SINTAXE
DIACRÔNICA:
UM
ESTUDO DE
CASO
Geraldo José da Silva (UEMS)
INTRODUÇÃO
Este
trabalho centra-se num
levantamento de
ocorrências sintático-semânticas dos
conectivos Ca /
que nas
cantigas
números 119 e 125, de Don Fernan Garcia,
Esgaravunha, do
Cancioneiro da
Ajuda,
edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos. O
estudo
em
tela levará
em
consideração o
fenômeno
sintático do
uso do
significante Ca /
que e
sua
incidência valorativa na
constituição dos
textos
em
análise.
Assim, vemos a complexidade
que a
estrutura frástica imprime ao
fazer
textual
em
composições arcaicas e,
também, a
necessidade de uma
busca
histórica do
constructo
sintático
para
melhor
entender as
relações sintáticas
em
situação
atual.
Portanto,
um
estudo balizado num
viés
diacrônico possibilitará
um
trato
com
maior
consciência da
tessitura
textual
em
Língua Portuguesa,
em
registro sincrônico. Justifica-se
tal
estudo
dada a
ocorrência
limítrofe do
significante Ca /
que
em
textos,
ocasião
em
que podem
assumir
função
sintática coordenativa e,
por
vezes, subordinativa.
FUNDAMENTAÇÃO
TEÓRICA
Considerando a
variedade de
uso do ca /
que e
sua polissemia, vê-se
que
esse
significante
ora é coordenante,
ora é subordinante, podendo na
fase
arcaica da
língua
equivaler,
também, ao
que
integrante e ao do
que
ou
que de
enunciados
comparativos e
consecutivos. O
uso do ca
explicativo
ou quia
ou qua
latinos é
muito
freqüente na
documentação
arcaica. Mattos e Silva
assim assevera:
A
dificuldade da
classificação do ca
não está,
como ocorreu
com
adversativas e conclusivas-explicativas,
em
considerá-lo
conjunção
ou adverbial,
mas
em
considerá-lo subordinante
ou coordenante
e, optando-se
por uma dessas
duas possibilidades,
que
tipo de
subordinante
ou coordenante:
causal
(classificação
mais
generalizada),
consecutiva,
explicativa. A
dificuldade é
de
natureza
sintáctica e
semântica.
(1989:690).
Em
Estruturas trecentistas, a autora
afirma
que “os
enunciados introduzidos
por ca estão naquela
duvidosa
zona
limítrofe da
coordenação e da
subordinação”.
Isto
nos remete à
grande
dificuldade de
análise da
ocorrência desse
significante
nos
enunciados da
língua
em
uso
arcaico e,
mais
ainda, no
aspecto sincrônico.
Em
consonância
com a autora, percebemos
que o
enunciado introduzido
por ca (coordenante)
sempre sucede,
como
em
qualquer
coordenada, ao
enunciado a
que se
liga, explicitando-o
ou justificando-o;
já
com os
enunciados
subordinados circunstanciais, as
causais iniciadas
sobretudo
por
porque (semanticamente
afins aos
iniciados
por ca) podem
anteceder
ou
suceder o
enunciado
básico.
Em
situações
causais, faz
falta o
falante
nativo
para
informar se o ca e o
porque teriam nestes
contextos
valor
idêntico, se seriam,
portanto, intercambiáveis. “Ide-vos a boa
ventura, ca non
ei
eu mester
cavalo.” (MATTOS E SILVA, 1989: 692).
Mattos e Silva (1993:111)
argumenta
que no
período
arcaico o
que,
integrante, varia
com ca ,
mas essa
variante tem
freqüência
baixa
em
relação a
que e
começa a
deixar de
ser documentada
já no
século XV.
Para a autora o
que, no
período
arcaico,
como
hoje, é o “pronome
relativo
primário
em
português. Representa, historicamente,
um
nivelamento do
nominativo
latino
que (Masc.), quae (fem.),
quod (neutro) e dos
acusativos
quem, quam, quod
também”.
Na
documentação
arcaica,
embora
pouco
freqüente, o
relativo
que ocorre grafado ca,
tal
como ocorre
com a
integrante
que. No
processo de
constituição das
línguas românicas, a
partir do
latim
corrente, poucas das
conjunções subordinativas do
latim
clássico permaneceram:
que < quid,
como < quomodo,
quando <
quando, se <
si, ca < quia.
