota a
falta,
ou
seja, o
não
reconhecimento
de outras
belezas
identificáveis num
sujeito
feio,
velho
e
louco
(fea,
velha
e sandia). Estas
idéias
(belezas
identificáveis)
são
reforçadas
pelo
sintagma
verbal
“que
vos
eu
loe, en esta razon”.
Na 3ª
estrofe, o S1 descobre a
importância da
louvação à “dona fea”
tanto
para o S2
quando
para
ele
mesmo (S1),
pois será uma
cantiga
diferente das
que tem
feito: “Dona fea,
nunca
vos
eu loei /
em
meu trobar, pero
muito trobei;” e, qualifica-a “mais
ora
já
um
bom
cantar farei,”;
entretanto,
reforça a
sua
ideologia de “beleza” ao
reafirmar (inclusive
como a
um
refrão)
que explicitará
em
seu
discurso
que a
musa da
sua
inspiração
para aquela
cantiga é “fea,
velha e sandia”,
mas
ela “avede (a) tan gran coraçon”.
3.
Como
conclusão,
tanto das
estrofes
como da
narrativa da
cantiga, ocorre,
conforme
já
dito
como a
um
refrão
em todas as
estrofes, os
versos, “e vedes
como
vos quero
loar: /
dona fea,
velha e sandia!” (1ª
estrofe); “e vedes
qual será a loaçon: /
dona fea,
velha e sandia!” (2ª
estrofe), e, “e direi-vos
como
vos loarei: /
dona fea
velha e sandia!” (3ª
estrofe); denotadores de
estado do S1
em
que explicita a transformação do /
parecer /
para o /
ser /
em
oposição ao /
não
parecer /
para o /
não
ser /
trovador de “dona
fea”.
São
versos
que reafirmam a
falta,
mas
não
sua
permanência da “loaçon”,
como
também a
postura do
trovador
diante da
problemática:“ter
que
compor uma
cantiga
para “dona fea” (S2) da
narrativa,
pois esta é o Ov deste
sujeito actante.
As
estrofes 2ª e 3ª denotam
dois
programas narrativos
nucleares do
sujeito x anti-sujeito (S1 e S3,
respectivamente);
logo, explicitam-se nelas
dois percursos narrativos
cujos Ov
são,
respectivamente, a
louvação e a
inspiração (a beleza-bondade) do
poeta
trovador (Sujeito do /
fazer / ).
Esses
programas narrativos instigam as intencionalidades
do
trovador
sobre a
compreensão de
como “loar”,
ou seja, “ter
que
fazer”
para
compor a
cantiga.
Desde a
introdução, a
cantiga é
essencialmente
um
diálogo
direto
livre
entre
dois
protagonistas:
sujeitos do /
ser / e do /
fazer / (destinador /
interlocutor e
destinatário / interlocutário).
Contudo, há uma
certa subjetividade,
em
discurso
direto,
que
são envolvidos
outros
sujeitos
como a
simultaneidade de
postura do S1 e
seu
modo de
pensar, marcado
pela
repetição de
como louvará “dona
fea”.
Entretanto,
para
chegarmos ao
entendimento
desses
contrapontos,
iniciamos a
leitura
da
cantiga
pelas
estruturas
sêmio-narrativas
em
que,
por
meio
da
sintaxe
e da
semântica
narrativas,
procuram
explicitar,
sintagmaticamente, os
programas
narrativos (PN) dos
sujeitos
(S1, S2 e S3) constituídos de
um
enunciado
de /
fazer
/
que
rege
um
enunciado
de
estado,
representados pelas
formas
descritas a
seguir:
PN = F [S1
(S2 Ov)
PN = F [S1
(S2 Ov) S3
onde: F =
função;
S1 =
sujeito de
fazer (poeta
trovador);
S2 =
sujeito de
estado (dona fea);
S3 =
sujeito de
estado e de
fazer (poeta
trovador
transformado)
O =
objeto (suscetível de
receber
um
investimento
semântico
sob a
forma de v =
valor)
Ov = objeto-valor
=
enunciado de
fazer
( ) =
enunciado de
estado
=
função
fazer (resultante de
conversão da transformação).
=
função (conjunção
ou
dispersão)
que indica o
estado
final, a
conseqüência do /
fazer / .
A
função /
fazer / é representada pleonasticamente
pelos
dois
símbolos: F e
.
