CAPITÃES DA AREIA: A RECEPÇÃO CRÍTICA

Benedito Veiga (UEFS e UCSal)

 

Não é traindo a adolescência e a juventude, suas ânsias, suas revoltas, sua necessidade de destruir para afirmar-se, não é traindo essa urgência e fome de viver, esse ardente e violento impulso, que o escritor levanta, na experiência viva, sua medida de homem, aprendendo aos poucos, numa longa marcha, a estimar e a compreender, amadurecendo em riqueza espiritual. (Jorge Amado, 1972: 4)

 

Jorge Amado, na elaboração de sua obra Bahia de Todos os Santos, em 1944, reserva lugar para os capitães da areia na vida cotidiana da Cidade do Salvador, no capítulo final, chamado “Terra, mar e céu”, onde situações e tipos característicos/pitorescos da velha urbe são apresentados e comentados, sem fugir à tônica costumeira de todo esse livro, quando o lado da alegria é confrontado com o da dor.

Amado lembra que seu romance de 1937 trata do mesmo assunto, na época, essa narrativa estava com sete anos de lançada, e retoma seu velho tema:

Não são um bando surgido ao acaso, coisa passageira na vida da cidade. É um fenômeno permanente, nascido da fome que se abate sobre as classes pobres. Aumenta diariamente o número de crianças abandonadas. Os jornais noticiam constantes malfeitos desses meninos que têm como único corretivo as surras da polícia, os maus tratos sucessivos. Parecem pequenos ratos agressivos, sem medo de coisa alguma, de choro fácil e falso, de inteligência altivíssima, soltos de língua, conhecendo todas as misérias do mundo numa época em que as crianças ricas ainda criam cachos e pensam que os filhos vêm de Paris no bico de uma cegonha. (AMADO, 1996: 389)

As palavras do autor descrevem, com presteza, a concretude temática que persiste até hoje: o problema do menor abandonado na sociedade brasileira; suas injunções e marcas: a distribuição injusta da riqueza, a carência de oferta de emprego e os salários miserandos.

Paralelamente, a partir de sua vigésima sétima edição, em 1977, o livro citado de roteiro de Salvador ganha sua quarta e última revisão, sendo lançado pela Editora Record com ilustrações da Carlos Bastos, que permuta o papel com Manuel Martins (Apud RUBIM, 1992: 75-76).

A troca de ilustrador permite ao novo encarregado da tarefa fazer surgir, plasticamente, outras imagens e representações da Bahia, como acontece com a dos capitães da areia, mostrados numa simplicidade repleta de sensualismo (AMADO, 1996: 390), o que significativamente interessa por ser uma referência à produção amadiana Capitães da Areia, seu livro com maior número de edições até o momento[1], traduzido em, aproximadamente, doze idiomas, com apropriações para o teatro (em português, francês, inglês, alemão), para o cinema (em inglês, em francês), para mime-série de TV, para a música (Dorival Caymmi, Antônio Carlos e Jocafi) (Apud RUBIM, 1992), objeto de dissertações e teses acadêmicas, com pronunciamentos de estudiosos variados, portanto, um texto com recepção crítica diversa e numerosa.

O aparecimento de Capitães da Areia se dá quando, no plano político, o Estado Novo está prestes a ser implantado. O pretexto para reacender o clima golpista emerge com o aparecimento do Plano Cohen, em setembro de 1937, com elucidação controversa, mas envolvendo probabilidades: uma insurreição comunista e uma reação integralista diante dela. O documento passou a ser tomado como realidade, inclusive pelas hostes do Exército, o que terminou adiantando o golpe, como escreve Boris Fausto, em História Concisa do Brasil : “O gesto serviu para apressá-lo. Sob a alegação de que o texto estava sendo distribuído nos quartéis, Vargas e a cúpula militar decidiram antecipar o golpe, marcado para o dia 15 de novembro” (FAUSTO, 2001: 200).