A
coordenação
explicativa
tem
como
conectivo
mais
corrente na
documentação
arcaica o
ca,
cujo
étimo
em
geral proposto
é o quia do
latim.
Mantém-se
presente
até o
século XVI,
mas se perderá
em
proveito de
pois,
etimologicamente
um
temporal (<
lat. post). (Mattos e Silva,
1993: 121).
Vale
chamar a
atenção
para o
fato de
que
este ca,
homógrafo do ca
integrante e
relativo
antes referidos, remete diacronicamente
para o quia
latino.
Ainda
para a autora,
As explicativas e
causais estão
no
limite
entre
coordenação e
subordinação,
se se
admitir
que
esses
mecanismos
representam
um
continuum de possibilidades
que vai da
subordinação
plena,
como é o
caso das
completivas marcadas,
sobretudo,
pelo
que,
constituinte
essencial à
sentença de
que depende,
até a
coordenação
plena
que é a
adição
simples,
marcada
pelo e (1993: 122).
Almeida (1999: 352-355)
explica
que as
conjunções explicativas “ligam duas
orações, explanando
ou continuando a
segunda o
sentido da
primeira: Ex.: Morreu,
ou seja, deixou de incomodar-nos”.
Já as
conjunções
causais “ligam duas
orações, das
quais uma depende da
outra,
como o
efeito depende da
causa; a
que indica o
efeito é a
principal, e a
que representa a
causa é a
subordinada. Ex.:
Cansado
que fiquei, procurei
apoio.”
O
autor discute a
questão
conceitual trazida
pela NGB no
tocante ao
uso do
que
ora
causal,
ora
explicativo. A NGB (Apud
ALMEIDA, 1999: 355) traz: “As
conjunções
que e
porque e equivalentes
ora têm
valor coordenativo,
ora subordinativo; no
primeiro
caso, chamam-se explicativas; no
segundo
caso,
causais”.
Segundo o
autor, há
grave
engano nesse
trato
conceitual e
ainda questiona o
exemplo: “
Não suba,
que
você cai”
onde apresenta uma
análise
em
que a
subordinada constitui uma
explicação,
sem
porém
deixar de
implicar
motivo. E acrescenta Almeida (1999: 355) “A
admitir as
causais
como explicativas,
forçoso se
torna
admitir
como explicativas as
finais, as
temporais e
ainda outras”.
Polemiza
também se
que,
quando tem
valor subordinativo, é
causal, pode-se
dizer
que no
período “Gostaria
que
eles estudassem” é
causal? E se
que
com
valor coordenativo é
explicativo no
período “Mexe
que mexe”?
Conclui o
autor “ parece
que o
que houve foi terem
dado à
palavra ‘explicativa’
o
sentido
lato de ‘declarativa’,
ou terem confundido
conjunção
com
oração,
ou
gramática
com
filosofia” (1999: 355).
Cunha e Cintra (1985: 567-572) conceituam as
conjunções explicativas
como sendo a
ligação
entre duas
orações, a
segunda das
quais justifica a
idéia contida na
primeira. Ex.: Vamos
comer,
Açucena,
que estou morrendo de
fome. (Adonias
Filho).
Também registram
que as
conjunções adverbiais subordinadas
causais iniciam uma
oração
subordinada denotadora de
causa.
Exemplos: Tenho continuado a
poetar,
porque
decididamente se
me renovou o
estro. (A . de Quental);
Como as
pernas trôpegas exigiam
repouso, descia
raro à
cidade. (G.
Ramos)
Mesquita (1996: 436-445) apresenta o
que
explicativo coordenativo no
exemplo: “ Parem
esse
troço
que
eu vou
descer” (L. F. Veríssimo) e
que
causal subordinativo
em “
Eu
choro
que ( =
porque) a
saudade existe.
O
autor
trabalha
com a valoração coordenativa (explicativa)
e subordinativa (causal) da
conjunção
porque.
