A EXPERIÊNCIA INTERVALAR
NA
CULTURA MEXICANA

Elda Firmo Braga

 

Ya me voy, muy lejos del pueblo,
empacando maletas,
guardando recuerdos de amor
Ya me voy, rumbo al Norte,
dejo novia, mis calles, mi gente,
mi México
Ay, ay, ay, algún día yo volveré,
ay, ay, ay, te prometo mi amor.
(Maná)

 

“Río grande, río bravo” é o último dos nove contos do livro La frontera de cristal de Carlos Fuentes. O título desse relato remete ao rio que limita a fronteira entre os Estados Unidos e o México. Tal Rio nasce nas montanhas geladas do Município de San Juan, Estado do Colorado (EUA), a uma altura de aproximadamente 3.600 metros acima do nível do mar e desemboca no Golfo do México. Foi a partir do Tratado de Guadalupe Hidalgo, no ano de 1848, época do fim da guerra entre ambos países, que esse Rio transformou-se na fronteira internacional entre as duas nações. Considerado como o trigésimo segundo maior Rio do mundo em longitude e um dos cincos mais extensos da América do Norte, o alcance fronteiriço do Rio grande, rio bravo entre o México e os EUA é de 2.000 quilômetros. Dominique de Villepin, em seu texto El Nuevo espíritu de la frontera, afirma que o “Río Bravo encarna […] la frontera quizás más espectacular entre una gran potencia económica y un continente emergente” (VILLEPIN, 2003, www.francia.org.mx/embajada/cancille-ria/mae/villepinnespiritufrontera-180703.html)

A fronteira entre o México e os Estados Unidos é uma das mais extensas e conflitantes do mundo. Cinco mil trabalhadores regularizados ou clandestinos a cruzam todos os dias e cerca de trezentas milhões de pessoas a atravessam por ano. Em 2001, a patrulha fronteiriça apreendeu um milhão e meio de pessoas que tentavam entrar no Norte ilegalmente e mil duzentos e trinta e três indivíduos morreram, nesse mesmo ano, arriscando cruzar os limites entre os dois Países.

Questões vinculadas à fronteira são tão relevantes dentro da sociedade mexicana que levou as organizações acadêmicas a criarem o COLEF (Colégio da Fronteira Norte), uma instituição de investigação científica e de educação superior, especializada no estudo dos problemas sociais, econômicos, políticos, ambientais e populacionais de referida região.

O vocábulo intervalar significa um ponto situado entre dois espaços. No texto objeto do nosso estudo, denota a fronteira representada pelo Rio grande, rio bravo. Tal intermitência conforma um entre-lugar, um terceiro espaço, uma região de trânsito que propicia o contato com o outro, pois a fronteira não significa apenas separação, também simboliza um elemento de unificação entre as duas regiões.

Nesse conto, há duas narrativas paralelas que se entrecruzam em determinados momentos: uma apresenta partes da história mexicana e a outra narra aspectos referentes à relação entre os Estados Unidos e o México, conformando, assim, dois planos: um histórico, que reporta ao passado e outro literário que reproduz o presente.

No plano histórico, o entre-lugar configura-se no encontro dos espanhóis com os indígenas mexicanos. O conto começa com um texto mitológico sobre o Rio, no qual sua origem geográfica é relatada. Mais adiante aborda o deslocamento ocorrido há 30.000 anos de povos que partiram do norte para o sul com o objetivo de buscar novos territórios para caçar. Esses primeiros habitantes andarilhos, consideravam o Rio grande, rio bravo como o centro do mundo. Em seguida, menciona a chegada dos espanhóis à região, a cobiça deles por metais preciosos, como também a briga entre os EUA e o México, algumas décadas mais tarde, por terras pertencentes a este País, momento no qual a nação hispânica perde seus territórios que estavam na parte norte do rio.

No plano literário, o entre-lugar representa os encontros e desencontros entre a cultura mexicana e a estadunidense. As personagens do relato têm sua história, em maior ou menor grau, intimamente vinculada a tal fronteira. O conto narra a vida de imigrantes que partem do México em direção aos EUA com um propósito: ganhar a vida do outro lado da fronteira e, nessa travessia, levam em sua bagagem sua história repleta de memória particular, fato que os individualiza dentro de um conjunto de pessoas que lutam pelo mesmo objetivo: encontrar um trabalho para sustentar sua família. Assim, vários lugarejos no México têm como principal fonte de renda as remessas enviadas por parentes que trabalham em território estadunidense. Conforme Blanca Estela González Romo afirma, no texto La frontera de Cristal, denuncia social a través de la ironía, os mexicanos vivem a “paradoja del sueño americano, vivir del otro lado a pesar de ser extraños, sin derechos, sin leyes que los protejan, sin reconocimiento a su trabajo, olvidados de sus terruños, añorando sus más profundas raíces” (GONZÁLEZ ROMO,                                                                          www.chi.itesm.mx/~investig/bgonzalez.pdf)

Cada personagem do conto representa um aspecto inerente à fronteira entre os EUA e o México, como: o de pessoas que durante várias gerações seguem para o Norte em busca de um trabalho para prover a sobrevivência de seus familiares; como o do desprezo, o do ódio e o do racismo dispensado aos imigrantes, ainda que sejam legalizados ou descendentes de latino-americanos nascidos nos EUA; e como a das condições inumanas vividas pelos imigrantes ilegais.

