FIGURAÇÕES ALEGÓRICAS DA MÁQUINA DO MUNDO

Ana Lúcia M. de Oliveira (UERJ)

Esta comunicação pretende enfocar o poema “A máquina do mundo”, de Carlos Drummond de Andrade, a partir de um exame da sua configuração alegórica. O ponto de partida será uma análise comparativa de textos seminais que desenvolveram a alegoria da máquina cósmica, especialmente A Divina Comédia e Os Lusíadas. A partir da análise do dialogismo poético em relação a essa tópica, buscaremos detectar a grande diferença introduzida pelo poema drummondiano, em que a visão transcendental oferecida pela máquina, em vez de provocar surpresa e admiração, é desinteressadamente recusada pelo eu poético.

Em “A máquina do mundo”, publicado no livro Claro enigma (Andrade, 1973: 197-200), encontramos um arcabouço narrativo em primeira pessoa. Apesar de longo (com 96 versos), o poema apresenta apenas seis períodos, que estruturam três seqüências narrativas básicas. A primeira está representada nos nove primeiros versos, que delineiam a moldura espácio-temporal - “fecho da tarde” (v. 3) e “estrada de Minas, pedregosa” (v. 2) - do acontecimento que será narrado. Na segunda seqüência, ocupando a maior parte do poema, a aparição da máquina e seu discurso de início se apresentam discretamente, mantendo o clima de introspecção do solitário caminhante revelado na primeira seqüência: “Abriu-se majestosa e circunspecta,/ Sem emitir um som que fosse impuro/ nem um clarão maior que o tolerável” (vv. 13-15). A máquina o convida a se aplicar “sobre o pasto inédito/ da natureza mítica das coisas” (vv. 29-30); entretanto, por não obter resposta, muda de tom, tornando-se mais categórica:

olha, repara, ausculta: essa riqueza

sobrante a toda pérola, essa ciência

sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,

esse nexo primeiro e singular,

[...]

vê, contempla,

abre teu peito para agasalhá-lo. (vv. 40-48)

Nesse fragmento do discurso da máquina, podemos observar os recursos utilizados para seduzir o viajante. Em primeiro lugar, a reiteração de verbos no imperativo dentro do mesmo campo semântico - “olha”, “repara”, “vê”, “contempla” - serve de reforço ao convite inicial. Também a enumeração dos elementos a serem revelados assim como o número de adjetivos usados para descrevê-los - “sublime”, “formidável”, “total”, “primeiro”, “singular” - reforçam o pedido. Finalmente, um apelo emotivo, ao ordenar que o coração do poeta acolha o que sua mente não se dispõe a aceitar. No entanto, todos esses recursos revelam-se inúteis. Para um apelo visual, a recusa se dá no mesmo nível: por não querer ver os conhecimentos oferecidos pela máquina, o viajante drummondiano baixa “os olhos incurioso, lasso” (v. 88). Desdenhada a visão da grande máquina, instaura-se uma nova seqüência, que retoma a situação inicial: o viajante continua a sua jornada, agora totalmente imerso nas trevas, as quais indiciam o tempo decorrido entre o surgimento da máquina no fecho da tarde e o seu desaparecimento já na noite, e também simbolizam o isolamento total do eu, a sua recusa do conhecimento e da comunicação com o engenho sobrenatural.

Destaque-se ainda que a narração começa in media res, no meio de uma caminhada numa estrada de Minas, em que o viajante encontra-se envolto por sentimentos de introspecção e renúncia, atribuídos posteriormente ao cansaço de uma busca não concluída, à procura de um conhecimento jamais encontrado. Esses sentimentos determinarão sua atitude posterior face à máquina bem como a retomada de sua solitária caminhada na seqüência final. Tal retorno ao ponto de partida denota a impossibilidade de superação de sua condição primeira e ressalta também o continuum da caminhada, não interrompida nem após revelações tão surpreendentes. Concretizando, portanto, a volta circular ao início, há a repetição quase total do segundo verso no penúltimo terceto: “sobre a estrada de Minas, pedregosa”.