Assim, o
porque
com
valor coordenativo
explicativo ocorre na
oração
coordenada
que apresenta uma
idéia
nova explicando uma afirmação
anterior;
geralmente é separada da
antecedente
por
ponto-e-vírgula
ou
vírgula. A
primeira
oração apresenta,
geralmente, o
verbo no
imperativo (Anda,
Maria,
porque
já
começa a
noite).
Já o
porque
com
valor subordinativo
causal situa uma
causa
em
relação à
conseqüência
que foi
exposta na
oração
principal. Pode
ser anteposta a esta
quando a
conjunção é substituída
por
como , o
que
não ocorre
com a coordenativa
explicativa. Ex.: “Desprezam-me
porque sou
pobre” [conseqüência
>
causa] e “Como sou
pobre, desprezam-me ” [causa
>
conseqüência].
Infante (1995: 441) conceitua as
orações
coordenadas explicativas
como aquelas
que expressam o
que levou
alguém a
fazer uma
declaração
anterior. Ex.: “
Não o perturbe,
que
ele
precisa
trabalhar”. O
autor
chama a
atenção
para
que
não confundamos
explicação
com
causa.
Segundo
ele uma
explicação é
sempre
posterior ao
fato
que a gerou; uma
causa é
sempre
anterior à
conseqüência
que dela resulta. Ao
apresentar as
orações
coordenadas (explicativas) Ulisses
Infante segue as
orientações da NGB e
este reconhece a
problemática
conceitual da
questão: coordenativas explicativas e /
ou subordinativas adverbiais
causais.
Segundo a NGB, as
orações
coordenadas sindéticas devem
ser classificadas de
acordo
com o
tipo de
conjunções
que as introduzem, levando-se
em
conta as
conjunções
que encabeçam essas
orações e
não o
sentido da
relação
que se estabelece. Corroborando essas
limitações, o
autor discute os
exemplos: “
Você
quer
ajuda, e
eu
não posso o
ajudar” e “ Faça o
que
lhe digo e será
bem-sucedido” , os
quais apresentam a
segunda
oração
como
orações
coordenadas sindéticas aditivas, encabeçadas
pela
conjunção e, seguindo
orientação da NGB.
Por
outro
lado, é
claro
que essas
orações
não
são
puramente aditivas: no
primeiro
caso, há
um
valor
adversativo [
Você
quer
ajuda,
mas
eu
não posso
ajudar]; no
segundo
caso, percebe-se
um
valor
consecutivo [ Faça o
que
lhe digo e
em
conseqüência será
bem-sucedido].
Infante (1995: 442) assevera “
Por
isso, voltamos a
insistir
em
que
você se preocupe
mais
com o
uso
efetivo das
estruturas
lingüísticas do
que
com as
intermináveis
discussões dos
gramáticos
sobre
questões de
nomenclatura...”
Kury (1997: 89-125) admite a
complexidade
conceitual ao
tratar de
orações
coordenadas explicativas e
orações subordinadas
causais.
Ele apresenta, didaticamente,
alguns
artifícios
práticos na
otimização do
processo
analítico.
1°) Tendo
sempre
em
mente
que a
oração
subordinada adverbial
vale
por
um
adjunto adverbial ( o
que
não acontece
com a
coordenada
explicativa, sintaticamente
independente), tente-se
substituir a
oração
desenvolvida
iniciada
com
que,
pois,
porque
por
outra equivalente, reduzida de
infinitivo,
iniciada
pela
preposição
por. Se
isso for
possível,
sem
forçar o
sentido é
sinal
evidente de
que a
oração
em
tela é
causal.
Segundo o
autor
esse
processo é o
mais
eficiente de
todos.
2°) Na
maior
parte dos
casos, a
oração
que antecede uma
explicativa tem o
verbo no
imperativo, indicando
tempo
futuro; compare-se: “
Não chores,
porque estou a
teu
lado.” (explicativa);
“
Não chores [
porque estou a
teu
lado] (causal),
que
não
te farei
mal.” (explicativa);
“Chorava [
porque a
mãe
não estava a
seu
lado]”. (causal).
3°) Na
sua
maioria, as
orações
causais de
que,
pois,
porque podem substituir-se
por equivalentes
com os
conectivos
como (no
início do
período), uma
vez
que e
análogos, o
que
não é
possível
com as explicativas.
