A linguagem dos mass media
Uma
anÁlisE sob o prisma da Pragmática

Ana Carolina Gonzalez Batista

 

Historicamente, o homem vem tentando entender e dominar os elementos à sua volta através da linguagem, utilizando-a como um instrumental necessário ao conhecimento e, conseqüentemente, como forma de poder. Para entender a relação do homem com a língua que ele utiliza para nomear os objetos à sua volta, surge a Lingüística, que vai dedicar-se ao estudo concreto da linguagem, dividindo-se em formalista – buscando o que é universal e constante na linguagem – e sociologista – que vai enfatizar a diversidade e a multiplicidade, acreditando numa relação intrínseca entre língua e sociedade.

Toda experiência humana requer comunicação, e é através da linguagem que a criança começa a descobrir o mundo e ter contato com ele. Dessa forma, corroborando com Jakobson (1956), afirmamos que língua e cultura se implicam mutuamente, e, ainda, que a linguagem é o próprio fundamento da cultura, que identifica cada sociedade ou grupo social.

É justamente dessa interação com o falante que surgem os estudos pragmáticos, que vão estudar as condições que governam a utilização da linguagem na prática lingüística, de que trata este artigo.

Acreditamos que a comunicação esconde mais que revela, sendo tal recurso largamente utilizado pela imprensa brasileira que, visando não expor sua face, escolhe palavras para provocar reações no leitor e passar para ele a responsabilidade de interpretar as expressões veladas, o que chamamos de “ler nas entrelinhas”. Tal comportamento não é privilégio apenas da imprensa, afinal, a sociedade brasileira visa, a todo o momento, evitar o confronto com o outro para ser aceito em um grupo, por isso, na nossa vida cotidiana, violamos as máximas conversacionais de Grice (1982) e protegemos nossa face, da mesma forma que mantemos a face do outro na interação social.


 

A língua como manifestação cultural

A fim de refletir sobre os aspectos que compõem o povo brasileiro, concebemos cultura comoeste todo complexo que inclui conhecimentos, crenças, arte, moral, leis, costumes ou qualquer outra capacidade ou hábitos adquiridos pelo homem como membro de uma sociedade” (TYLOR apud LARAIA, 1999: 25). Isto posto, ao empregar a expressãocultura brasileira”, referimo-nos aos aspectos intelectuais, artísticos, religiosos, literários, científicos e ambíguos que, em seu conjunto, caracterizam e definem o povo brasileiro.

Remetendo a uma análise histórica, o homem vem tentando utilizar a língua como uma forma de poder através do conhecimento nela imbuído. Assim, ao nos depararmos com uma situação de poder como exerce a imprensa, devemos pensar que a língua reflete nossa ideologia, o modo como percebemos e vivemos o mundo.

Singer (2000) acredita que cada cultura tem sua própria língua e cada língua é a manifestação das percepções, valores, crenças e descrenças de um determinado grupo, e que, uma vez estabelecida, a língua é o instrumento que vai induzir o indivíduo a perceber a realidade de uma determinada forma, sendo também, o meio pelo qual o grupo mantém e reforça a similaridade de percepção[1]. Desta forma, a língua está diretamente relacionada à cultura e vice-versa. O autor ainda acrescenta que toda relação que envolve comunicação tem um componente de poder atrelado ao discurso, e que aquele que manipula a palavra estabelece uma relação favorável ante o outro. Assim, para que possamos lidar com uma comunicação harmoniosa, devemos lidar com essa situação aberta e conscientemente.

 

Instrumentos de categorização

Muitos estudiosos empenharam-se em estabelecer conceitos instrumentais para identificar os diferentes grupos culturais. O interculturalista Edward Hall (In BENNETT, 1998), por exemplo, acredita que cultura é comunicação, ou seja, um sistema de criar, enviar/emitir, armazenar e processar informações, e ainda afirma que a cultura esconde muito mais que revela. Assim, ele distingue as culturas que são regidas por um tempo monocrônico (significa fazer uma coisa de cada vez) daquelas que usam o tempo policrônico (fazer várias coisas ao mesmo tempo), o espaço pessoal (ou a bolha invisível que cada pessoa tem em volta de si), o contexto (o efeito do contexto no significado), a comunicação como informação e a cultura inconsciente. A semanticista Wierzbicka (1991) cria outras categorias, como a auto-afirmação, espontaneidade, turnos da fala, diretividade e indiretividade, intimidade, proximidade, informalidade, harmonia, sinceridade entre outros.

