DA
ALUSÃO À
CITAÇÃO, À
PARÓDIA, AO
LINK
Maria Lúcia Mexias Simon (USS)
1.
Os
arquétipos
de
gênero,
por
mais
abstratos
que
sejam, constituem
estruturas
textuais
sempre
presentes
no
espírito
de
quem
escreve (arquitexto). Perdem
sua
transitividade,
já
não
falam,
são
falados;
deixam de
denotar
para
conotar;
já
não
significam
por
conta
própria,
passam a
ser
material
de
reconstrução.
Dizer
que
a
obra
literária
vive e funciona num
sistema
e
que
o
seu
sentido
e
estrutura
só
se consagram
através
da
relação
com
os
seus
arquétipos
é
verdade
evidente.
“Dans l’espace d’un texte plusieurs enoncés, pris à d’autres textes, se croisent
et se neutralisent” (KRISTEVA, in BUSSATO, 1978).
A
relação
da
obra
de
arte
com
seus
arquétipos
pode
ser
de
realização,
de transformação
ou
de
transgressão.
Muitas
vezes,
é o
tipo
dessa
relação
que
define a
natureza
da
obra
(sátira,
drama,
imitação,
paródia,
citação,
plágio
etc). Os
contos,
mitos
e
histórias
tradicionais tendem a englobar-se e
formar
agregados
enciclopédicos,
distanciando-se
durante
séculos,
constituindo uma
série
de
analogias,
sobretudo
numa
cultura
homogênea.
Toda
obra
literária,
portanto,
se constrói
como
uma
rede
dupla
de
relações:
com
outras
obras
literárias e
com
outros
elementos
culturais. “Todo
texto
é
um
mosaico
de
citações,
é
absorção
e transformação de
outro
texto”
(LAURENT, 1979: 13). O
texto
– etimologicamente,
tecido
– é
entrelaçamento
de
fios
de
outros
discursos.
É
zona
de
interseção,
onde
se cruzam várias
séries
textuais
e
mesmo
elementos
não-textuais. A nenhuma
obra
se permite
que
através
dela,
não
se entrevejam
filamentos
de outras
obras,
sejam de
que
natureza
forem.
Ó
palimpsestos
humanados:
Esse
imensíssimo
poema
Onde
os
outros
se entrelaçaram....
Não
sou a
luz,
mas
fui
mandado
Para
testemunhar
a
luz
Que
flui deste
poema
alheio.
Amém.
(LIMA,
1980: 367 e 53)
E
mais:
A
arte
utiliza-se da
pessoa
do
artista
como
de
um
veículo
que
se
puxa
(não
auto),
possuindo
ela
sua
presença
própria,
sua
realidade.
A
arte
seria
revelação,
o
artista
espetáculo
dessa
revelação.
O
artista
é
apenas
um
colaborador na
magia
de
que
é
oficiante,
na
tragédia
sagrada
de
que
é
cúmplice.
(Idem,
p. 76)
O
único
problema
é
fazer
caber
vários
textos
num
só,
no
texto
que
absorve
outros,
embora
mantendo o
seu
próprio
sentido.
Os
poetas
(e a
poesia)
são,
freqüentemente,
errantes.
O intertexto
desempenha
o
papel
do filósofo, do
santo,
unanimemente venerado, tido
como
mártir
e de
quem
se
veste,
como
uma
roupa,
o
modo
de
dizer.
Na
literatura,
o
essencial
é
que
ela
seja o
compêndio,
o
mais
perfeito
possível,
de
tudo
o
demais.
“O
mistério
nunca
se oferece
por
si
mesmo”
(BORGES, 1969: 90). Essa
interferência,
esse
efeito
de
eco
são,
de
fato,
condição
de
legibilidade
da
obra
literária.
Fora
dessa
condição,
toda
obra
é
impensável.