Greimas & Courtés (1979: 52) explicitam
que as
descrições e os
modelos
são
possíveis
pela
formulação
conceptual,
através da
análise
semântica
comparativa, dos
elementos envolvidos no
texto,
que denotam
conceito
exaustivamente interdefinidos
para
garantir a
sua participação na significação do
enunciado e do
texto.
Entendemos
narrativa
como o
discurso de
caráter figurativo,
que se constitui de
personagens
que realizam
ações, inscritas
em
coordenadas espácio-temporais. Na
concepção propiniana,
narrativa é
como uma
sucessão
temporal de
funções (no
sentido de
ações) (Greimas
& Courtés, 1979: 297),
que promovem a dinamicidade dos
elementos
que comportam essas
funções, internas no
dito
em
curso.
Assim, concebida
como figurativa e
temporal, a
narrativa define-se
simples,
que pode
ser reduzida a uma
frase analisável
como a
passagem de
um
estado
anterior a
um
estado
posterior, possibilitada
pela
operação de
um /
fazer / (ou
processo);
conseqüentemente, a
narrativa
simples
passa a
gerar
um
programa narrativo.
Greimas & Courtés (ibidem, p. 294) asseveram
que, no
nível das
estruturas discursivas, “a
narrativa designa a
unidade discursiva, situada na
dimensão
pragmática, de
caráter figurativo, obtida
pelo procedimento de debreagem enunciativa”.
Entendemos,
portanto,
coerência
narrativa, os
elementos do
enunciado
que se relacionam conceptualmente num
determinado
tempo e
espaço, marcados pelas
ações enunciativas (promovidas
pelos actantes da
enunciação) e registradas
pela debreagem enunciva.
Na
cantiga, a
coerência
narrativa se faz
presente
desde o
vocativo “Ai,
dona fea,”,
por se
tratar de
um
recurso
que denota o
diálogo
entre
personagens, no
caso, o
trovador e
sua
inspiração (“dona fea”, denotando
a
falta
pela
presença da
interjeição “Ai”
que
comporta
um
conjunto de
significados
como o sofrimento, a
dor, o
pesar, a
necessidade do
perdão,
entre
outros).
Conforme pudemos
observar nas
explanações
acima,
em
semiótica,
sintaxe e
semântica
são
elementos congruentes na
geração do
sentido. A
lógica concebe
sintaxe
como a
que se preocupa
em
descrever as
relações
que estabelecem os
elementos constitutivos da
palavra, da
frase,
por
meio de
regras de
construção. A
semiótica preconiza
que o
estatuto de uma
sintaxe
não pode
ser
determinado
senão
em
relação à
semântica (ibidem,
p. 431),
pois,
enquanto, a
primeira é elaborada
sem nenhuma
referência à significação, a
segunda,
que se preocupa
com a
sintaxe
conceptual, reconhece as
relações sintáticas
como
significantes (como
pertencentes à
forma do
conteúdo),
mesmo se
são abstratas e assimiláveis as
relações
lógicas (ibidem,
p. 431).
Mas, as duas
sintaxes (a
formal e a
conceptual) tratam do
estudo da
sintaxe da
frase, verificando-lhe as
combinações, as
substituições e as
equivalências
que ocorrem na
unidade sintagmática.
Contudo, ao
direcionar a
leitura do
sintagma, da
frase à narratividade, a
sintaxe
conceptual (ou
semiótica) explicita
organizações sintagmáticas
mais amplas,
pois, nessa
concepção, a uma
frase de
superfície, podem
corresponder duas
ou
mais
frases de
nível
profundo.
A
análise dessa
cantiga se fez
por
meio da
verificação da
sintaxe
em
concomitância
com a
semântica, a
fim de
enfatizar uma
visão acuidada de
como os
sujeitos e
objetos
são concebidos no percurso
com
seus
respectivos
valores
em
relação aos
sujeitos
que atuam na
narrativa do
texto.
Vale
relembrar
que a
construção do
sentido
sob a
forma de percurso gerativo concebe o
plano do
conteúdo
em duas
estruturas básicas:
além das sêmio-narrativas (profundas e
superficiais) explicita
também as
estruturas discursivas. As sêmio-narrativas atuam
com o
conteúdo
enquanto “significado”
constituído de “substância e
forma”, e, a discursiva,
com a “substância do
conteúdo”.As sêmio-narrativas profundas (nível
fundamental),
que é o
abstrato, alicerçam o narrativo; é
onde ocorre a significação
como uma
oposição
semântica
mínima,
para
fazer
germinar outras
oposições
semânticas
que constituirão o
sentido do
texto.