Durante este estudo, eu proponho que a imprensa brasileira utiliza muito a proteção à face. O conceito de face, de domínio da Pragmática, nos remete à Teoria dos Atos de Fala (Austin, 1999), às Máximas Conversacionais (Grice, 1982), e, principalmente, à Teoria das Faces (Brown e Levinson, 1987). Analisando manchetes de jornais brasileiros (nesse caso, dois jornais do Rio de Janeiro, O Globo e O Dia), pode-se perceber que as palavras são muito veladas, as críticas são feitas de forma muito indiretas, para que o jornal se isente de qualquer responsabilidade de uma interpretação comprometedora, o que eles naturalmente justificam não como um instrumento de proteção à face, mas a busca pela imparcialidade.

Segundo Charles Morris (1938), “Pragmática é a ‘ciência’ (ou parte da Lingüística) que estuda as condições que governam a utilização da linguagem na prática lingüística” (MORRIS apud LEVINSON, 1983: 1). O ponto de partida dos estudos pragmáticos se dá a partir do filósofo americano John Austin e sua Teoria dos Atos de Fala, que afirma que a linguagem não tem uma função descritiva, mas de provocar uma ação/reação, vejamos:

 

Exemplo 1

Garota de sorte

Fabiana Saba participa do último capítulo de ‘Friends’ e vai se casar

Ao lermos a manchete do jornal, a ação que ela vai provocar é a de querer ler a notícia, afinal, é mais uma brasileira a nos representar na televisão norte-americana, participando da série de maior sucesso nos Estados Unidos, Friends. Porém, a reação que ela provoca é a de que, na verdade, não é bem assim. Fabiana Saba foi convidada para participar de esquetes para a América Latina com sátiras sobre os seis amigos. Assim, o enunciado não teve apenas a função de descrever um estado de coisas, mas de provocar uma ação/ reação no leitor.

Austin afirmava que os enunciados poderiam ser constativos (vide exemplo 2) – quando exprimem uma declaração ou descrevem o estado das coisas passíveis, assim, de serem submetidos ao crivo de verdadeiro ou falso –, ou performativos (vide exemplo 3) – quando exprimem não apenas a descrição de um evento, mas traz implícitos outros enunciados desejados pelo falante.

 

Exemplo 2

Ônibus param e moradores da baixada ficam a

 

Exemplo 3

Passe livre de alunos acaba no fim do mês.

Em 2, o enunciado simplesmente descreve uma situação de greve dos rodoviários que aconteceu em Duque de Caxias, ou seja, é um enunciado constativo que pode ser verificado como verdadeiro ou falso a qualquer momento. no exemplo 3, o enunciado é performativo, pois traz implícitas outras informações como um aviso aos estudantes para providenciar a carteira de passe livre, uma ameaça para quem não providenciar logo a carteira e uma promessa de que o incômodo dos ônibus cheios na porta de frente vai acabar. Assim, como depois que um constativo é enunciado algo no mundo muda, os jornais brasileiros tendem a fazer isso de forma muito velada, indireta e, muitas vezes, ambíguas.

Partindo do princípio de que a língua nos permite comunicar mais do que ela verdadeiramente diz, Paul Grice (1982) mostra que a linguagem comunica mais do que significa num enunciado, pois, quando se fala, comunica-se, também, conteúdos implícitos, como podemos observar nos exemplos seguintes:

Exemplo 4

Waguinho quer dar o troco a Solange

Quem estava acompanhando os jornais de fofoca dessa época, viram que o pagodeiro Waguinho foi preso por não ter pagado a pensão alimentícia para seus filhos com a modelo Solange. O cantor saiu da prisão porque seus companheiros pagodeiros fizeram uma “vaquinha” (dividiram entre si o valor da fiança) e pagaram pela sua liberdade. Após uma noite na prisão, o pagodeiro, revoltado com a ex-mulher e alegando estar em dia com seu compromisso legal, disse que a única coisa que ele quer dar para ela é o troco. Mas que troco? O que sobrou do dinheiro da fiança? Um trocado qualquer? Ou uma revanche pelo que ele passou? É com essa ambigüidade que joga a imprensa brasileira (e o brasileiro em geral, nas suas relações sociais).