A
aplicação
conjunta
destes
critérios,
mormente o
primeiro, sanará
talvez todas
as
dúvidas,
principalmente
se
não se
esquecer
este
fato :
só é
subordinada
adverbial
causal
a
oração
que
exerce,
em
relação
à
outra,
a
função
de
adjunto
adverbial de
causa.
(KURY, 1997: 90).
O
autor apresenta
exemplos
para
aplicação
prática.
1) “Fala-lhe
tu,
que
eu
não quero
que
ele
me conheça.” (Camilo, AP, 65.) Veja-se
que, neste
exemplo, é
perfeitamente
possível a
omissão do
conectivo: “ Fala-lhe
tu:
eu
não quero
que
ele
me conheça” , o
verbo da
oração
anterior está no
imperativo; seria
forçada a
substituição da
oração indicada
por
outra introduzida
por
como,
ou
por uma
oração reduzida.
Tudo
isso indica
que se
trata de
oração
independente
explicativa,
coordenada à
anterior.
2) “O povoléu
intacto fugia espavorido,
que
ninguém se atrevia ao
filho do
carregador.” O
segundo
exemplo
posto,
também,
nos possibilita o
entendimento de
que a
oração pode
ter
equivalência reduzida ( ...
por
não se atrever
ninguém...),
ou introduzida
por uma
vez
que,
ou
visto
que,
ou
como.
Assim, concluímos
que se
trata de
oração
subordinada adverbial de
causa.
O
desafio de
estudar a
Língua
Portuguesa, requer de
nossa
parte
um
olhar
mais
amplo,
sem
perder de
vista os
aspectos
diacrônicos e
sincrônicos deste
código.
Isto
posto, a
retomada de
textos
arcaicos é
oportuna,
pois no
registro de
textos
atuais
encontramos
fenômenos
lingüísticos
que,
também, exigem
maior
atenção
para
compreensão e
interpretação,
levando-se
em
conta o
processo estrutural e de
construção de
sentido.
Observando
estes
aspectos, especificamente os morfossintáticos,
centramos
nosso
estudo no
corpus “Cantiga
119 e 125 do
Cancioneiro da
Ajuda” (de Don Fernan Garcia,
Esgaravunha) na
edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos.
CANTIGA 119 (
Tr.133). Carolina Michaëlis de Vasconcelos
Quan muit’
eu am’ ũa
molher 2875
non - no sabe Nostro
Senhor ;
nen
ar sabe quan
gran
pavor
ei og’
eu d’ela,
cuido - m’eu;
5 ca se
eu o soubesse,
sei
eu
ca se doeria de
mi,
2880
e non
me faria assi
f.31( = 67)b
querer
bem a
que
me / /
mal
quer.
Pero
que dizen
que
negar
10 non xe
lhe pode nulla
ren
que el non
sábia, sei
eu ben
2885
que aind’ el
non sabe
qual
ben lh’eu
quero, nen sab’ o
mal
que m’ela
por
si faz aver;
15 ca se o soubesse, doer-
s’ –ia de
mi, a
meu
cuidar. 2890
Ca
Deus de
tal coraçon é
que,
tanto
que sabe
que ten
eno
seu
mui gran coit(a)
alguen,
20
que
logo lh’ i
conselho pon.
E
por
esto sei
eu
que non
2895
sab’ el a
coita
que
eu
ei;
nen
eu
nunca o
creerei
por
aquesto,
per bõa
fé.
TRADUÇÃO DA
CANTIGA
119
[1]
Quanto
eu
amo uma
mulher
(1ª
estrofe)
não,
não sabe
Nosso
Senhor
Nem
também sabe
quanto
pavor
tenho
hoje dela,
penso
eu
porque se o
soubesse,
eu sei
que se
compadecia de
mim,
e
não
me faria
assim
querer
bem a
quem (que)
me
quer
mal.
Por
isso
que
dizer
que
negar
(2ª
estrofe)
não
se
lhe
pode
nada
que
ele
não
saiba,
eu sei
bem
que
ainda
ele
não sabe
qual (tamanho)
bem
lhe quero,
nem sabe o
mal
que
me fez
ela
por
si
mesma
porque se o
soubesse, compadecer-se-ia de
mim, ao
meu
ver.