Visto
que
sempre
os
textos
resultam de
um
trabalho
de
leitura,
de
absorção,
de
subversão,
ou
de
transfiguração
de
textos
de
base,
seus
autores
estarão incitando ao
jogo
da
descoberta
do hipotexto;
menos
explícita
e
menos
literal
que
a
citação
e o
plágio,
a
alusão
pressupõe
um
enunciado,
do
qual
o
conhecimento
supõe a
percepção
de uma
relação
entre
ele
e
um
outro
ao
qual
remete, obrigatoriamente, essa
ou
aquela de
suas
inflexões.
“Rimado
ou
não
rimado,
tudo
saiu espontaneamente de
mim,
embora
o
que
estivesse
dentro
de
mim
não
me
pertencesse.” (LIMA,
1980: 41)
“Releio e digo: ‘Fui
eu?’
Deus
sabe,
porque
o escreveu.” (PESSOA,
1977: 127)
2.
Visamos, neste
artigo,
a
apontar
os
links,
de uns a
outros
textos,
que
os tornam assimiláveis
por
uma
comunidade
e
que,
ao
mesmo
tempo,
tornam-se
retratos
dessa
mesma
comunidade.
O
momento
de
produção
escolhido foi o
que,
no Brasil, se chamou Tropicália,
ou
Tropicalismo. Nessa
fase,
de
intensa
movimentação
política,
sentiu-se a
necessidade
de
passar
um
grande
número
de
informações.
Na
escolha
das
informações
repassadas, o
autor
fazia
sua
profissão
de
fé,
seja citando
outros
autores,
seja citando a
si
mesmo,
seja citando
elementos
de
nossa
cultura,
aparentemente
dispersos,
fazendo dos
poemas
murais
de
informação.
Sendo
mesmo
a
simples
citação
uma releitura, uma
vez
que
coloca o citado
em
outro
contexto,
a
identificação
e
justificativa
das
citações
já
são,
por
conseguinte,
um
seu
reestudo. As
obras
intertextuais
não
revelam
crise
cultural,
mas,
ao
contrário,
são
um
evocar
formalmente,
ainda
que
seja
para
negar.
Partindo de
poemas
musicados,
principalmente,
e abordando,
também,
a
produção
literária
e
cinematográfica
do
período,
traçaremos essa
rede
de
citações,
que
é o
que
situa a
obra
de
arte
no
seu
contexto
socio-histórico-cultural.
3.
A
abordagem
do
movimento
denominado Tropicália poderá
trazer
alguma
luz
sobre
o conturbado
período
60-70 de
nossa
história.
Conturbado politicamente,
quando
a
repressão
deixava
apenas
os
palcos
artísticos
como
tribuna
de
debate
e,
mesmo
assim,
por
algum
tempo,
antes
que
o
movimento
armado endurecesse
suas
regras.
Por
outro
lado,
a
contra
propaganda
ativava-se, procurando coopções.
Freqüentemente,
saíam
esses
planos
ao
reverso,
especialmente
na
chamada
“música
brega”,
de
forte
apelo
popular,
como
veremos no
decorrer
do
trabalho.
Nosso
trabalho
baseou-se,
inicialmente,
em
obras
do
cancioneiro
popular,
da
década
de 70, no Brasil. Foi uma
fase
difícil
de
nossa
história,
quando
havia
temas
proibidos
e
temas
privilegiados. Várias foram as
saídas
encontradas
por
artistas
e
literatos
para
a
expressão
de
suas
idéias.
Desde
a
saída
propriamente
dita,
até
o
uso
de
fortes
metáforas,
passando
pela
carnavalização,
que,
de
resto,
não
foi uma
novidade
no
cenário
artístico
mundial. O
movimento
denominado
Tropicália,
aparentemente
de
breve
duração,
de
fato
sempre
houve e
ainda
perdura na
Cultura
Brasileira.
Se
em
determinada
época
robusteceu-se, deve-se a
fatores
sociopolíticos,
aqui
analisados.
A
dificuldade
está
em
determinar
o
grau
de explicitação da intertextualidade
em
qualquer
obra,
excetuando-se os
casos
de
citação
literal.