Observemos mais de perto o viajante desse poema. Ele é o ser que caminha sozinho, identificando-se com a paisagem árdua através da escuridão maior, vinda dos montes e de seu próprio ser desenganado (vv. 8-9). Em seu isolamento, nega a busca existencial, a tentativa de compreensão do enigma do mundo, que antes o caracterizara. E, recusando a revelação suprema oferecida pela máquina, abdica, portanto, de um conhecimento metafísico, como podemos observar nos seguintes versos: “pela mente exausta de mentar/ toda uma realidade que a transcende” (vv. 18-19) e “quantos sentidos e intuições restavam/ a quem de os ter usado os já perdera/ e nem desejaria recobrá-los” (v. 23-25). Desse modo, a aparição do impedimento momentâneo de sua caminhada sobrevém quando já estava definida a sua nova postura face aos obstáculos cotidianos com que já se acostumara e que ocasionaram o seu estado de desistência.

É importante enfatizar a correlação entre a postura de isolamento do viajante e o ambiente físico descrito no poema, entre seu “passo seco” e a “estrada pedregosa”. O caminho deserto e árido constitui o elemento topológico a partir do qual ele se define como ser solitário, índice do seu conflito não só existencial, como também epistemológico. Afastado de seus semelhantes, o homem se reflete na paisagem através de signos de isolamento e dificuldade, e tal jogo de espelhos é reiterado no plano acústico, em que o sino rouco se mistura ao som seco de seus sapatos (v. 4). Lentos são seus passos e também os movimentos das aves (v. 5-7), e a escuridão final apresenta-se, simultaneamente, segundo José Guilherme Merquior, “como sombra do céu e do homem” (1975: 83). Sendo pedregosa, a estrada retoma o tema da dificuldade, do obstáculo no caminho, tão caro à obra de Drummond, e exemplificado no conhecido poema “no meio do caminho” (1973: 12), que aliás apresenta a mesma descrição metonímica de cansaço visual-epistemológico - “na vida de minhas retinas tão fatigadas” (idem, ibid.) - presente no viajante de “pupilas gastas na inspeção...” (v. 16).

Passemos agora a uma breve discussão do diálogo intertextual que se estabelece no poema em foco, esboçando uma comparação com a Divina Comédia, com Os Lusíadas e com outros textos de Drummond.

Inicialmente, destaque-se que a própria Divina Comédia foi elaborada a partir de relações intertextuais com o sistema épico precedente. Como se sabe, sua concepção geral baseia-se num encontro espiritual do poeta com Virgílio, que o conduz numa viagem através do Inferno e do Purgatório, até atingir o Paraíso, onde o poeta passa a ser conduzido por Beatriz. Tal ligação com Virgílio, segundo Ernst Curtius, é, historicamente, “a confirmação do laço que a Idade Média Latina criou entre o mundo antigo e o moderno” (1973: 358).

Vários críticos já observaram alguns paralelos temáticos e formais entre o poema drummondiano e o de Dante. Segundo Emanuel de Moraes, no primeiro “situa-se o poeta em face do problema do destino, e, pela localização paisagística do ser cuja alma expressa, sua poesia se conduz pela mesma linha antes singrada por Dante e Poe na desensofrida busca do mistério” (In: Brayner, 1977: 120). Para Affonso Romano de Sant´Anna, a semelhança se dá no nível formal do poema, composto em “terzas, que lembram os degraus com que Dante subiu a interpretar o mistério do Inferno-Purgatório-Paraíso” (1980: 243). Também Haroldo de Campos considera tal poema “um ensaio de poesia metafísica (quem sabe até de secreta teodicéia laica), no qual se recorta o perfil dantesco” (In: Brayner, 1977: 249).

De fato, alguns pontos são passíveis de comparação entre as duas obras. Quanto ao tema, ambas apresentam uma situação semelhante: um viajante solitário na noite a quem é dada uma forma de revelação transcendental. Mas, a partir dessa situação temática única, os poemas desenvolvem caminhos radicalmente diferentes. Pertencendo a uma época para a qual Deus ainda não havia morrido, o poema de Dante descreve um ser humano com uma cosmovisão teocêntrica que, como tal, busca a união com o sagrado. Diante da grande revelação divina, o poeta-viajante manifesta uma alegria intensa, uma forma de êxtase místico-espiritual. Já o caminhante drummondiano não aspira a uma visão mística, uma vez que esta não lhe satisfaz mais, pois “a fé se abrandara” (v. 72). Recusando a visão proposta pela máquina, reafirma a laicização do conhecimento moderno. Desdenha a oferta maravilhosa e segue seu caminho difícil, porque não pode aceitar o que não se origina de “seu próprio ser desenganado” (v. 9).