Pois
Deus de
tal
coração
é (3ª
estrofe)
que,
tanto
que sabe
que tem
e no
seu
grande
sofrimento
alguém,
que
logo
aí põe-lhe
remédio (auxílio)
E
por
isto
eu sei
que
não
sabe
ele o
sofrimento
que
eu tenho;
nem
nunca o
acreditarei (crerei)
por
tamanho (coração),
por boa
fé.
CANTIGA 125 (
Tr.139). Carolina Michaëlis de Vasconcelos
Des oge
mais ja sempr’eu
rogarei
f.32( = 68)b
Deus
por mia
morte, se
mi – a
dar / / quiser,
2975
que
mi – a
dê
cedo; ca m’é
mui mester,
senhor
fremosa,
pois
eu
per
vos sei
5 ca non á
Deus
sobre
vos
tal
poder
per
que
me faça
vosso ben
aver:
E ja
eu
sempre serei
rogador 2980
Des oge
mais pola mia
mort’ a
Deus,
chorando
muito d’estes
olhos
meus,
10
pois
per
vos sei,
fremosa mia
senhor,
ca non á
Deus
sobre
vos
tal
poder
per
que
me faça
vosso ben
aver. 2985
Ca enquant’
eu
coidei o[u] entendi
ca
me podia
Deus
vosso ben
dar;
15 nunca
lh’eu
quis
por mia
morte
rogar;
mais, mia
senhor, ja
per
vos sei assi
ca non á
Deus
sobre
vos
tal
poder 2990
per
que
me faça
vosso ben
aver.
TRADUÇÃO DA
CANTIGA
125
[2]
De
hoje
em
diante
eu
sempre rogarei
a (1ª
estrofe)
Deus
por
minha
morte, se ma quiser
dar
oxalá (que)
ma
dê
cedo (logo);
porque
me é
muito
importante (necessário)
senhora
bela,
pois
eu
por
vos sei
que
não tem
Deus
sobre
vós
tal
poder
pelo
qual
me faça
ser correspondido (vosso
bem
possuir).
E
doravante
sempre serei
rogador (2ª
estrofe)
De
agora
em
diante
pela
minha
morte
em
Deus,
chorando
muito destes
olhos
meus,
pois (porque)
por
vós sei,
minha
formosa
senhora,
que
não tem
Deus
sobre
vós
tal
poder
pelo
qual
me faça
ser correspondido (vosso
bem
possuir)
Pois
enquanto
eu meditei
(inquietei-me) entendi (3ª
estrofe)
que
me podia
Deus
vosso
bem
dar,
nunca
eu quis
por
minha
morte rogar-lhe
mas,
minha
senhora, daqui
em
diante
por
vos sei
assim
que
não tem
Deus
sobre
vós
tal
poder
pelo
qual
me faça
ser correspondido (vosso
bem
possuir).
ANÁLISE DO
CORPUS
“CANTIGAS 119 E 125” DE DON FERNAN GARCIA,
ESGARAVUNHA, (CANCIONEIRO DA
AJUDA)
-
edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos.
Tendo
como aporte
teórico a
obra
Estruturas Trecentistas de Mattos e
Silva,
nos propusemos a
fazer
um
levantamento das
ocorrências sintático-semânticas do ca /
que nas
Cantigas 119 e 125 (de Don Fernan Garcia,
Esgaravunha) do
Cancioneiro da
Ajuda, na
edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos.
Para a
Cantiga 119, consideramos a
análise de Bortolanza (2003),
que apresenta de
forma
didática algumas
estruturas frásicas do
texto
em
estudo.
Vale
lembrar
que,
para
este
trabalho, elegemos
apenas os
significantes Ca /
que destacando a
incidência destes
conectivos sintaticamente marcada
pelo
contexto.
Assim, percebemos
que
estes
elementos assumem – ao
longo do
texto –
valores adjetivais,
integrantes e causativos circunstanciais.
Num
primeiro
momento faremos a
análise da
Cantiga 119, de Don Fernan Garcia, Esgaravunha, (Cancioneiro
da
Ajuda, na
edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos) e,
em
seguida, o
mesmo se fará
com a
Cantiga 125 –
mesma
fonte.