Nessa
cantiga de Guilhade, a
categoria
semântica
fundamental é
Feiúra x
Beleza. A “feiúra” manifesta-se,
no
texto, de várias
formas
como: “dona fea”, “velha”
“sandira”, “se
Deus
mi pardon”, “todavia”,
“como
vos quero
loar”, “qual será
a loaçon”, “como
vos loarei”. Essa
categoria é
determinada
como
negativa
ou disfórica
para os
sujeitos “poeta
trovador” (S1), “poeta
trovador (transformado) (S3) e “dona
fea” (S2) e,
ora
eufórica (positiva)
ora disfórica (negativa)
para os
sujeitos (1 e 3). O
conceito de
Beleza
para o S1 é disfórica
tanto
para o S2
como
para o S3. O
primeiro está disfórico
porque vive na
verdade, no /
ser / “fea”
em
oposição ao / não-ser /
bela
para
estimular o /
fazer / do S1, e,
para o
segundo (S3),a
beleza é disfórica
porque vive na
mentira, na
ilusão do
parecer / não-ser
solidário
com o
primeiro
sujeito,
como
também
porque vive, pressupostamente, numa
verdade de
beleza transformada
quanto às
características
que a constituem.
Assim transformada, a
Beleza se faz
eufórica
tanto
para o S2
quanto
pra o S3,
como
também se faz
eufórica a “feiúra”
para os
três
sujeitos (1, 2 e 3). No
quadrado semiótico
que denota a
relação
entre semas temos:
Além dessas
relações, ocorre nesse
nível
um percurso
que
entre essas
categorias: da
Feiúra (eufórica) à
Beleza (disfórica), os
sujeitos da narratividade passam
pela não-feiúra (ou
beleza
ilusória),
ou
estado
transitório (não-euforia)
entre
Feiúra x
Beleza (transformada).
A
negação da
Feiúra aparece na
cantiga,
sobretudo, no
clichê “tan gran corazón”,
conteúdo
mínimo
fundamental à
negação da
feiúra
ou a
presença da
beleza
ilusória,
sentidos
como
eufóricos, e, a afirmação da
beleza disfórica.
Assim temos, o
sentido de
Beleza transformado
pelo
clichê
para “bondade”. Observemos o
raciocínio
lógico da transformação
com
relação aos
sujeitos (2 e 3):
Assim, no
segundo
nível, o das
estruturas sêmio-narrativas
superficiais, o
elemento das
oposições
semânticas
fundamentais assume
valor
pelo S1, transformado
em S3, representado
pelo Ov, pressuposto, “bondade”pertencente
ao S2. (S2 Ov (beleza-bondade).
Esse
valor,
para o S3,
em
contraponto ao
valor (Beleza) do S1, trabalhado
sob a
forma de
oposição determina, pressupostamente, a
narratividade dos
estados e
fazeres desses
sujeitos (S1 e S3).
Com
relação às
funções de /
fazer / do S3, figurativamente temos:.
S1
(poeta enunciador –
sujeito do
fazer); S2 (dona fea –
sujeito de
estado); S3 (poeta
trovador transformado); Ov1 (objeto-valor do S1 –
beleza x
feiúra); Ov2 (Objeto-valor do S2 –
bondade); Ov3 (Objeto-valor do S3 –
beleza (bondade) x
feiúra); S2
Segundo
Barros (1990: 16),
A
sintaxe
narrativa deve
ser pensada
como
um
espetáculo
que simula o
fazer do
homem
que transforma
o
mundo.
Para
entender a
organização
narrativa de
um
texto, é
preciso,
portanto,
descrever o
espetáculo,
determinar
seus
participantes e o
papel
que
representam na historiazinha
simulada.
Para essa semioticista, a
partir dessa
concepção de
sintaxe, concebe
narrativa
como
mudança de
estados, operada
pelo
fazer
transformador de
um
sujeito
que age no e
sobre o
mundo
em
busca dos
valores investidos
nos
objetos,
como
também a concebe portadora da
sucessão de
estabelecimentos e de
rupturas de
contratos
entre
um destinador e
um
destinatário, de
que decorrem a
comunicação e os
conflitos
entre
sujeitos e a
circulação de
objetos. O
enunciado da
sintaxe
narrativa identifica-se,
portanto,
pela
relação de transitividade
entre
dois actantes (sujeito e o
objeto)
que define os
laços desses
elementos
entre
si. As
relações (ou
funções) transitivas se manifestam
por
meio de
junção e transformação, a
fim de
diferenciar os
estados e as transformações do
sujeito
em
relação ao
objeto.