Dentre as várias personagens, destacamos José Francisco por ser uma figura que sintetiza o sentimento do chicano e também por ser um exemplo de busca de uma identidade que una os dois lados da fronteira: Seus pais chegaram aos EUA sem dinheiro e com ajuda de alguns conterrâneos, abriram um pequeno comércio que prosperou ao passar dos anos. Desde criança José Francisco sofreu discriminação por causa de sua condição de imigrante mexicano, porém sempre possuiu uma força interior que não o deixou sentir-se humilhado diante do racismo.

O menino, durante sua vida escolar, era orientado por seus professores a não usar o espanhol, pois os alunos que utilizavam esse idioma na escola sofriam discriminação por parte de seus colegas. José Francisco não levava em consideração a preocupação daqueles, pelo contrário cantava com entusiasmo canções hispânicas em espanhol nos intervalos das aulas. Ainda que ninguém falasse com ele, não se sentia vítima do preconceito, que acreditava que seus companheiros não lhe dirigiam a palavra por sentirem medo dele.

Ainda na escola, José Francisco liderou um verdadeiro alvoroço ao reivindicar o fim da segregação racial nas salas de aula. Elaborou panfletos hostilizando as autoridades por permitirem que os alunos sentassem em suas salas separados por grupos de negros, brancos, latinos. Sua proposta era de que os alunos fossem acomodados por ordem alfabética e não mais por grupos étnicos.

A força de José Francisco, sua segurança e seu ânimo para lutar por seus objetivos foram herdados de seu pai que, por meio de luta e sacrifício, conseguiu vencer na vida sem necessitar resignar-se, desse modo, converteu-se em espelho para seu filho.

Ao terminar o Ensino Médio, José Francisco recebeu a sugestão de seus professores para mudar seu nome para Joe Frank, pois ele era muito inteligente e permanecer com o nome hispânico poderia prejudicá-lo em sua vida acadêmica e profissional, mas o estudante se negou veementemente a atender tal apelo.

José Francisco começou a escrever aos 19 anos. Após refletir sobre que idioma utilizaria em seus escritos, passou a usar a língua espanhola para narrar as partes que nasciam de sua alma mexicana e na língua inglesa as que brotavam com ritmo ianque.

Por intermédio do exercício literário, encontrou a sua essência, descobrindo que não era mexicano e nem gringo: “No soy gringo en USA y mexicano en México. Soy chicano en todas partes. […]. Tengo mi propia historia” (FUENTES, 1995: 280). Dessa forma, aboliu as incertezas relacionadas à sua nacionalidade, à sua língua e à sua terra, pois, independentemente de que lado da fronteira estivesse, não necessitava assimilar-se a coisa alguma que possuía sua própria história. Ele trazia consigo algo diferente que não o deixava em paz, algo que não poderia ocorrer somente de um lado da fronteira senão de ambos lados, porque também possuía sua própria fronteira interior, por isso escrevia para trabalhar seus conflitos internos e para dar oportunidade a essa segunda personalidade que existia dentro de si.

O jovem atravessava o Rio Grande Rio Bravo montado em uma moto, levando e trazendo manuscritos de um lado a outro, seu desígnio era o de fazer com que as duas partes se conhecessem melhor. Ele utilizava a literatura como um instrumento de aproximação para quetodos se conocieran mejor, decía, para que todos se quisieran un poquito más, para que hubiera un ‘nosotros’ de los dos lados de la frontera” (FUENTES, 1995: 281). Por meio da linguagem literária, José Francisco estabelece uma ponte entre dois mundos tão próximos e tão distantes.

O conto apresenta muitas tensões e conflitos gerados pelo relacionamento de dois países desiguais representados pelo primeiro e terceiro mundo, por um país desenvolvido e outro em desenvolvimento, pela América rica vesus a pobre. Portanto, nesse ambiente, a literatura surge como a metáfora do entre-lugar, assimilando a experiência intervalar de dois mundos diferentescomo ocorreu durante muitos séculos entre a cultura indígena e a espanhola – funcionando como um elo integrador entre dois espaços antagônicos, servindo de instrumento para romper a fronteira de cristal, a discriminação, o ódio, o preconceito e, também, como arma de identidade e alteridade.

 


 

Referência Bibliográfica

GONZÁLEZ ROMO, Blanca Estela. La frontera de Cristal, denuncia social a través de la ironía. Disponível em www.chi.itesm.mx/ ~investig/bgonzalez.pdf

FUENTES, Carlos. La frontera de Cristal. Cidade do México: Alfagarra, 1995.

Frontera(s) - Introducción al conjunto temático. 2002. Disponível em www.mexartes-berlin.de/esp/01/grenzen.html

GIRA. (Grupo Interdisciplinario de investigación sobre las Américas). Fronteras, cruzamiento de fronteras y transculturación. http://gira.inrs-ucs.uquebec.ca/sp/presentationproblematique.asp?ID Section=2#transculturation

MANÁ. El Desierto. Álbum: Dónde Jugarán Los Niños?

SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In.: Uma literatura nos trópicos. 2ª ed., Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

VILLEPIN, Dominique de. El Nuevo espíritu de la frontera. 2003. Disponível em www.francia.org.mx/embajada/cancilleria/mae/ villepin _nespiritufrontera-180703.html