Poética
da
alteridade
o
jogo
de
transfiguração
em
A
hora
da
Estrela,
de Clarice Lispector
Joseana Paganini
(UERJ)
Se
fosse
possível
fazer
um
resumo
do
enredo
de A
hora
da
estrela,
de Clarice Lispector, contaríamos as
desventuras da
jovem
imigrante nordestina Macabéa na
cidade
grande.
Mas
entender
o
romance
apenas
a
partir
de
sua
trama
mais
evidente
seria
desconsiderar
as diversas
camadas
semânticas
que
esta
obra
possui e
que
a fazem
singular
no
panorama
literário
brasileiro.
A
estrutura
de A
hora
da
estrela
é
também
portadora de
significado
e coloca
em
xeque
os
fundamentos
da
representação
literária,
propondo uma
reflexão
mais
ampla:
a
relação
da
estética
com
a
ética.
Propomos
aqui
como
chave
de
interpretação
de A
hora
da
estrela
o
princípio
compositivo do
jogo
de
transfiguração
de
identidades.
Autor,
narrador e
personagem
apresentam
seus
desempenhos
constantemente
intercambiados. O
autor
não
se “esconde”
por
trás
de
um
narrador,
mas
com
ele
se confunde. O narrador
não
se distancia da
personagem
para
apreendê-la
com
neutralidade,
mas
nela se
projeta,
projetando-se
sobre
ela
também
o
autor.
A
narrativa
ficcional de A
hora
da
estrela
não
é
um
espelho
que
devolve uma
imagem
que
se pretende
fiel
à
realidade.
Na
verdade,
empreende
um
movimento
“especular”,
nas duas
acepções
da
palavra,
movimento
refletor
e
questionador
ao
mesmo
tempo,
ou
seja,
especulação,
sondagem da
realidade
na
linguagem.
Clarice Lispector
nos apresenta, neste
romance,
três
histórias
que se entrecruzam: a do
escritor Rodrigo S. M.; a da
imigrante nordestina Macabéa no
Rio de
Janeiro; e a do
próprio
ato de
escrever. Se, na
narrativa realista, a
narração
não costuma
ser tematizada, neste
romance, o
ato de
narrar avulta
como
um
tema,
que se entrecruza
com o
que é narrado.
Assim, A
hora da
estrela é
um
romance
sobre uma
imigrante nordestina,
sobre
um
escritor no
ato de
criação e
também
sobre o
processo
escritural.
Ao
contrário da
tônica de
grande
parte da
ficção da autora, na
qual os
fatos
são
pretextos
para uma sondagem da
existência
interior – o narrador se diz apaixonado
por
fatos e propõe se
debruçar
exclusivamente
sobre
eles.
Clarice opta,
portanto,
por
desenvolver uma
narrativa a
partir de uma persona ficta, instaurando
um
jogo no
qual assume, de
maneira
explícita,
um
fingimento
que afirma a
autonomia da
literatura
face à
realidade.
Primeiro, a autora
começa
por
quebrar a
ilusão de
realidade da
narrativa ao
assinar “Dedicatória do
autor (Na
verdade, Clarice Lispector)” (HE, 21). Ao
contrário da
narrativa realista –
que adotou
estratagemas
para
disfarçar a
voz do narrador e
assim
dar a
impressão de
que a
narrativa se
conta a
si
própria –, Clarice
não
só
inventa
um narrador
que expõe
seu
processo
criativo,
como
também revela a verdadeira
pessoa
que há
por
trás da
escritura, o
autor.
Longe de se
disfarçar
todo o
tempo
atrás de
personagens
ou
vozes
narrativas, o
autor,
em A
hora da
estrela, se revela
claramente, confundindo o
leitor ao
colocar
em
dúvida,
logo no
início da
obra, a autoria da
narração.
Quem enuncia é o
autor, “na
verdade Clarice Lispector”,
ou o narrador, Rodrigo S. M.?
No
plano do
discurso, as
figuras da autora e do narrador
também se confundem. Ao
contrário das
dedicatórias tradicionais –
em
que
normalmente se homenageia,
em
linguagem
econômica,
pessoas queridas
ou
marcantes
para a
trajetória do
escritor –, Clarice faz desse
recurso
também
um
espaço de
criação,
cujo
tom poético estabelece uma continuidade
com as primeiras
linhas do
romance.
A autora
não esconde, dessa
forma,
que Rodrigo S. M. é uma
máscara. O
que
ela
busca é uma
capacidade de “ser o
outro”, de despersonalizar-se
para
captar a
existência do
outro
pelo
exercício da
linguagem.
Este
processo de
transfiguração lembra,
aliás, uma
frase de Fernando
Pessoa,
que dizia: “Quero
ser
todos
para
ser
cada
vez
mais
eu
próprio”.
Algo
como uma despersonalização
mediante a
qual o
escritor, superando os
seus
limites, reconhecendo o
outro, – “outrando-se”,
como afirmava o
poeta da
heteronímia –,
busca
expressar
não a
sua subjetividade,
mas a
condição
humana, o
que se consegue
pelo
fingimento
artístico. Na
dedicatória, Clarice assume:
Esse
eu
que é
vós
pois
não agüento
ser
apenas
mim,
preciso dos
outros
para
me
manter de
pé,
tão
tonto
que sou
eu
enviesado (HE,
21).
