O
LEITOR
IMPLÍCITO NAS
NARRATIVAS INFANTIS
DE CLARICE LISPECTOR
Telma
Maria Vieira
(Unicastelo)
Clarice
Lispector é reconhecidamente uma das
grandes
escritoras brasileiras do
século
XX.
Sua
obra
em
muito
contribuiu
com
as renovações ocorridas
em
nossas
letras,
a
partir
dos
anos
40.
Desde
a publicação do
primeiro
romance,
Perto
do
coração
selvagem,
em
1943, o
monólogo
interior,
as
reflexões
de sondagem existencial, a
denúncia
dos
limites
e da
insuficiência
da
linguagem
marcaram
sua
produção.
A
tentativa
de
resgatar
experiências
intuitivas e reuni-las, de
modo
aparentemente
sem
sentido,
para
dar-lhes
um
sentido
maior,
ao
mesmo
tempo
em
que
analisava, sub-repticiamente, o
processo
de
criação
literária,
levou ao
uso
de
linguagem
simbólica e
imagens
insólitas,
que
lhe
valeram o
estigma
de escritora enigmática. Na
verdade,
para
ela,
a
literatura
é
um
espaço
para
diálogo
entre
realidade
e
ficção:
meio
de
conhecimento
do
outro
e de
si
mesma.
Nesse
espaço,
ela
cria
personagens
fragmentadas,
em
episódios
também
fragmentados,
que
revelam uma
escritura
voltada
para
a
problemática
do
ser
e do
dizer.
As
reflexões
e questionamentos a
respeito
do
fazer
literário
são
incorporados à
narrativa,
transformando-a
em
uma
rede
metalingüística, na
qual
o
trabalho
do
escritor
torna-se
objeto
da
própria
ficção,
ou
seja, o
texto
e
todos
os
elementos
que
contribuem
para
o
processo
de
criação
literária
são
ficcionalizados. Há a “ficcionalização” do
autor:
Clarice Lispector-autora é, a
todo
momento,
textualizada,
pois
não
está
apenas
narrando uma
história,
mas
um
processo
que
freqüentemente
vivencia; há a “ficcionalização” do narrador
que,
em
alguns
momentos,
se confunde
com
o
autor,
tendo
em
vista
que
ambos
são
textualizados; há,
ainda,
a “ficcionalização” do
leitor
que,
como
o
autor
e o narrador, adquire
status
de
personagem
e exibe
características
que
definem
seu
perfil.
Segundo
Umberto
Eco,
“um
texto
requer
movimentos
cooperativos,
conscientes
e
ativos
da
parte
do
leitor”
(Eco,
1986:36);
logo,
o
autor
prevê
seu
leitor
e age no
sentido
de
organizar
o
texto
para
que
ocorra
um
tipo
de
leitura,
que
ele,
autor,
considera adequada às
suas
intenções.
Assim,
não
apenas
conjetura
um
leitor-modelo
para
seu
texto,
mas
utiliza
estratégias
para
que
este
preencha
certas
condições,
estabelecidas
por
ele.
As
produções
de Clarice Lispector ratificam as afirmações de Umberto
Eco.
Nelas, a Autora prevê e direciona o
leitor
que
considera
ideal
para
seus
textos.
Para
isso,
utiliza
elementos
textuais
que
guiam a
atividade
interpretativa
dele,
como,
por
exemplo,
técnicas,
como
a
suspensão
de
impressões
e
idéias,
que
são
resgatadas
posteriormente.
Ontem no
entanto perdi
durante
horas e
horas a
minha
montagem
humana. Se
tiver
coragem,
eu
me deixarei
continuar perdida. (...)
Ontem
de
manhã
-
quando
saí da
sala
para
o
quarto
da
empregada
-
nada
me
fazia
supor
que
eu
estava a
um
passo
da
descoberta
de
um
império.
(A
paixão
segundo
G.H.)
Na
obra utilizada
como
exemplo, a narradora insinua
que experimentou
algo
diferente
que a afetou intimamente.