 

Exemplo 5

Afasta de mim este cálice

Em mais uma página do episódio Lula/New York Times, o jornal carioca deu o tom de ambigüidade utilizando linguagem verbal e não-verbal ao mesmo tempo (Lula está com o rosto virado para o lado cara de triste quando alguém lhe oferece umcálice” – ou um copo – de um líquido qualquer). O jornalista brasileiro não pode ser acusado de nada, pois, literalmente, o que está escrito é uma frase bíblica que pede para afastar aquele copo de perto dele, mas, inseridos neste contexto onde o provável vício do presidente foi alvo de críticas na imprensa norte-americana, percebemos que o enunciado comunicou muito mais do que realmente disse.

 

Exemplo 6

Erraram na dose

Essa manchete, num momento qualquer, pode ter vários significados, mas o jornal carioca publicou-a no auge da discussão sobre a “bebedeira” do presidente Lula, e a expulsão do jornalista do New York Times (NYT) que fez a “observação”. Ou seja, o que foi dito, literalmente, é que alguém errou na dosagem ou quantidade de alguma coisa. Porém, nesse contexto, ela nos revela (implicitamente) outras possibilidades: que o presidente do Brasil realmente bebeu demais e errou na dose; era um caso extremo querer expulsar o jornalista americano do Brasil, ou seja, ele errou na dose da “punição”; ou, ainda, que o jornalista do NYT errou por ter falado tão abertamente de um assunto que, na nossa cultura, é vetado.

Lendo-se o artigo do jornal carioca, vê-se que é uma crítica à expulsão do jornalista americano, porém, a manchete do jornal não traz isso explícito, ou seja, prima pela indiretividade, por esconder determinadas opiniões e deixar que o conteúdo implícito as pistas. Para que o leitor consiga entender o que está implícito, ele precisa fazer inferências sobre o enunciado. É o que Grice chama de Princípio da Cooperação. De acordo com o autor, há um princípio geral que rege a comunicação e que se esperaria que os falantes de uma língua observassem. Assim, Grice estabelece as Máximas Conversacionais: Quantidade, qualidade, relação (referem-se ao que dizer) e modo (como dizer). São elas:

 

Quantidade

a. Torne sua contribuição tão informativa quanto for exigido (para os propósitos presentes da conversação).

b. Não torne sua contribuição mais informativa do que for exigido.

 

Qualidade

a. Não diga aquilo que você acredita ser falso.

b. Não diga aquilo para o qual não possua evidência.

 

Relação

a. Seja relevante


 

Modo

a. Evite obscuridade de expressão.

b. Evite ambigüidade.

c. Seja breve.

d.Seja ordenado

O que este estudo vem mostrar é que os jornalistas brasileiros tendem a violar essas máximas em prol da preservação da sua imagem, ou da sua face. O conceito de face foi desenvolvido a partir das regras de polidez por Brown e Levinson (1987), retomando os trabalhos de Goffman (1983) sobre a Teoria das Faces.

Para Brown e Levinson, todo falante fluente em sua língua é dotado de duas propriedades – (i) razão, que lhe permite escolher os meios adequados para atingir os fins pretendidos – e (ii) face, que, na definição de Goffman ([1959] 1983, 1967), se refere à auto-imagem pública que uma pessoa constrói, sustenta ou perde, em função da linha de conduta adotada no decorrer de uma interação (CARMO: no prelo).

Para os autores, o indivíduo, em suas relações sociais, tendem a respeitar esse princípio por dois motivos: para manter a sua face de boa pessoa, educada, gentil e, assim, ser bem aceita e, por outro lado, para não derrubar a face do outro que, sentindo-se ameaçado ou intimidado, vai querer tirar a face do seu interlocutor. Assim, creio que esse instrumental “proteção à face nada mais é que uma forma de se manter seguro nas relações sociais e, conseqüentemente, ser aceito.

É o desejo de aceitação e segurança que fazem com que nossa fala seja tão velada, como nos confirma Sérgio Buarque de Holanda (1995), ao conceituar a pseudo-polidez do brasileiro que ele chama de “homem cordial”:

A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definitivo do caráter brasileiro, (...). Seria engano supor que essas virtudes possam significar ‘boas maneiras’, civilidade. ... Nossa forma ordinária de convívio social é, no fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na aparência – e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir precisamente em uma espécie de mímica deliberada de manifestações que são espontâneas no ‘homem cordial’: é a forma natural e viva que se converteu em fórmula (HOLANDA, 1995: 147).

Dessarte, a chamada cordialidade do brasileiro, nada mais é que um instrumento de proteção à sua face, que lhe segurança nas relações sociais, onde ser bem aceito é o mais importante. É, assim, o verdadeiro jogo de interesses, pois se o indivíduo for educado, polido, bem aceito, não haverá represálias contra ele no futuro.