Abstraindo a
determinação
desse
grau,
limitamo-nos a
mencionar
as
ocorrências
de intertextualidade, justificando-a,
quando
possível.
4.
Uma
geração
sonhou
reverter
o
quadro
da
péssima
distribuição
de
renda
existente no Brasil.
Mas,
como
essa parece
ser
a
única
forma
de a
economia
brasileira
funcionar
(mal),
os
militares
tomaram o
poder,
em
1964. Houve,
também,
como
pano
de
fundo,
a
idéia
de
defesa
de
liberdade
de
mercado
(nos
empregadores),
o
medo
do
regime
comunismo
disseminado
pela
mídia
(nos
empregados).
Entre
essas
forças,
o Brasil lutava
por
se
definir,
dividindo-se
entre
manter
sua
individualidade
e, ao
mesmo
tempo,
sua
posição
periférica
ao
império
norte-americano.
A
chamada
revolução
de 64 foi,
em
parte,
fomentada
pela
propaganda
anticomunista
desse
mesmo
império.
Nesse
quadro,
formou-se o
movimento
denominado Tropicália,
um
impulso
criativo
na
arte
brasileira,
intensificado do
final
da
década
de 60 ao
início
da
década
de 70. Mostrou, de
forma
alegórica,
principalmente,
a
revolta
com
a desigualdade
reinante
no
povo
brasileiro,
sem
vinculação
cega
aos chamados, na
época,
movimentos
de. É,
também,
a
constatação
da
coincidência,
no Brasil, da
onda
de contra-cultura
com
o
auge
do
regime
autoritário.
O
nome
Tropicália, extraído de uma
música
de Caetano Veloso, soa
bem
e
não
adota o
sufixo
–ismo,
designativo
de
doutrina,
já
que
não
o
era.
Mesmo
assim,
vamos
encontrar
a
forma
tropicalismo,
em
trabalhos
a
respeito,
podendo
até
aparecer
no
presente
estudo.
No
início
do
nosso
século,
sabe-se
que
não
existia a
chamada
música
popular
brasileira.
Nos
salões,
dançavam-se os
ritmos
europeus,
ficando outras
manifestações
tidas
como
baixas,
vulgares,
reservadas aos
descendentes
de
escravos,
nos
seus
terreiros,
com
designações genéricas de
batuque,
lundu,
maxixe
etc. A
partir,
principalmente,
de Chiquinha Gonzaga e Nair de Tefé, os
ritmos
vulgares
foram aparecendo
nos
salões
e apresentados a
pessoas
de
outros
países.
Lembre-se
ser
o
violão,
até
algum
tempo,
desprestigiado
como
marca
de
vadiagem
e
desordem.
O
movimento
de 22
não
trouxe
sensíveis
contribuições
nesse
terreno,
apesar
de Villa
Lobos
tê-lo pretendido,
com
seus
cocos
e
berimbaus.
Na
década
de 30, e, a
seguir,
com
o
fenômeno
Noel
Rosa,
o
samba
ganhou
acordes
sofisticados,
letras
elaboradas, ganhou os
ambientes
de
família,
ganhou
registros
em
discos
e
trabalhos
acadêmicos.
Paralelo
ao
Estado
Novo,
criou-se o chamado samba-exaltação, de
propaganda
ufanista,
dos
quais
o
mais
famoso
é
Aquarela
do Brasil. Nas
décadas
de 40 e de 50, tinha-se essa
forma
de
samba
urbano
e,
por
outro
lado,
uma
música
regionalista, de
exagero
quase
caricatural.
Isso
na
chamada
música
de
meio
de
ano,
já
que
havia
fartura
de
composições
próprias
para
carnaval:
marchinhas
com
letras
de
duplo
sentido
e
sambas
de rasgado
sentimentalismo.