Contudo,
não narra o
fato
imediatamente, ao
contrário, desenvolve
reflexões a
respeito de outras
coisas e
deixa
em suspenso o
que
lhe aconteceu,
para
retomar
adiante,
quando,
então, faz
referências a
um
império,
cujo
mistério
só é revelado ao
fim da
narrativa.
Além disso,
também recorre a
construções
irregulares,
tais
como: “o
mundo se
me
olha”; “Eu
não sou
Tu,
mas
mim és
Tu”,
que conduzem o
leitor a
reflexões a
respeito da
existência e da
utilização da
linguagem. Essa
atividade bastaria
para
que
ele fosse
co-autor da
obra,
porém
ela exige
mais: “Preciso
terrivelmente de
você.
Nós temos
que
ser
dois.
Para
que o
trigo fique
alto” (Água
Viva).
A participação deverá
ser de
tal
ordem
que
ambos construam a
obra
concomitantemente,
com o
mesmo
grau de envolvimento
para
com a
literatura e a
vida.
Clarice Lispector tem
como
aspiração
transcrever os
momentos de
vida, captados na
observação do
cotidiano,
como podemos
constatar nas personagens-narradoras,
como G.H., de A
paixão
segundo G.H.,
que pretende
narrar a
experiência
que vivenciou ao
esmagar uma
barata na
porta de
um
guarda-roupa; a narradora de
Água
Viva,
que
deseja
narrar ao
amado as “sensações do
atrás do
pensamento”; Rodrigo S. M., de A
hora da
estrela,
que
quer
narrar a
história da nordestina Macabéa; o
Autor, narrador de
Um
sopro de
vida,
que ambiciona
escrever
um
livro e
cria uma
personagem
para auxiliá-lo.
Porém, todas as personagens-narradoras esbarram no
problema da
linguagem,
pois pretendem
trabalhar
com
sensações.Os
textos surgem da
tentativa de
narrar as
sensações,
por
isso
são
inusitados, exigindo decifração do
leitor.
Como a Autora,
que é
constantemente textualizada, se analisa e se
constrói
com o
processo metalingüístico do
texto, o
leitor ao “auxiliá-la” poderá, “num
exercício de
coragem”,
realizar
suas próprias
reflexões
sobre
sua
vida,
ou seja, poderá,
como
ela, analisar-se e construir-se.
Para
isso, deverá
também
ser
um
operário da
linguagem e,
por
meio da
leitura,
incidir
sua
narrativa (leitura) na
voz narradora, reescrevendo,
assim,
um
novo
texto.
Levado a
confrontar
um
texto
propositadamente
obscuro,
que põe
em
xeque a
linguagem,
elemento de
organização do
homem, o
leitor clariceano é
obrigado a
assumir a
postura de Édipo e
decifrar o
enigma
para
não
ser devorado
por
ele. Ao fazê-lo,
leitor e
texto completam
um
circuito
comunicativo,
que
só é
possível
mediante a
interação
entre
ambos.
Não poderíamos
tratar da
interação texto-leitor
sem realizarmos algumas
considerações
sobre a
chamada
Estética da
Recepção, o
que se faz
pertinente
devido
sua
proposta,
que é
estudar a
literatura tendo
como
parâmetro o
leitor. Essa
teoria surge no conturbado
contexto dos
anos 60/70,
quando
todos os
setores da
sociedade experimentavam transformações
consideráveis e tem na
figura de Hans Robert Jauss
seu
principal
defensor. Contrapondo-se ao
estruturalismo,
que apreciava nas
análises literárias
apenas o
texto, e ao
marxismo,
cuja
relevância estava no
aspecto
social,
ele considerou
que
todo
texto
literário é destinado a
um
leitor e
não a
interpretações filológicas e históricas.
Logo, a
existência de uma
força
histórica e criadora
lhe é
imanente.
Esse
fundamento concedeu ao
leitor
um
espaço
como
sujeito
agente na
obra
literária e direcionou
vários
outros
teóricos, cujas
pesquisas se voltam
para a
atividade do
leitor.