A narrativa Capitães da Areia, de Jorge Amado, é concluída e publicada pela Livraria José Olympio Editora, em setembro de 1937, pouco antes do recrudescimento governamental que implantaria a ditadura estadonovista. O lançamento editorial acontece sem a presença do autor, que estava em viagem.

Segundo Renard Perez, em “Jorge Amado: Notícia Biográfica”, estudo inserido em Jorge Amado Povo e Terra: 40 Anos de Literatura, o escritor, nesse momento, fazia o percurso pela costa do Pacífico, subindo até o México e Estados Unidos. Na viagem, nas palavras do ensaísta, Amado escreve Capitães da Areia e o envia ao editor para impressão. Ainda no registro de Perez, o criador de Pedro Bala, “[...] em fins de outubro, volta ao Brasil; mas tem, logo em seguida, um período de complicações políticas, conseqüência da situação nacional, que culminará, a 10 de novembro, com o advento do Estado Novo. É preso por dois meses, seus livros são proibidos no país” (PEREZ, 1972: 235-236).

O Estado da Bahia, de 17 de dezembro de 1937, confirma que foram incinerados, em Salvador, no dia 19 de novembro do mesmo ano, na presença dos membros da Comissão de Busca e Apreensão de Livros, nomeada pela Comissão Executora do Estado de Guerra, e a mando do comandante da Sexta Região Militar, mais de mil e setecentos exemplares da produção de Jorge Amado, todos incluídos entre “os livros apreendidos e julgados como simpatizantes do credo comunista, a saber: 808 exemplares de Capitães da Areia, 233 exemplares de Mar Morto, 89 exemplares de Cacau, 93 exemplares de Suor, 267 exemplares de Jubiabá, 214 exemplares de País do Carnaval [...]”[2].

O professor e crítico literário Eduardo de Assis Duarte, em seu ensaio “Jorge Amado: leitura e cidadania”, publicado em 2004, comenta:

pouco mais de 60 anos, surgia, na literatura brasileira, um livro marcado pelo estigma da incineração pública. Censurado e perseguido no momento de seu lançamento, Capitães da Areia, de Jorge Amado, surge às vésperas da decretação do Estado Novo, em 10 de novembro de 1937. (DUARTE, 2004: 40)

O comentarista reafirma a hostilidade censuradora que cai, no calor da hora da estréia, sobre essa ficção amadiana, que tem uma segunda edição permitida em 1944 (RUBIM, 1992: 40), iniciando um sucesso ininterrupto.

Eduardo de Assis Duarte, numa perspectiva de projeção e prolongamento do poder intolerante, traz, aos dias atuais, marcos da inaceitação das diferenças, exibidas em 1937:

Quanto a fogueiras e menores abandonados, a triste conclusão é que continuam a fazer parte da história pátria. Os meninos passaram de “dominados” a “excluídos”, apesar de freqüentarem cada vez mais espaços públicos. as fogueiras, também elas persistem. No alvorecer do milênio, desinteressaram-se aparentemente dos livros. Voltam-se agora para os índios, mendigos e homossexuais. (DUARTE, 2004: 50)

A recepção crítica da literatura de Jorge Amado nunca foi aceita de forma inconteste, mormente em um paíscomo o Brasil – sujeito a reveses no funcionamento regular de um Estado de Direito. Os debates sobre a produção amadiana flutuavam, por vezes, levando em conta a opção do escritor pelo Partido Comunista, por construir um caminho de denúncias, recheado com uma linguagem propícia aos personagens e temas dos excluídos.

Waldir Freitas Oliveira, em seu ensaio “2002: Os 65 Anos de Capitães da Areia”, recorda esses percursos e direções de Amado e registra:

Capitães da Areia é, sem dúvida um documento valioso para a compreensão de uma época, na Bahia. Sua elaboração resultou da vivência intensa do autor nas ruas, becos e ladeiras da cidade que ele conheceu, adolescente, acreditando, como Pedro Bala, ser capaz de mudar o mundo para torná-lo mais justo e beneficiar os mais pobres, condenando, em sua missão sinceramente assumida de escritor engajado, como foram, durante algum tempo, chamados os autores de livros como os seus, numa sociedade que se negava a reconhecer-se injusta, mantidas as estruturas que garantiam, somente aos ricos, os privilégios. (OLIVEIRA, 2002: 51)

O ensaísta destaca pontos dessa narrativa de Amado que o tornam cúmplice dos capitães da areia de todos os tempos e lugares, posicionamento que reflete seu vínculo ideológico.