Também a
personagem
Macabéa participa desse
jogo de
transfiguração
identitária. A nordestina constitui o
terceiro
vértice desse
espelho
triangular no
qual as
identidades
narrativas se
confrontam.
Só nomeada
quinze
páginas
depois do
início do
romance,
ela é
previamente
definida
por Rodrigo S.
M.
como uma
moça “tão
antiga
que podia
ser uma
figura
bíblica” (HE, 46). De
fato, o
nome Macabéa é
derivado de Macabeu,
um
judeu
que liderou,
no
ano de 166
a.C.,
um
exército de
resistência à
ocupação
grega de
Jerusalém,
tal
qual narram,
na
Bíblia, os
dois “Livros
dos Macabeus”. Ao nomeá-la
assim, Clarice
resgata
sua
origem
judaica e
nos remete à
história do
povo
judeu.
Rodrigo S. M. se diz,
inicialmente,
impelido a
escrever
por uma
culpa
em
relação à
pobreza da
nordestina.
Contudo,
mais do
que
expurgar essa
culpa, a
construção de Macabéa vai
conduzir Rodrigo S. M. a
tomar
consciência do
lugar
que o
mundo
contemporâneo
destina ao
escritor. Os
signos da
sociedade de
massa
perpassam
toda a
narrativa.
Marilyn Monroe, Coca-cola, Mercedes Benz e
anúncios
publicitários
definem o
universo
simbólico no
qual a
nordestina e o narrador circulam. E, nesse
universo
que transforma
o
consumo
em
fetiche,
aqueles
que estão na
contramão do
mercado –
Macabéa
por
não
ter
dinheiro e Rodrigo S. M.
por se
recusar a
ser “vendável” (HE,
104) –
são
desajustados.
O narrador se aproxima
mais
ainda da
protagonista
ao
dar a
ela uma
profissão
que, ao
menos na
parte
mecânica, se
assemelha ao
trabalho do
escritor:
datilógrafa. A
nordestina é,
assim
como Rodrigo
S. M., uma
profissional
que
lida
com
palavras.
Mas a
atividade da
alagoana se
restringe à
mera
reprodução e
ela
não compreende
aquilo
que
datilografa. Macabéa
não domina a
linguagem e,
portanto,
não é
capaz de
compreender o
mundo e
enfrentá-lo.
Seu
viver é
um “ir
vivendo à
toa” (HE,
29).
Quando, na
narrativa, a
nordestina enuncia
em
discurso
direto,
sua
fala é
tosca e
limitada.
É,
portanto,
pelas
palavras do
narrador
que o
leitor vai
ter
acesso ao
íntimo da
alagoana, aos
sentimentos
que conferem a
ela uma
humanidade
que
não consegue
se
exteriorizar. O narrador
não esconde
que é
ele
quem revela,
com o
seu
domínio da
linguagem, as
sensações
finas da
personagem, as
quais
nem
ela
mesma tem
acesso:
[Macabéa] –
Não sei se
posso
ver
sangue.
[Narrador]
Talvez
porque
sangue é
coisa
secreta de
cada
um, a
tragédia
vivificante.
Mas Macabéa
só sabia
que
não podia
ver
sangue, o
resto fui
eu
que pensei (HE,
89).
Se a
narrativa se engendra
inicialmente
como
forma de o
escritor
expurgar a
sua
culpa, o narrador é
obrigado, ao
perscrutar a
condição
social e existencial de Macabéa, a uma
descida
em
sua
própria
condição de
escritor e
homem.
Escrever a
personagem é escrever-se.
Aqui o narrador utiliza-se do
mesmo
jogo de
regência
verbal
empregado
pela autora na
dedicatória,
com “dedicar” e “dedicar-se”.
Como assinala Barthes, a
palavra “escritor”
designa, na
origem, “aquele
que escreve no
lugar dos
outros” (BARTHES,1999:33),
que escreve
para e a
partir da
perspectiva do
outro.
Assim,
escrever
não é
simplesmente
descrever, afastado de
seu
objeto
como
um
observador
neutro,
mas “dizer
através de
si”,
ser
capaz de
entregar a
própria
individualidade ao
outro
para
lhe
dar
voz:
Vai
ser
difícil
escrever esta
história.
Apesar de
eu
não
ter
nada a
ver
com a
moça, terei
que
me
escrever
todo
através dela
por
entre
espantos
meus (HE,
39).
Esse doar-se
ao
outro
através da
escritura
não se faz
sem
riscos.
Para
mergulhar na
alteridade é
preciso
desnudar-se a
si
próprio. Se,
por
um
lado, Rodrigo
S. M. dá
vida a Macabéa,
por
outro, é a
personagem
quem
porta uma
verdade
que será
para o narrador o
elemento
desestruturador de
seu
estilo
narrativo e de
sua
vida. Ao
concretizar a
trajetória da
anônima
datilógrafa,
Rodrigo S. M. vai
descobrir “o
outro
que é
com
ele” (DIAS,
1985:105):
Vejo a nordestina se olhando ao
espelho e –
um
ruflar de
tambor – no
espelho
aparece o
meu
rosto
cansado e
barbudo (HE,
37).