Dentre
eles, destacamos Wolfganger Iser,
cujo
nome é
freqüentemente
associado a Jauss.
Porém, diferencia-se dele
que julga o
leitor
como
um
indivíduo
histórico,
explícito ao
texto,
responsável
pela
recepção
positiva
ou
negativa da
obra
literária; Iser considera
que o
texto
literário contém
lacunas e
pontos de
indeterminação
que exigem
um “preenchimento”
por
parte do
leitor e
que a
obra exerce
sobre
ele
um
efeito
estético,
ou seja,
resposta
ou
reação a
partir da
leitura.
Esse
leitor
virtual está
implícito na
narrativa.
Segundo Iser,
o
processo
comunicativo
entre
texto e
leitor ocorre da
interação
entre
ambos,
isto é, as
exigências daquele e a
resposta deste.
Contudo é
imperativo
destacar as
diferenças existentes
entre
interação texto-leitor e
interação
interpessoal. Nas
relações
interpessoais há uma
atividade
interpretativa da
imagem do
outro,
ou seja, as
pessoas, ao se comunicarem, procuram
agir de
acordo
com o
que acreditam serem as
expectativas do
interlocutor,
embora seja
impraticável
corresponder
totalmente, tendo
em
vista a impossibilidade de conhecê-las.
Paradoxalmente, essa impossibilidade funciona
como
elemento
propulsor de
ações interpretativas,
isto é, na
relação
face a
face,
por
exemplo, valemo-nos de
perguntas e
respostas, na
tentativa de
superar
prováveis
contingências,
que comprometeriam a
comunicação.
Na
relação texto-leitor,
em
que o
confronto
face a
face é
impossível,
como é o
caso do
leitor e do
texto, há
um desequilíbrio, ao
qual Wolfganger Iser denominou “vazios”,
que
são
fundamentais no
processo de
interação.
Eles assinalam a
quebra das
conexões dos
segmentos
textuais,
ou seja, indicam
quais devem
ser conectados de
acordo
com o
ponto de
vista do
leitor
que, ao fazê-lo, enriquece
sua
atividade ideativa.
Também impõem
dificuldades ao
leitor, induzindo-o a se
afastar de
um
contexto de
ações
pragmáticas,
para
atingir
algo
além de
suas
projeções.
Assim, os
vazios ampliam o
leque de possibilidades de significações das
conexões dos
segmentos
textuais e,
conseqüentemente, da
atividade ideativa do
leitor.
Ao
classificar os
possíveis
tipos de
vazios
em uma
obra, Wolfganger Iser verificou
que
um
romance de
tese limita e controla a participação do
leitor,
pois oferece
um
objeto
dado,
ou seja, uma
situação pré-determinada, de
acordo
com os
valores do
público visado, deixando
como
opção uma
projeção de
sim
ou
não
diante da
obra.
Por
outro
lado, os
folhetins,
que alcançaram
seu
auge no
século XIX, procuram
comercializar a
atividade do
leitor ao
considerar
suas
normas e
valores na
elaboração do
texto,
além de
conseguir
êxito promovendo os
cortes
nos
momentos de
tensão
máxima, estimulando a
imaginação.
Na
obra clariceana, os
vazios
são multifacetados
porque possibilitam preenchimentos variados e
diferenciados.
Portanto, diferem dos
vazios encontrados,
por
exemplo,
em
romances de
tese. Nas
narrativas, há
um
texto
não manifestado
verbalmente
que faz da
obra
um
trabalho
inacabado,
isto é, não-palavras,
entrelinhas e
silêncios
que impulsionam o
leitor a
acrescentar
seus
traços
individuais ao
ato da
leitura.
Assim, a
escritura de Clarice Lispector
procura
romper
com as
fronteiras do
signo, necessitando,
portanto, de
um
leitor
especial
que esteja
disposto a
ler de
forma ilimitada e se
construir ao
longo da
narrativa,
pois,
para
ela, “a
compreensão do
leitor depende
muito de
sua
atitude na
abordagem do
texto, de
sua
predisposição, de
sua
isenção de
idéias preconcebidas” (A
descoberta do
Mundo).