As recepções críticas, logo após a estréia dessa narrativa, são boas, malgrado o clima de rejeição violenta da censura, coerente com o governo ditatorial vigente. Antônio Olinto, por exemplo, no Diário de Minas, de Belo Horizonte, pronuncia-se, em 1938, demarcando a época da ficção, ao mesmo tempo atual e de todos os instantes – a “da juventude em luta contra o mundo”. Destaca também o caráter cinematográfico da narrativa amadiana, estabelecendo preliminarmente o espaço, e fazendo circular as personagens que, no futuro, renderiam dividendos ao autor, com as adaptações de suas obras para o cinema e a televisão.

No entendimento do estudioso, Amado, como romancista e como homem, requer para o seu momento e lugar um outro vir-a-ser, daí admitir certo tom poético e umestilo bíblico”. Esse romancista, admite Olinto, marcadamente implantado na historicidade, faz surgir nova temporalidade almejada: “Ao lado do tempo do Brasil de agora, existe depois de `Jubiabá´, `Mar Morto´ e `Capitães da Areia´ – um tempo de Jorge Amado, um mundo seu, que se incorpora ao País e passa a ser um, indissoluvelmente, com ele (OLINTO, 1961: 150).

Ainda em 1937, na revista Universidade, Aydano do Couto Ferraz divulga um artigo, no qual considera que, em Capitães da Areia, são revelados aspectos desconhecidos da vida de crianças abandonadas na Cidade do Salvador, sem terem quaisquer encaminhamentos futuros. Para ele, Jorge Amado é um jovem e notável escritor brasileiro, cuja obra começa a ter projeção mundial com traduções para diversos idiomas. Constata que se trata de um “[...] livro de grande intensidade lírica e dramática, o novo romance de Jorge Amado [...]” (FERRAZ, 1961: 151).

O crítico Brasil Gerson, em crônica publicada no ano de lançamento dessa narrativa amadiana, reconhece os méritos do escritor brasileiro, e não apenas em uma obra isolada, como também em outras anteriores. Deixa evidenciado queCapitães da Areia é outro grande romance seu e que, como Jubiabá, vai ser lido e traduzido fora, porque, no Brasil, temos um escritor da altura de Jorge Amado” (GERSON, 1961: 155).

Malgrado a reação desfavorável ao autor e a sua literatura, manifestada pela censura estadonovista, essa ficção ganha corpo na recepção críticamesmo abordando uma temática de denúncia das mazelas do capitalismo – e na vendagem continuada do livro, no Brasil e no Exterior.

Algumas recepções críticas não se escusam de acentuar senões nessa narrativa de Jorge Amado. É o que faz Edmundo Corrêa Lopes, em notícia de Cabo Verde, em 1937, com o olhar de visitante estrangeiro e sabedor das opções partidárias do escritor, conseqüentemente, de se avizinhar do chamado “romance de tese”, ao gosto dos comprometidos com o desejo de mudança social. Assim redige suas observações:

Quero ainda fazer uma ressalva, de resto feita pelo autor até onde importava ao seu brio e por outros como lhes vinha de propósito. Não se tome de “reportagem” no sentido de documentação de fatos, mas sim de colheita de material... literário. Aliás julgar-se-ia que o Reformatório das Pitangueiras é esse inferno dantesco (ideal não será, mas conheço miúdos que estiveram e... gostaram). E... os capitães da areia que roubam? Fora um ou outros casos em quartos de pensão, na Bahia se roubam galinhas e canos de chumbo, no escuro da noite, iludindo... a lei. (LOPES, 1961: 154)

A chancela do olhar feminino sobre Capitães da Areia pode ser observada em duas recepções críticas sutis por mim selecionadas: a da cineasta Anna Maria Linch e a da poeta Myriam Fraga.