 

Conclusão

Quando comunicamos, não estamos apenas dizendo aquilo que as nossas palavras transmitem no sentido dicionarizado, mas estamos sinalizando o modo como pensamos, agimos e o valor que damos a determinadas coisas. Tudo isso é um reflexo da cultura.

A comunicação, dessa forma, é vista como uma dança, onde as pessoas envolvidas devem estar cientes dos passos que a outra vai dar e acompanhar o ritmo. Se uma das duas falhar, a dança não se completa, talvez por isso, quando as pessoas não se entendem, costuma-se chamar de “samba do crioulo doido”.

O presente estudo tentou mostrar que a característica de cordialidade tão admirada no brasileiro se reflete diretamente na forma como utilizamos a língua, ou seja, através de palavras veladas, de duplo significado, para que não “magoemos” o outro e, com isso, ele se rebele contra nós. A polidez é assim vista como uma forma de defesa ante as relações sociais que travamos diariamente. Equivale a um disfarce que nos permite ser preservados das mazelas do mundo, pois se somos cordial com alguém, é porque queremos que, no futuro, essa cordialidade se reverta a nosso favor.

As relações de poder na cultura brasileira são um tanto quanto complicadas, pois o brasileiro não consegue conviver com sua individualidade: ele precisa ser aceito sem ter de lutar por isso. A nossa cordialidade, então, não é uma virtude natural, mas uma regra socialmente aprendida para seduzir o outro, como uma estratégia para ser gostado, pois é um traço da nossa cultura se apoiar nas relações sociais. Dessa forma, o medo que uma hostilidade futura ou uma represália recaia sobre si faz com que o brasileiro seja exatamente como ele é: ambíguo e fascinante. Por isso a necessidade dos estudos pragmáticos, que pretendem dar conta de como utilizamos a língua para comunicar mais do que aquilo que realmente é expresso em palavras.

 

Referências Bibliográficas

AUSTIN, J. L. How to do things with words. IN:  Jaworski, W. & Coupland, N. (ed) The Discourse Reader. London; New York: Routledge, 1999.

BENNETT, M.J. Intercultural communication: a current perspective. IN: BENNETT, M.J. (ed.) Basic concepts of Intercultural Communication – selected readings. Yarmouth: Intercultural Press, 1998.

BROWN, P & LEVINSON, S. Politeness some universal in language usage. Cambridge: Cambridge University, 1987.

GOFFMAN, E. Interactional Ritual essays on face to face behavior. New York: Panteon, 1983.

GRICE, H. Paul. Lógica e conversação. Trad. João Wanderley Geraldi. IN: DASCAL, Marcelo (org.) Fundamentos da lingüística contemporânea. Campinas. v. IV, 1982 [1967].

––––––. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 1983.

HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil. 26ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1956.

LARAIA, Roque de Barros. Cultura um conceito antropológico. 12ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

LEVINSON, Stephen C. The scope of pragmatics. In: Pragmatics. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

O DIA. O dia de olho para você. 13 de maio de 2004. Ano 53, n. 18964. capa e p. 21.

––––––. Nosso Rio. 14 de maio de 2004. Ano 53, n. 18965. capa e p. 3.

––––––. Televisão. 16 de maio de 2004. Ano 53, n. 18967. p. 16.

––––––. Nosso Rio. 19 de maio de 2004. Ano 53, n. 18970. capa e p. 4.

O GLOBO. Opinião. 16 de maio de 2004. Ano LXXIX, n. 25850. p. 7.

OLIVEIRA, Maria do Carmo L. Polidez e Interação. IN: Práticas Discursivas: da Teoria à Ação social. Homenagem a Malcolm Coulthard. São Paulo: Contexto (no prelo).

SINGER, Marshal R. The Role of Culture and Perception in Communication. In: WEAVER, G. R. (ed.). Culture, communication and conflict – readings in intercultural relations. Rev. 2nd ed. Boston: Pearson Publishing, 2000.

WIERZBICKA, A. Cross-cultural pragmatics – the semantics of human interaction. Berlin; New York: Mounton de Gruyter, 1991.


 


 

[1] Percepção é aqui concebida como um processo pelo qual o indivíduo experimenta o mundo e que determina como essa pessoa vai se comportar perante esse mundo (aqui entendido como símbolos, pessoas, idéias, ideologias etc.). Assim, podemos dizer que, quanto mais abstrata for a realidade, maior será a variedade de interpretações possíveis.