Desse
modo,
o
perfil
do
leitor,
implícito
nas
narrativas
dirigidas a
adultos,
é de
alguém
capaz
de
abdicar
de
conceitos
prévios,
para
conseguir,
como
ela,
ultrapassar
os
limites
do
signo
e
ler
o subtexto,
expresso
nos
vazios
e nas
entrelinhas:
realizar
uma
leitura
com
tendência
ao
sensorial
e, desse
modo,
captar
a
essência
das
coisas,
como
ela
procura
escrever.
Esse
seria,
portanto,
o leitor-modelo-clarice
para
a
produção
literária
composta
de
romances,
crônicas
e
contos.
Porém,
na
obra
clariceana,
também
encontramos
narrativas
voltadas ao
público
infantil,
as
quais,
provavelmente, prescindem de
um
leitor
diferenciado deste.
Clarice
Lispector produziu
cinco
obras
infantis: O
mistério
do
coelho
pensante,
A
mulher
que
matou os
peixes,
A
vida
íntima
de
Laura,
Quase
de
verdade
e
Como
nasceram as
estrelas:
doze
lendas
brasileiras,
que
elegemos
como
corpus
de
nossa
análise.
Nessas
obras,
também
há
metalinguagem,
o
que
indica a possibilidade de traçarmos o
perfil
do
leitor
infantil-modelo-clarice,
implícito
nas
narrativas.
O
primeiro
livro
infantil
da Autora, O
mistério
do
coelho
pensante,
foi,
segundo
ela,
escrito
a
pedido
de
seu
filho
Paulo; é uma
homenagem
dela a
dois
coelhos
que
ele
e
seu
irmão
Pedro possuíram.
Publicado
em
1967, o
livro
traz
um
texto
introdutório
que
prepara
o
leitor
para
as
páginas
seguintes;
artifício
que
ela
utilizou no
romance
A
paixão
segundo
G.H.,
publicado
em
1964.
Por
tratar-se de uma
história
para
crianças,
Clarice, no
prefácio,
dirige-se aos
adultos
que
eventualmente
realizem a
leitura
da
narrativa,
aos
quais,
diz tratar-se de uma
história
“para
exclusivo
uso
doméstico”
e
que,
por
isso,
as
entrelinhas
devem
ser
completadas
com
explicações
orais,
ou
seja,
para
ela,
o
melhor
da
história,
pois
se
trata
de uma
história
de
mistérios,
que
levará a
criança
a
descobrir
outros
mais.
O
livro
segue a
tradição
das
produções
anteriores:
colhe
um
episódio
do
cotidiano
- “Pois
olhe, Paulo,
você
não
pode
imaginar
o
que
aconteceu
com
aquele
coelho”
- e o apresenta ao
leitor
de
maneira
impactante.
Esse,
por
sua
vez,
familiarizado
com
o
estilo
de Clarice Lispector,
imediatamente
realiza
conexões
com
outras
obras,
nas
quais
os
recursos
estilísticos rompem
com
as
normas
de
enunciação,
apontando
para
uma semantização
complexa.
Em
A
paixão
segundo
G.H.,
por
exemplo,
a
narrativa
inicia-se
por
seis
travessões,
que
assinalam a
ruptura
da
personagem
com
seu
mundo
para
entrar
no
mundo
que
irá proporcionar-lhe
reflexões
e,
conseqüentemente,
mudanças
interiores.
Em
O
mistério
do
coelho
pensante,
o
texto
é
iniciado
pela
palavra
“pois”.
Morfologicamente, esta
palavra
é uma
conjunção
e,
como
tal,
tem
por
função
básica
ligar
duas
orações,
ou
seja,
explicar
algo
que
se disse
anteriormente.
Logo,
pressupõe-se
existir
um
assunto
que
já
se desenrolava
sem
que
o
leitor
participasse dele,
mas,
como
é
irrelevante,
a
partir
desse
momento,
a
história
tem
início.