Desse
modo, o
distanciamento
entre narrador
e
personagem,
que
caracteriza o
romance
realista, se rompe. Na
tentativa de
contornar a
afasia
que define o
ser
social de
Macabéa, Rodrigo S. M. se
vê
diante do
silêncio
que envolve
sua
própria
linguagem.
Pois o
que
ele de
fato
busca, a
verdade de Macabéa
que é
também a
sua
verdade, “é
sempre
um
contato
interior e
inexplicável”
e “não
tem uma
só
palavra
que a
signifique” (HE, 25). O
silêncio
social da
nordestina se transformará,
então, na
linguagem do
silêncio de
Rodrigo S. M.
Portanto,
aquilo
que o narrador
se propõe a
fazer de
início –
contar
fatos
em uma
história
com
começo,
meio e
fim, adotando
para
isso uma
linguagem
impessoal e
sem
grandes
engenhos
artísticos –,
ele
não o faz. O
narrador confessa
que o
seu “material
básico”
não é a
realidade, e
sim a
palavra. E
somente a
palavra
poética é
capaz
expressar a
verdade escondida no
silêncio da
nordestina. A autora adota,
então, uma
linguagem de
economia
verbal, ao
mesmo
tempo
carregada de poeticidade,
que preenche o
texto
com
elipses e
associações
inesperadas, instaurando o
silêncio
em
meio à
própria
fala de
Rodrigo S. M.
Ao
investigar a
verdade da nordestina,
Rodrigo S. M.,
máscara de Clarice
Lispector,
busca uma
construção
poética
que
alcance
superar a
defasagem
entre o
dizer e o
ser,
entre a
palavra e a
ação,
entre o
eu e o
outro.
Assim,
A
hora
da
estrela
vai
encenar, no
processo de
escritura, o
que Octávio
Paz define
como o
paradoxo da
linguagem: “a
distância
entre
homens e
coisas,
assim
como a
vontade de
anulá-la” (DIAS,
1985: 110).
Ao
contrário do
que propõe o narrador Rodrigo S. M., a autora
coloca
em
xeque, na
estrutura da
obra, a
própria
representação da
realidade. A
hora da
estrela
não pode
ser
entendido
nem
como
expressão da subjetividade da autora,
nem
como uma
tentativa de
reprodução do
real. A
obra
inventa
sua
própria
realidade,
não
em
termos de
cópia,
mas de
invenção de
um
mundo – o
mundo da
obra,
que obedece ao
seu
próprio
princípio compositivo. Negando a
objetividade de uma
narrativa
que se pretende
onisciente, o
romance
mostra
que
mesmo a subjetividade é construída,
fruto de
um
diálogo
contínuo e
permanentemente renovado
com as
coisas e
com o
outro.
Em A
hora da
estrela,
não há propriamente a
opinião de
um
autor
ou de
um narrador.
Mais do
que
como
escritor, o narrador clariceano se define
como
um “ator” (HE, 37), o
fingidor
por
excelência,
que incorpora
máscaras e dramatiza a
narrativa. A autora, uma escritora
mulher, se transmuta no narrador
masculino,
também
escritor,
que
novamente assume a
identidade
feminina,
agora de uma
moça
iletrada e
pobre. Nesse
movimento de
identidades, as
visões de
mundo se sucedem e se transformam.
O
romance instaura, desse
modo,
um
grande
círculo
onde as
respostas conduzem
sempre a
mais
perguntas, convidando o
leitor a
participar do
jogo
que o
texto
lhe propõe.
Diante de
um narrador
cuja
identidade é
cambiante e de uma
narrativa
que questiona a
si
mesma
todo o
tempo, o
leitor é concitado a
dialogar
com a
obra. A
ambigüidade decorrente da
transfiguração de
identidades permite
que o
leitor, uma
vez jogando o
jogo proposto
pela
narrativa, formule a
sua
verdade, de
acordo
com a
sua
singular
experiência.
Assim,
A
hora
da
estrela
assume a
inventividade
artística
como
metáfora da
própria
aventura
existencial. Uma
aventura
renovada
pelo
leitor a
cada
novo
ato de
leitura.
Fazendo da
narrativa
um
jogo
que incorpora
a
voz do
outro, a
transfiguração
de
identidades,
que pareceria
à
primeira
vista
tão-somente
um
processo
estético de
composição
romanesca, encena,
em
última
instância,
um
compromisso
ético
alcançado
pela
arte.
BIBLIOGRAFIA
BARTHES, Roland. “Escritores
e
escreventes”,
in
Crítica
e
verdade. Trad. de
Leyla Perrone-Moysés.
São Paulo:
Perspectiva,
1999.
DIAS, “A
escrita do
corpo cariado”. In:
Revista
Tempo
Brasileiro, nº 82.
Rio de
Janeiro,
julho/setembro de
1985.
LISPECTOR, Clarice. A
hora da
estrela.
Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 18ª ed., 1990.