Conforme
observamos, as
operações
sintáxicas,
também
chamadas
de transformações, mostram-se
pelos
estágios
de “negação”
e “asserção”.
A
negação
explicita
termos
contraditórios;
a
asserção
reúne-os, situando-os no
eixo
dos
contrários
e no
eixo
dos subcontrários.
Assim,
esta
sintaxe
é
totalmente
relacional e, simultaneamente,
conceptual
e
lógica.
Esta
sintaxe,
para
constituir
uma
oração,
combina o
predicado
a uma
série
de
argumentos,
ou,
une
um
verbo
de
ação
a
um
sujeito
agente
que
age
sobre
um
objeto
ou
sujeito
paciente;
assim,
a
oração
manifesta
uma ação-processo.
Esse
esquema
relacional, dotado de
um
conteúdo,
pode
receber
diversos
investimentos
semânticos.
S1 → S2 Ft = (S1 ∩ S2) → S1 = S3
S1 –
poeta
trovador
S2 –
dona
fea
S3 –
sujeito
de
estado
(S1 transformado
em
trovador
de
dona
fea)
Ft –
função
transformadora
∩ –
conjunção
→ -
transformação
Contudo,
vale
destacar
que
ocorrem no
texto
elementos
que
denotam a não-transformação de
dona
fea
em
portadora de
beleza
física.
Para
demonstrar
essa não-transformação,
ou
seja, o S2 continua a
ser
“fea”
para
o S1 e
para
o S3, podemos
observar
nos
versos
que
finalizam as
estrofes
do
poema
como
a
um
refrão,
marcando
assim
a continuidade do
fato
permanente
“ser
fea” reafirmando,
também,
o Ov do S1 (a
busca
da
beleza
física
para
louvar
(compor
e
cantar
versos).
O Ov (loaçon) apresentado nesta
categoria
é
virtual
para
o S2,
porque
sendo “fea,
velha
e sandia”, o
poeta
trovador,
provável
possuidor deste
objeto,
poderá
não
oferecê-lo a
esse
sujeito,
inclusive,
poderá
ser
este
descartado.
Logo,
o
que
o S2
busca
é o
oposto
do
que
lhe
apresenta o S1, permanecendo,
assim,
aquele
em
um
mundo,
totalmente,
ilusório,
porque
não
passa
a
pertencer
ao
mundo
do
poeta
(S1),
mas
se apresenta,
sob
outro
aspecto
de
valor,
ao
mundo
do S3.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Este
trabalho
será finalizado
com
a
apresentação
de
um
sistema
de
distribuição
das
modalidades
encontradas na
análise
da
cantiga,
uma
vez
que,
para
tanto,
apoiamo-nos na intratextualidade,
ou
seja, o
texto
dialogando
com
ele
mesmo,
possível
por
meio
da
visão
semiótica
baseada
na
teoria
de A.J. Greimas. Estas
modalidades
serão
distribuídas
em
duas
seqüências,
sendo
que
a
primeira
delas representará o percurso do S1 (o
poeta
trovador
antes
da transformação), numa
visão
não-disjuntiva (eufórica)
a
um
Ov
que
acredita
ser
a
única
inspiração
para
compor
trovas
e, a
segunda,
no percurso do S3,
então
competente
para
compor
o
cantar
e
cantar
para
o S2 (dona
fea).
É
um
texto
muito
interessante
onde
encontramos
um
sujeito,
sincronicamente, atuando
em
dois
papéis,
mas
sem
deixar
as
características
do
primeiro,
fato
que
nos
estimulou à
análise
da actoralização do
segundo
sujeito,
pressuposto (S3)
que
aceita
fazer
a
louvação
à
Senhora
Feia,
velha
e
louca
em
vista
de
observar
neste
sujeito
um
outro
valor,
quem
sabe, o
verdadeiro
da
real
beleza
que
o
ser
humano
precisa
ver
e
que,
hoje,
somente
sendo
poeta,
que
lê
o
íntimo,
que
vê
a
alma
do
seu
próximo,
consegue
enxergar.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
BARROS, Diana
Luz
Pessoa de.
Teoria
Semiótica do
texto.
São Paulo: Ática, 1990.
BERTRAND, Denis.
Caminhos da
Semiótica
literária. 2003.