Esta
narrativa,
como
as
demais
obras
de Clarice Lispector, pontua
um
determinado
momento,
geralmente
situações
corriqueiras do
dia-a-dia,
vividas
por
personagens
comuns.
Por
isso
ela
diz “que
esta
história
é uma
história
real”
e
que
o
coelho,
chamado Joãozinho,
era
comum,
“um
coelho
branco”,
cujo
atributo
especial
era
franzir
o
nariz
rapidamente
enquanto
tinha
idéias.
A
idéia
que
Joãozinho “cheirou” foi
fugir
de
sua
casinha
toda
vez
que
sentisse
fome
e se esquecessem de alimentá-lo.
Mas,
como
a casinha
tinha
grades
muito
estreitas e
ele
era
muito
gordo,
encontrou-se
diante
de
um
dilema:
como
fugir?
Surpreendentemente,
ele
conseguiu,
pois,
não
se sabe
como,
freqüentemente
era
encontrado
fora
das
grades.
Na
verdade,
Joãozinho tomou
gosto
pelas
fugas
e
mesmo
depois
que
seus
donos
perceberam
que
elas
estavam relacionadas à
falta
de
alimento,
e passaram a
cuidar
para
que
isso
não
ocorresse, continuou a realizá-las,
pois,
além
de sentir-se
feliz,
a
liberdade
lhe
proporcionava
oportunidade
de
experiências
e
aprendizado
acerca
do
mundo.
Essa
prática
misteriosa do
coelho
é o
desafio
ao
leitor:
Você
na
certa
está esperando
que
eu
agora
diga
qual
foi o
jeito
que
ele
arranjou
para
sair
de
lá.
Mas
aí
é
que
está o
mistério:
não
sei!
E as
crianças
também
não
sabiam.
Porque,
como
eu
lhe
disse, o
tampo
era
de
ferro
pesado. Pelas
grades?
Nunca!
Lembre-se de
que
Joãozinho
era
um
gordo
e as
grades
eram apertadas.
(O
mistério
do
coelho
pensante)
Para
esse
mistério,
a narradora se
nega
a
fornecer
qualquer
explicação.
Deixa,
portanto,
ao
leitor
a
elucidação
do
fenômeno
que,
como
afirma no
texto
introdutório,
“só
acaba
quando
a
criança
descobre
outros
mistérios”.
Em 1968,
Clarice Lispector publica
sua
segunda
obra
infantil: A
mulher
que matou os
peixes. A
temática é a
confissão de
um
crime: “essa
mulher
que matou os
peixes
infelizmente sou
eu”.
O
leitor
comum
certamente
espera uma
narrativa
linear
sobre o “assassinato”.
Porém, é informado
pela narradora de
que,
antes de
tratar da
morte dos
peixes, narrará outras
histórias
sobre
bichos:
Por
enquanto
só posso
dizer
que os
peixes
morreram de
fome
porque esqueci
de
lhe
dar
comida.
Depois
eu
conto,
mas
em
segredo,
só
vocês e
eu vamos
saber.
(A
mulher
que
matou os
peixes)
Assumindo o
mesmo
tom intimista de O
mistério do
coelho
pensante,
conta a
respeito de
todos os
animais
que conheceu,
como a
gata
que teve na
infância e os “bichos
naturais”, “aqueles
que a
agente
não convidou
nem comprou”:
baratas,
moscas,
ratos e
lagartixas. Narra
histórias
sobre “bichos
convidados”,
aqueles aos
quais “às
vezes
não
basta
convidar: tem-se
que
comprar”:
coelhos,
patos,
pintos,
cães,
macacos,
periquitos,
borboletas, cavalos-marinhos, estrelas-do-mar. Há
histórias
alegres,
mas há
histórias
tristes,
como o conturbado relacionamento de
amor e
ódio,
amizade e
vingança, dos
cães Bruno e Max,
que acabam matando
um ao
outro.