Já
na
década
de 50, houve uma
grande
importação
de
ritmos
latino--americanos e
europeus
que,
juntamente
com
a
música
brasileira,
sobretudo
o sambolero, concorria
com
a
voga
da
música
americana,
a
grande
invasão
do rock-roll. Se essa
tinha
concorrentes,
o
cinema
americano
não
os
tinha,
reinava
absoluto.
Esse
cinema
nos
trazia
som
e
imagem,
devidamente
consumidos e incorporados aos
hábitos
da
juventude.
Rapazes
de
jeans
e
botas,
moças mascando chiclets, de
rabo-de-cavalo,
eram, a
um
tempo,
exóticos
e
medíocres.
Despertavam
atitude
crítica
e condescendente
diante
de
sua
obvia inautenticidade.
Não
se cobrava
fidelidade
a raízes
regionais
ou
nacionais,
mas
criticava-se o
esforço
para
copiar
um
estilo
que
os deslumbrava,
mas
que
não
conseguiam
acompanhar.
Eram
canastrões,
provocavam
sorrisos
de
tolerância.
Na
verdade,
no
seu
comportamento
não
havia
traços
de
rebeldia,
mas
sim
de
conformismo
e
moralismo.
Os
gestos
com
que
pretendiam
obter
status
ocorriam
dentro
de uma
escala
de
valores
já
colocada. Marilyn e Elvis
são
os
grandes
ícones,
a
informação
nova,
o
século
XX. As
versões
das
letras
mostram a
falta
de
autenticidade,
que
resulta da desigualdade
social,
da
ignorância,
impondo
estilos
e
produtos.
Contra
essa
vertente,
sobreveio a bossa-nova,
por
um
lado
e,
por
outro
lado,
o iê-iê-iê, a
jovem
guarda,
que,
nos
seus
melhores
momentos,
não
foi uma
mera
cópia
do
que
se fazia no
estrangeiro
(era
acusada
somente
de
excesso
de ingenuidade). Essa
fase
foi,
também,
de
sambas
elaborados,
com
letras
de
conteúdo
político
ou
falando de
amores
infelizes.
A Tropicália
bebe
em
todas essas
fontes.
É uma
revolta
contra
a
ditadura
militar,
sim,
e,
mais
além,
uma
forma
de
andar
para
algum
lugar,
de
botar
algo
para
fora.
Nas
imagens
violentas das
letras
das
músicas,
nos
sons
desagradáveis dos
arranjos,
nas
atitudes
agressivas das
apresentações,
mostra
uma
identificação
com
a
guerrilha
urbana.
Os tropicalistas
são,
porém,
doces
e
alegres.
Pretendem situar-se
além
das
esquerdas
e
são
despudoradamente
festivos.
Despertam
carinho
em
pessoas
de todas as
rodas.
Nara
Leão,
com
toda
sua
delicadeza,
sempre
esteve ao
lado
deles. Buscam uma
pureza
regional,
mas
que
atinja uma
juventude
urbana.
Prestam
atenção
em
Roberto Carlos. Têm
que
dar
conta
do
imaginário
e da
problemática
particulares
do Brasil. Souzândrade, ressuscitado na
poesia
concreta,
e essa
própria
poesia,
assim
como
Oswald de Andrade e Mário de Andrade, têm participação
intensa
na
história
da Tropicália,
com
sua
montagem
nuclear,
fragmentada
em
muitos
cortes.
O
nome
foi tirado de uma
canção
de Caetano Veloso, sugerido
por
Luís Carlos Barreto,
por
achar-lhe
afinidade
com
um
trabalho
de
Hélio
Oiticica,
com
o
mesmo
nome
(VELOSO, 1997: 187). Os
tropicalistas pretendem
mostrar
o Brasil
exótico
aos
próprios
brasileiros.
“Um
turbante
de
bananas
não
é
útil
a
um
cientista,
mas
o
fato
‘Brasil’ libera
energias
criativas úteis a
quem
não
se
envergonhar
delas” (Idem, p. 207).