A primeira concedida na entrevista a O Jornal, no Rio de Janeiro, em 1959:

A idéia de filmar Capitães da Areia me persegue desde que li o romance de Amado, esse inesquecível romance, há muitos anos. Há mais de dez anos pensei em representar na tela a figura de Dora, tão comovente e formosa. Hoje não tenho idade para fazê-lo pois Dora é uma menina, mas venho ao Brasil para concretizar a idéia de fazer de Capitães da Areia um grande filme de cinema. Porque não sei de romance mais belo, mais emocionante, mais generoso e humano do que Capitães da Areia. Um livro que é orgulho da literatura de toda a América Latina. (LINCH, 1961: 154)

A outra, é o pronunciamento poético de Myriam Fraga, emCapitães da Areia: recortes de leitura”, em publicação de 2004. Ao comentar o trecho da narrativa, quando acontece a visita dos “capitães da areia” ao velho e desbotado carrossel de Nhozinho França:

A grande noite se enche de luzes. O mundo todo parece girar, como um imenso carrossel, povoado de sonhos, num milagre que eles não poderiam entender, mas que os fazia ultrapassar sua condição de deserdados da sorte para um estado de graça onde sonhavam encontrar, na utopia da fraternidade, a solidariedade e a compreensão que sempre lhes faltaram. (FRAGA, 2004: 13)

As duas interferências confirmam tendências da ficção amadiana: o toque com vertentes da narrativa cinematográfica, o que aumentaria a recepção crítica do autor, não somente no plano nacional; e a poeticidade da construção textual, que se alia ao tema da exclusão, emprestando-lhe fecunda expressividade humana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AMADO, Jorge. Bahia de Todos os Santos: guia de ruas e mistérios. Ilustrações de Carlos Bastos. 40. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.

––––––. Discurso de posse na Academia Brasileira. In: Jorge Amado terra e povo: 40 anos de literatura. São Paulo: Martins, 1972. p. 3-22.

––––––. Capitães da areia. Salvador: FCJA, 2004

DUARTE, Eduardo de Assis. Jorge Amado: leitura e cidadania. In: AMADO, 2004, p. 39-50.

FAUSTO, Boris. História concisa do Brasil. São Paulo: EdUNESP, 2001.

FERRAZ, Aydano do Couto. Encerrando o ciclo de romances ... In: JORGE AMADO: 30 anos de literatura, 1961.

FRAGA, Myriam. Capitães da Areia: recortes de leituras. In: AMADO, 2004, p. 9-18.

GERSON, Brasil. “Capitães da Areia”. In: Jorge Amado: 30 anos de literatura, 1961.

LINCH, Anna Maria. A idéia de filmar... In: Jorge Amado: 30 anos de literatura, 1961.

LOPES, Edmundo Corrêa. “Capitães da Areia”. In: Jorge Amado: 30 anos de literatura, 1961.

OLINTO, Antônio. Capitães da areia. In: Jorge Amado: 30 anos de literatura. São Paulo: Martins, 1961.

OLIVEIRA, Waldir Freitas. 2002: os 65 anos de Capitães da areia. Revista de Cultura da Bahia, Salvador: Conselho Estadual de Cultura, n. 20, p. 41-53, 2002.

PEREZ, Renard. Jorge Amado: notícia biográfica. In: Jorge Amado povo e terra..., op. cit., p. 231-242.

RUBIM, Rosane; CARNEIRO, Maried (Org.). Jorge Amado 80 anos de vida e obra: subsídios para pesquisa. Salvador: Casa de Palavras, 1992.


 


 

[1] A edição de Capitães da Areia, em 2001, era a 104ª, enquanto a de Gabriela Cravo e Canela, o livro mais vendido de Jorge Amado, era, em 2000, a 83ª.

[2] INCINERADOS vários livros... Estado da Bahia, Salvador, p. 3, 17 dez. 1937.