Assim, o
leitor é
preparado
para o
tema
central, a
morte dos
peixes,
retomada ao
término da
narrativa. A
morte foi
conseqüência de
seu
esquecimento
em
alimentar os
peixes
dourados de
seu
filho;
ela justifica o ocorrido, “mas
é
que sou
muito
ocupada,
porque
também escrevo
histórias
para
gente
grande”, e
pede o
perdão dos
leitores.
O
terceiro
livro
infantil,
A
vida
íntima
de
Laura,
publicado
em
1974, traz a
história
de
Laura,
uma
galinha,
casada
com
o
galo
Luís,
que
“vive no
quintal
de
Dona
Luísa
com
outras
aves”.
Segundo
a narradora,
Laura
“tem o
mesmo
sentimento
que
deve
ter
uma
caixa
de
sapatos”,
isto
é, tem uma
existência
calcada
apenas
em
“pensamentozinhos e sentimentozinhos”, servindo ao
propósito
da
natureza:
procriar.
O
cotidiano
de
Laura
reflete
sua
existência.
Há
bons
momentos,
como
o nascimento de
seu
filho
Hermany, e as
visitas
e
presentes
das outras
galinhas
e
até
de
Dona
Luísa.
Também
há os
maus,
como,
por
exemplo,
o
dia
em
que
um
ladrão
tentou roubá-la do
galinheiro
ou
quando
Dona
Luísa emprestou-a
para
um
quintal
vizinho
e
ela,
além
de
ter
que
conviver
com
galinhas
desconhecidas, ficou
sem
ver
Luís. O
único
episódio
relevante
da
vida
de
Laura
foi o
contato
com
um
habitante
de
Júpiter
- Xext -,
que
prometeu protegê-la
para
que
ela
não
fosse
comida.
Nessa
obra,
a
protagonista
é representante do
destino
feminino
no
contexto
masculino:
tem uma
existência
apagada,
com
obediência
rígida
às
leis
da
maternidade;
pois
o
que
faz
com
perfeição
é
pôr
ovos.
Em
contrapartida,
Luís,
seu
marido,
representante do
universo
masculino,
“era
muito
vaidoso.
Orgulhava-se de
ser
casado
com
Laura,
orgulhava-se de
cantar
bem
alto,
bem
rouco
e
bem
estridente,
logo
que
o
Sol
dava
mostras
de
querer
nascer”.
A
identidade
entre
homens
e
animais,
como
variação da
relação
entre
o
eu
e o
outro,
é uma
constante
na
obra
de Clarice Lispector.
Sob
um
texto
aparentemente
descompromissado
em
que
há
histórias
como
o nascimento de
um
pintinho, Hermany, e de
como
a
galinha
Zeferina,
prima
de
Laura,
foi transformada
em
galinha
ao
molho
pardo,
o
leitor
é
levado
a
refletir
acerca
da
vida
e da
morte.
O
quarto
livro
infantil
é
póstumo.
Publicado
em
1978,
um
ano
após
sua
morte,
Quase
de
Verdade
revela uma
grande
carga
de
sentido
mítico, a
começar
pelos
nomes
das
personagens,
que
imediatamente
nos
remetem a
obras
clássicas: o
cão
Ulisses, o
galo
Ovídio e a
galinha
Odisséia.
Como
nas
epopéias
gregas,
A Ilíada e
Odisséia,
as
narrativas
têm
interferência
de
entidades
míticas: as
bruxas
Oxélia e Oxalá,
que
auxiliam as
ações
das
personagens.
Curiosa
e
intencionalmente,
todas têm os
nomes
iniciados
pela
vogal
“O”,
que,
segundo
o narrador,
vinha
da
palavra
ovo.
Ulisses, o
narrador-cachorro,
como
Joãozinho, o
coelho
protagonista
de O
mistério
do
coelho
pensante,
adivinha
pelo
cheiro.
A
história
que
conta
foi “cheirada” no
quintal
da
senhora
Oniria.
A
trama
é protagonizada
por
Ovídio e
Odisséia,
respectivamente
rei
e
rainha
do
galinheiro,
que
se vêem envolvidos
com
uma
figueira,
que
não
dava
frutos
e,
por
isso,
invejava as
aves.