Isto
quer
dizer:
não
perderemos
nossa
personalidade
luso-indígena,
nem
mesmo
diante
de
máquinas
que
vão
nos
transformando
em
sociedade
industrializada. A Tropicália chegou
para
derrubar
as
defesas.
A
princípio,
ninguém
sabia, ao
certo,
de
que
se tratava. Há, no
movimento,
um
certo
masoquismo,
no
culto
pelo
antes
considerado
desprezível.
É
barroco,
no
sentido
de
extravagante,
sobrecarregado
ou
irregular.
Ganhou
corpo
na
história
da MPB
como
um
conjunto
de
atos,
cujo
centro
estava
em
outra
parte.
Faz
paródia
de
estilos
sentimentais,
tidos
como
cafonas,
e, ao
mesmo
tempo,
quer
enobrecê-los. A palavra-chave
para
entendê-la é
sincretismo.
Popularizou a
expressão
geléia
geral,
que
traz
tudo
de
mistura.
É
irônica
e
desconfiada.
Foi
chamada
chanchada,
paródia
da
paródia,
estética
do
deboche.
“As
canções
têm
vida
própria,
outros
podem revelar-lhes
sentido
de
que
seu
autor
não
teria suspeitado” (Idem, p. 337).
Os tropicalistas querem
ser
autores
e
não
só
personagens
de
sua
própria
obra.
São
pacifistas
e, ao
mesmo
tempo,
radicais.
Têm
parentesco
com
o
movimento
hippie.
Recusam o
papel
de
paladinos
ou
reformadores.
No
dizer
de
Chacrinha,
sua
figura
inspiradora,
não
vêm
para
explicar,
mas
para
confundir.
Não
têm
apetite
pela
luta
física,
porém
querem
abolir
o
casamento,
o
dinheiro,
o
Congresso,
as
forças
armadas,
a
polícia
e os
bandidos,
o
preconceito
e a
injustiça,
tudo
de uma
vez,
mas
“numa boa”.
A
seguir,
transcreveremos duas das
obras
mais
representantes do
período,
acompanhadas de
observações
dos
próprios
autores
ou
de
outros
mencionados na
bibliografia.
Na
escolha,
tivemos,
sobretudo,
preocupação
de uma
aproximação
temática.
I A
banda
Chico Buarque de Holanda
Estava à
toa na
vida
O
meu
amor
me chamou
Pra
ver a
banda
passar
Cantando
coisa de
amor
A
minha
gente sofrida
Despediu-se da
dor
Pra
ver a
banda
passar
Cantando
coisa de
amor
O
homem
sério
que contava
dinheiro parou
O
faroleiro
que contava
vantagem parou
A
namorada
que contava as
estrelas parou
Para
ver,
ouvir e
dar
passagem
A
moça
triste
que vivia
fechada sorriu
A
rosa
triste
que vivia
calada se
abriu
É a
meninada
toda se
assanhou
Pra
ver a
banda
passar
Cantando
coisa de
amor
O
velho
fraco se
esqueceu do
cansaço e pensou
Que
ainda
era
moço
pra
sair no
terraço e dançou
A
moça
feia debruçou
na
janela
Pensando
que a
banda tocava
pra
ela
A
marcha
alegre se espalhou na
avenida e
insistiu
A
lua
cheia
que vivia
escondida surgiu
Minha
cidade
toda se
enfeitou
Pra
ver a
banda
passar
Cantando
coisas de
amor
Mas
para
meu
desencanto
O
que
era
doce acabou
Tudo tomou
seu
lugar
Depois
que a
banda passou
E
cada
qual no
seu
canto
Em
cada
canto uma
dor
Depois da
banda
passar
Cantando
coisa de
amor
II
Alegria,
alegria
Caetano Veloso
Caminhando
contra
o
vento
Sem
lenço
sem
documento
No
sol
de
quase
dezembro
Eu
vou
O
sol
se reparte
em
crimes
Espaçonaves
guerrilhas
Em
cardinales
bonitas
Eu
vou
Em
caras
de
presidentes
Em
grandes
beijos
de
amor
Em
dentes
pernas
bandeiras
Bomba
e brigitte bardot
O
sol
nas
bancas
de
revista
Me
enche de
alegria
e
preguiça
Quem
lê
tanta
notícia
Eu
vou
Por
entre
fotos
e
nomes
Os
olhos
cheios
de
cores
O
peito
cheio
de
amores
vãos
Eu
vou
Eu
tomo
uma coca-cola
Ela
pensa
em
casamento
Uma
canção
me
consola
Eu
vou
Eu
tomo
uma coca-cola
Ela
pensa
em
casamento
Uma
canção
me
consola
Eu
vou
Por
entre
fotos
e
nomes
Sem
livros
e
sem
fuzil
Sem
fome
e
sem
telefone
No
coração
do brasil
Ela
nem
sabe
até
pensei
Em
cantar
na
televisão
O
sol
é
tão
bonito
Eu
vou
Sem
lenço
sem
documento
Nada
no
bolso
ou
nas
mãos
Eu
quero
seguir
vivendo
Amor
Eu
vou
Por
que
não?