Portanto, passamos a
análise da
Cantiga 119
em
que destacamos, na
primeira
estrofe,
quinto
verso, “porque se o
soubesse,
eu sei” temos a
primeira
ocorrência do
que
com valoração causativa
em se considerando o
sexto
verso
como
complemento sintático-semântico do [ca =
porque]
presente no
quinto
verso. No
sexto
verso, há
outra
incidência do
que [ca =
que]
mas
com
função
sintática de
elemento
integrante
por
iniciar uma
oração
subordinada
substantiva completando a
forma
verbal “sei” marcada no
quinto
verso.
Ainda, nesta
estrofe, no
oitavo
verso, o
significante
que assume a
função de
pronome
relativo
adjetivo[que =
quem] “querer
bem a
quem /
que
me
quer
mal”
A
segunda
estrofe
nos apresenta, no
primeiro
verso, duas
estruturas “que
dizer” e “que
negar”
com
função sintático-semântica de
objeto
direto da
forma
verbal “pode” do
segundo
verso, podendo
ser
retomadas
pela anáfora representada na pró-forma
nominal
substantiva
nada. [Não se
pode
dizer
que,
não se pode
negar
que...]. No
terceiro
verso, o
que assume
função
sintática de
pronome
relativo,
pois retoma
nada
que equivale a
algo
dito, a
algo negado, marcado no
primeiro
verso
pela
forma
infinitiva antecedida
pelo
pronome
que estilisticamente.
Já o
que do
quarto
verso
desempenha a
função
sintática de
conjunção
integrante,
pois está
subordinado à
forma
verbal “sei” inscrita no
terceiro
verso. [eu sei ben /
que aind’ el non sabe
qual]. O
que
inicial do
sexto
verso exerce a
função de
pronome
relativo, uma
vez
que, e´
elemento
reforçativo e referencial ao
termo
mal
incidente no
quinto
verso. No
sétimo
verso o [ca =
porque] aparece
com
valor
causal, veja-se a
construção
frasal
possível: “ca se o soubesse, doer- / s’ – ia de
mi, a
meu
cuidar”. (
porque sabendo, compadecer-se-ia de
mim).
Na
terceira
estrofe, o Ca
inicial é tido
como
elemento continuador de uma narratividade,
seu
uso é
optativo uma
vez
que
não interfere na
carga
semântica do
período frásico. O
segundo
verso desta
estrofe
nos apresenta duas
ocorrências do
que as
quais possuem
funções sintáticas distintas, a
saber: “tanto
que sabe..”
com
valor
consecutivo e “sabe
que tem...” assumindo
valor de
conjunção
integrante. No
quarto
verso [
que
logo lh’ i
conselho pon.]
este
que
desempenha
função de
pronome
relativo
por
estar retomando “alguém” do
verso
anterior. No
quinto
verso [E
por
esto
eu sei
que non] o
que tem
valor morfossintático de
elemento
integrante.
Já no
sexto
verso [sab’ el a
coita
que
eu
ei;], o
que tem a
função de
pronome
relativo e, semanticamente, imprime valoração
intensificadora ao temo sofrimento.
Prosseguindo
nosso
trabalho, passamos a
analisar a
Cantiga 125, de Don Fernan Garcia, Esgaravunha (Cancioneiro
da
Ajuda, na
edição de Carolina Michaëlis de Vasconcelos).
Na
primeira
estrofe é
possível
verificar a
ocorrência do
significante [ca =
porque]
com
valor
causal, no
terceiro
verso: “
que
mi – a
dê
cedo; ca m’ é
mui mester; ” e,
também,
um
que iniciador do
verso
com
valor
integrante
em
relação à
forma
verbal “quiser” do
segundo
verso. O
quarto
verso mostra-nos
um
pois
explicativo [a
morte
me é
muito
importante /
pois
eu
por
vós sei]. No
quinto
verso o [ca =
que]
desempenha
função de
elemento
integrante
em
relação à incompletude da
forma
verbal “sei” do
enunciado no
quarto
verso.
Já, no
sexto
verso, o
que é
pronome
relativo
adjetivo e
ainda restringe o ‘poder’ de
Deus, neste
constructo
frasal, tem a
função de
elemento
reforçativo discursivo.