Por
despeito,
a
figueira
aliou-se a uma
bruxa
má, Oxélia,
que
a ajudou a manter-se iluminada à
noite
e, desse
modo,
fazer
com
que
todas as
aves
acreditassem
que
era
dia
e mantivessem as
atividades
normais,
pondo
ovos
durante
vinte e
quatro
horas,
os
quais
eram vendidos
por
ela,
que
enriquecia rapidamente.
Ao
contrário
de Luís e
Laura,
Ovídio e
Odisséia
pensavam
muito
e eram
muito
espertos.
Por
isso,
lideraram as
galinhas
e,
com
o
auxílio
de Oxalá, a
bruxa
boa, conseguiram
acabar
com
a
escravidão
a
que
todos
foram submetidos
pela
figueira.
Como
nasceram as
estrelas:
doze
lendas
brasileiras
também
foi publicado
em
1978. Trata-se de
histórias
curtas encomendadas a Clarice Lispector
para
ilustrar
um
calendário,
patrocinado
pela
fábrica
de
brinquedos
Estrela.
Nas doze
narrativas,
uma
para
cada
mês
do
ano,
a Autora resgata
elementos
da
cultura
popular,
como:
Saci-pererê,
Uirapuru,
Curupira,
Iara,
Negrinho do
pastoreio,
curumins,
que
sofrem transformações inusitadas, e
animais,
como:
sapo,
jabuti,
onça,
macaco,
jacaré,
que
vivem
situações
nas
quais
suas
qualidades,
como
esperteza,
poder
e
ferocidade
são
postas
à
prova.
Alguns
temas
comumente
tratados
por
Clarice Lispector
são
recuperados
pela
intratextualidade,
como,
por
exemplo,
a
problemática
da
linguagem,
o
que
resulta na
construção
de
personagens
tão
complexas
quanto
àquelas dos
livros
para
adultos.
Ao
considerarmos a
tradição
da
literatura
infantil,
veremos
que
as
cinco
obras
atendem às
expectativas
do
leitor
comum:
as
personagens
são
bichos
que
falam, transformam-se
em
gente
e vivenciam
situações
de
magia
e
mistério.
Mas,
enquanto
personagens
infantis, apresentam
um
tom
instigante,
que
assinala a
originalidade
da Autora e a diferencia de
outros
autores
infantis.
Em
A
mulher
que
matou os
peixes
e A
vida
íntima
de
Laura,
por
exemplo,
o
leitor
infantil
é
levado
a
refletir
sobre
um
tema
geralmente
evitado
pelos
adultos,
em
se tratando de
crianças:
a
morte.
Nem
por
isso
os
sentimentos
infantis
são
melindrados; há,
por
parte
da Autora,
delicadeza
e
respeito,
na
abordagem
do
tema,
pois
por
meio
de
declarações
de
afeto
e
um
tom
confessional,
ela
cria
uma
atmosfera
de
cumplicidade
entre
ambos
de
maneira
que
seus
pequenos
leitores
se sintam “conversando”
com
ela
e
não
apenas
“ouvindo” uma
história.
No “bate-papo”
com
o
leitor,
prepara-o
para
o
fato
de
que
na
vida
real
as
perdas
são
inevitáveis,
ou
seja,
por
meio
desse
subterfúgio,
narra uma
história
e
também
aborda
com
naturalidade
assuntos
como
morte,
tristeza,
ciúme,
vingança
e
solidão.
Vocês
ficaram
tristes
com
esta
história?
Vou
fazer
um
pedido
para
vocês:
todas as
vezes
que
vocês
se sentirem
solitários,
isto
é,
sozinhos,
procurem uma
pessoa
para
conversar.
Escolham uma
pessoa
grande
que
seja
muito
boa
para
crianças
e
que
entende
que
às
vezes
um
menino
ou
uma
menina
estão sofrendo. Às
vezes
de
pura
saudade.