Por
que
não?
Essa
última
é uma
composição
lírica
e musicalmente
audaciosa.
A
base
rítmica é a
marcha,
mas
o acompanhamento foi
feito
por
um
conjunto
dos denominados pop. O
título
foi extraído dos
programas
do
Chacrinha.
Algumas
pessoas
até
o desconhecem, chamam de “sem
lenço
e
sem
documento”,
ou
por
outros
versos.
O
título
é
irônico
em
relação
à
letra.
A
menção
à Coca-Cola foi
polêmica,
sua
também
ironia
não
foi
imediatamente
apreendida. Satirizam-se,
também,
os chamados
intelectuais
de
esquerda
(sem
livros
e
sem
fuzil)
e os
meios
de
comunicação
(pensei
em
cantar
na
televisão).
Ocorre o
já
citado
processo
de
reunir
elementos
da
nossa
cultura,
aparentemente
desconexos.
Insiste-se na
necessidade
de
absorver
informações
(a
banca
de
revistas,
quem
lê
tanta
notícia).
A
composição
é
datada,
já
que
menciona
ícones
da
época:
Brigitte Bardot, Claudia Cardinale. Há
contestação
à
ditadura
do bom-gosto dos
festivais,
mesmo
tendo sido apresentada
pela
primeira
vez
num
festival,
num
jogo
de
cena
já
tropicalista,
com
uso
de
guitarras
elétricas,
para
escândalo
dos puristas da MPB. O
refrão
soa
como
um
desafio:
“por
que
não”.
As últimas
palavras
foram extraídas de As
palavras
de J. P. Sartre.
A
banda
e
Alegria
tem
tudo a
ver.
Elas representam o
casamento da MPB e da
música
jovem.
Porém , A
banda,
que
não faz
parte da
obra
maior de Chico Buarque de Holanda, é
atemporal, atópica,
embora fale
em “minha
gente sofrida”,
enquanto
Alegria,
alegria
é
datada,
fala de
fatos da
época. A
imprensa, na
ocasião falou
em
paródia,
em
antagonismo,
mas
não é disso
que se
trata.
Alegria
é uma
outra
Banda,
ainda
que
não seja, a
paródia, obrigatoriamente uma
troça. Os
dois
primeiros
versos de
cada
composição poderiam
ser permutados. Ambas
são antiquadas na
sua
estrutura heptassilábica,
já
presente no
português
arcaico. O
personagem é o
mesmo
pícaro. O
tópico da
moça na
janela
em A
banda
seria,
mais
tarde, várias
vezes retomado
pelo
autor,
assim
como a efemeridade da
alegria e a
volta da
inevitável
tristeza: “carnaval, desengano,
deixei a
dor
em
casa
me esperando”; “amanhã
tudo
volta
ao
normal”.
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