A
segunda
estrofe
nos permite
analisar, no
quarto
verso, a
ocorrência do
significante [pois =
porque /
visto
que],
portanto
com valoração causativa
pela possibilidade de
construção sintático-semântica “chorando
muito destes
olhos
meus
visto
que /
porque sei (minha
formosa
senhora)”. Veja-se
que o
fato de
saber
que
nem
Deus teria
poder
sobre a
amada
para sensibilizá-la ao
seu
amor, causava-lhe
choro
intenso. No
quinto
verso, o [ca =
que]
desempenha a
função de
elemento
integrante morfossintaticamente,
visto
que está
para
completude da
forma
verbal “sei” do
verso
anterior. O
sexto
verso apresenta a
mesma
função ocorrida no
sexto
verso da
primeira
estrofe, o
que podemos
inferir
que há uma
retomada estrutural da
forma de
composição paralelística e /
ou
refrão,
pertinente a
este
tipo de
texto.
A
terceira
estrofe apresenta
um [ca =
pois]
como
conjunção circunstancial, no
início do
enunciado, o
que podemos
dizer
que o
mesmo assume
função
optativa, uma
vez
que é
apenas
um
coadjuvante composicional enunciativo
conforme o
que atesta Mattos e Silva “... o ca
poderia
deixar de
estar
presente
sem
prejudicar a
informação transmitida
pela
narrativa; do
ponto de
vista sintáctico, da
mesma
forma, parece
ser
dispensável
já
que
não está coordenando
enunciados,
mas
em
início
absoluto de uma
narrativa” (1993:695). O
segundo
verso [ca =
que] assume a
função de
elemento
integrante
por
completar frasticamente a
forma
verbal
regente no
primeiro
verso “entendi” [algo].
O
quinto
verso, o
que
também apresenta a
mesma
função,
ou seja,
elemento
integrante
em
relação ao
verbo
saber flexionado e
enunciado no
quarto
verso.
Já no
sexto, a
estrutura composicional se repete
tal
qual nas
estrofes
anteriores
que constituem a
cantiga.
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
A
análise das
cantigas de Don Fernan Garcia, Esgaravunha –
corpus deste
trabalho –
nos possibilitou
verificar a complexidade sintático-semântica dos
significantes Ca /
que
em
uso constitutivo dos
versos. Percebemos a relatividade
analítica
possível
quando da estruturação frásica. Notamos,
também,
que
estes
conectivos desempenham
funções sintáticas
ora de
cunho coordenativo
ora de
cunho subordinativo, levando-se
em
conta o
contexto de
suas
ocorrências.
Estudos
gramaticais sincrônicos,
por
vezes, deixam
lacunas
quanto à
explicação de
processos
sintáticos. Vimos
que uma
abordagem
diacrônica, uma
busca
histórica da
construção de
sentenças da
Língua Portuguesa
poderia
esclarecer
ou,
pelo
menos,
mostrar os
fenômenos frásicos do
código utilizado
para
registro
escrito.
Não queremos,
com
isso,
refutar o
trato normativo da NGB,
mas
sim
ressaltar
que uma
abordagem
diacrônica
sempre terá
seu
espaço no
que se refere ao
estudo e ao
ensino da
Língua Portuguesa.
Os
significantes Ca /
que nas
cantigas analisadas corroboram a
alternância
sintática
que incide nas
estruturas frásicas
como
elementos
conectivos
que
ora desempenham
função coordenativa,
ora
função subordinativa, assumindo valoração causativa
circunstancial, valoração
pronominal
relativa adjetival e,
também,
posição de
elemento
integrante interfrásico.
Isto
posto, consideramos
que,
mesmo
em
textos
arcaicos, a
relação
sintática é construída de
forma
lógica
mas
não
ortodoxa, fechada
em
si
mesma,
sem
levar
em
conta o
contexto.
Assim, instiga-se uma
reflexão dos
fenômenos
sintáticos
que ocorrem
hoje
em
situação sincrônica o
que justifica o
estudo
lingüístico
sob a
ótica
diacrônica,
pois
tudo tem
um
porquê
histórico
que
nos
motiva a
buscar no
passado
luzes
para
compreender e
entender o
presente.
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