(A
mulher
que
matou os
peixes)
Valendo-se
do
ambiente
de
intimidade
criado
estrategicamente,
ela
seduz o
leitor
e o conduz a
preencher
lacunas
e
vazios
com
o
próprio
imaginário.
A
despeito da
necessidade
que o
texto ficcional tem de se
enquadrar
em uma
dimensão
semântica, existe a
dimensão do
imaginário,
que
pelo
seu
grau de
imprecisão,
não
pertence à
mesma
natureza.
Na
ficção, o
imaginário se entrelaça
com a
realidade e é superado
pela
determinação
semântica na
interpretação do
texto,
pois a
interpretação tem
por
meta a
constituição de
sentido (Cf.
Lima, 1983:381).
Porém,
quando tratamos de
recepção
em
que há uma
tentativa de
produzir, a
partir de
indicações, na
consciência do
receptor, o
objeto
imaginário do
texto, existe uma
exigência de
atividade
imaginativa
também
por
parte do
leitor.
Desse
modo, a
recepção amplia a
interpretação,
pois
enquanto esta
procura
apenas semantizar o
imaginário do
escritor, aquela requer dos
receptores
capacidade
para
colocar
em
prática o
próprio
imaginário.
É o
imaginário
que possibilita à
ficção
não
ser
idêntica ao
que
ela representa e
sim
ser
apenas a “possibilidade de
relacionar o representado a
outra
coisa,
diversa da
que se dá a
conhecer
por
sua
formulação
verbal” (Lima,
1983:380),
ou seja, o
imaginário oferece a
amplitude de significação ao
texto.
Clarice Lispector
visa a
aguçar o
imaginário do
leitor
infantil e,
para
isso,
além da
estratégia de torná-lo
seu
cúmplice, realiza outras,
como a
quebra da circularidade
narrativa.
Em O
mistério do
coelho
pensante,
por
exemplo, a narradora frustra o
leitor
comum,
pois
não desvenda o
mistério da
fuga do
coelho, o
que seria de se
esperar ao
término da
narrativa.
Em
Quase de
verdade, há a
interrupção
por
quatro
vezes
pelo
canto do
passarinho de
bico vermelho-vivo - “Pirilim-pim-pim,
Pirilim-pim-pim, Pirilim-pim-pim” -
que, grafado
em
azul e
entre
parênteses
desvia a
atenção do
leitor,
isto é, faz
pausas na
narrativa
principal, proporcionando
leveza ao
texto
nos
momentos de
conflito. Nessa
obra,
também há a
expressão “patati e patatá”, utilizada
pelo narrador
com o
intuito de
que o
leitor imagine o
que
ele deixará de
contar.
Portanto,
podemos
afirmar
que as
narrativas infantis de Clarice Lispector trazem
implícito
um
perfil de
leitor
que
não difere daquele
ideal
para
romances
crônicas e
contos. O
leitor infantil-modelo-clarice
não é a
criança
passiva de uma
história
linear
com
fundo
moral.
Como
em
toda
sua
produção, as
narrativas infantis
também prescindem de
um
leitor
atuante,
que deverá
ser
capaz de
preencher as
lacunas do
texto
com o
próprio
imaginário.
Além disso,
ter
percepção aguçada
para o
fato de
que ao
ler aquelas
histórias está
diante de
um
mundo
que
embora seja “quase de
verdade”,
não o é: “Só é
verdade no
mundo de
quem
gosta de
inventar,
como
você e
eu” (Quase
de
verdade).
Como o
leitor
adulto, os
pequenos
leitores clariceanos
são conscientizados de
que existe
um
mundo
real no
qual há
coisas
simples,
como
descobrir se devemos
ou
não
engolir os
caroços de
jabuticabas,
mas
que
também há
coisas complexas,
como a
morte e
sentimentos de
amor e
ódio.
Esse
mundo,
como o
universo das
histórias,
também é
povoado de
mistérios,
que aguardam
para serem desvendados
por
eles.
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- No
texto
“A
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sem
nome”,
o
jabuti
precisa
dizer
o
nome
correto
da
fruta
para
comê-la.