Quanto à parte formal, ambos se apresentam estruturados em tercetos. A terza rima foi criada por Dante como uma forma apropriada à sua poesia, devido à referência simbólica à Santíssima Trindade. Como reflexo desse simbolismo de base católica, encontramos vários elementos triádicos: além da terza rima, os três cántiche, os trinta e três cánti em cada cántica, as nove divisões de cada plano e, inclusive, o próprio ano em que a narrativa se desenrola: 1300. Já Drummond empregou os tercetos clássicos, mas não no modelo encadeado e rimado de Dante, afastando-se da disposição estrófica e da cadeia de rimas triplas interligadas do poema italiano. Não assumindo uma postura mística em sua concepção da máquina do mundo, o poeta mineiro utiliza os tercetos como um simples recurso formal, dissociando-os do simbolismo religioso manifesto na Divina Comédia. Na aguda formulação de Alfredo Bosi, a “Máquina do mundo” foi “escrita segundo o modelo da terza rima dantesca, mas... sem rima, já que seus decassílabos são rigorosamente brancos” (1988: 95).

Apesar de encontrarmos na obra de Drummond constantes referências a Camões, os estudos comparativos entre os dois poetas se concentram na “máquina do mundo” e n´Os Lusíadas.

O episódio de revelação da máquina, feita pela ninfa Tétis a Vasco da Gama e seus companheiros, constitui a parte final da epopéia lusa, realizando uma síntese alegórica da cosmovisão não só do autor como também de sua própria época. Com efeito, “a epopéia camoniana foi conseqüência da própria evolução cultural e científica do país. Surgiu no momento adequando, quando era esperada, [...] como coroamento do esforço de toda uma coletividade que declinava” (Teles, 1976: 37). Expressiva de um dado momento histórico, essa obra formula uma síntese da cultura medieval com a renascentista, que se reflete na concepção da máquina do mundo, não só nos níveis histórico - os feitos dos navegantes portugueses - e científico - a teoria cosmológica ptolomaica ainda corrente na época -, como também no ficcional - o entrelaçamento do maravilhoso pagão e do cristão, típico do momento de transição representado pelo século XVI. Esse momento de transição se evidencia em certos conflitos básicos que permeiam a obra, como, por exemplo, o contraste entre o sentimento da dignidade do homem, que, com sua ousadia consegue quebrantar os “vedados térmicos”, candidatando-se por isso à divinização, e o da sua insignificância de “bicho da terra tão pequeno”.

Por estar estritamente relacionada à forma mentis do seu tempo, a máquina camoniana diverge em vários aspectos da máquina drummondiana, satisfazendo, conforme assinalou Silviano Santiago (1966: 393) curiosidade diferentes. Na primeira obra, uma curiosidade geográfica e astronômica dos navegantes portugueses, apresentando uma lição de mecânica celeste e de geografia universal. Em termos de lógica narrativa, a máquina é o artifício que permite inscrever no âmbito do poema as conquistas futuras dos portugueses, indicadas no discurso profético de Tétis, a partir do globo mágico. Já na segunda, ao contrário, a máquina se propõe a satisfazer uma curiosidade humana e filosófica que lhe havia sido negada antes. Trata-se de uma máquina ontológica, que proporciona o conhecimento da vida e do mistério do ser.

No poema de Drummond, a revelação da máquina constitui não um episódio, como nos Lusíadas, mas o elemento estruturador central. Afastando-se mais da epopéia lusa, ele inverte o tratamento da temática: àqueles a quem foi anteriormente dado o conhecimento do engenho divino, o prêmio foi recebido com satisfação, mas o viajante drummondiano recusa a oferta ao ser tentado. Outra diferença básica encontra-se na configuração do maravilhoso. O plano ficcional d´Os Lusíadas se estrutura a partir da intervenção dos deuses pagãos no decorrer da viagem dos portugueses, porém esse maravilhoso pagão está subordinado à ordenação cristã do mundo. Já em Drummond a máquina, pertencente a um plano extraterreno, é questionada pelo viajante, que, por não acreditar em auxílios superiores, rejeita os conhecimentos por ela oferecidos, negando com isso a possibilidade de qualquer recurso à transcendência. Outro ponto de diferença está no fato de a máquina ser apresentada, no poema luso, através da intervenção de Tétis, enquanto no poema drummondiano é a própria máquina que se revela diretamente ao observador. Nessa revelação, uma semelhança: o recurso de sedução da máquina, nos dois casos, se apóia em um imperativo apelo visual. No primeiro, através da repetição anafórica constante dos verbos “olha” e “vê”; no segundo, como vimos, pelo emprego de verbos pertences ao mesmo campo semântico: “olha”, “repara”, “ausculta”, “vê”, “contempla”.

Por fim, destaque-se o diálogo do texto em foco com outros poemas do autor. A situação narrativa de “A máquina do mundo” é análoga à de “No meio do caminho” (Andrade, 1973: 12), “Carrego comigo” (Andrade, 1973: 79) e “O enigma” (idem, 162). A propósito de tal analogia, Silviano Santiago já observou “uma reincidência do tema no tempo, onde se sobressai a evolução de um símbolo: um objeto (pedra, embrulho e coisa) que de repente brota, não se sabe nem de onde nem para quê, e que, intrigante, intercepta o caminho e os passos do poeta” (1966: 389). Esse objeto se oferece a ele, instigando a sua curiosidade, revelando-se como um enigma a ser decifrado. E, como enigma, é obscuro, pois “zomba da tentativa de interpretação” (Andrade, 1973: 162).

Apesar de o arcabouço narrativo ser o mesmo, “A máquina do mundo” apresenta variações com relação aos textos citados. Em primeiro lugar, especifica tempo e local em que se dá o encontro com o objeto, ao contrário do que ocorre nos outros poemas, em que as circunstâncias são deixadas em suspense. Em todos eles o objeto se oferece, mas, contrastando com os objetos anteriores, que permaneciam fechados e herméticos, impossibilitando a sua compreensão, a máquina agora se abre, convidando o caminhante a penetrar em seu interior e conhecer “a total explicação da vida” (v. 43). A capital diferença é que agora o eu não aceita a “coisa oferta”, não se mostra curioso face à tentativa de revelação do enigma, que tanto o intrigara anteriormente. Nessa perspectiva, aceitar a oferta da máquina seria negar a autonomia do pensamento, transferir para um objeto mágico a solução de suas inquietações humanas, demasiado humanas.

Nesse viés comparativo, torna-se interessante confrontar a imagem da máquina do mundo plasmada em “Elegia 1938” (Andrade, 1973: 59) - “Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina/ e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis mistérios” - com a que aparece no poema em questão: “e a máquina do mundo, repelida, se foi miudamente recompondo”. Cumpre aqui notar a oposição dos vocábulos “grande” e “miudamente”, ambos aplicados à máquina e que refletem diferentes configurações do lirismo do autor, que Antônio Carlos Secchin (2003: 168) denominou de “sucessivos movimentos de sístoles e diástoles, de expansões e retrações”. No primeiro poema, que significativamente pertence ao livro Sentimento do mundo, o poeta sente-se pequeno diante da grandeza e dos mistérios do universo, que superam o seu drama existencial. Já o segundo situa-se em um momento diferente da sua criação, em que sujeito e objeto se encontram no mesmo plano. Tal fusão eu/mundo já está indiciada no início do poema - como observamos - através da escuridão, vinda do monte e do seu próprio ser desenganado (v. 8-9), e do som do sino rouco que se mistura ao som de seus sapatos (v. 3-4).

Sintetizando, pode-se dizer que “A máquina do mundo” reflete não um pessimismo epistemológico, mas uma negação do conhecimento gratuito, que se oferece sem ter sido buscado. Reflete também um humanismo tipicamente moderno, com sua recusa de uma realidade sobrenatural, de soluções exteriores ao próprio homem. Por fim, esclarece-se não o enigma, mas a sua condição básica de existência: o enigma deve permanecer enquanto tal, pois não é passível de solução que não dependa de uma intervenção sobre-humana.

Minhas retinas tão fatigadas apenas apreenderam de esguelha o inusitado acontecimento: no meio do caminho tinha uma máquina, tinha uma máquina no meio do caminho. Para concluir, citarei um verso do poema “Manual da máquina CDA”, de Armando Freitas Filho, que sintetiza com precisão o núcleo desse maquinismo aqui examinado: “A máquina é de pedra e pensamento” (2003: 63).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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