Cherchez la femme?
reflexões
sobre
a
narrativa
policial
contemporânea
Valéria S. Medeiros
(PUC-Rio, UGF e UniverCidade)
Do
parágrafo
inicial de
O
nome
da
rosa,
retiramos as
palavras do
personagem
Adso de Melk,
assistente do
investigador
medieval Guilherme de
Baskerville e narrador: “Mas
videmus nunc
per
speculum et in aenigmate e a
verdade, ao
invés de
cara a
cara, manifesta-se
deixando às
vezes
rastros (ai
quão
ilegíveis) no
erro do
mundo,
tanto
que precisamos
calculá-lo, soletrando os verdadeiros
sinais,
mesmo
lá
onde
nos parecem
obscuros” (Eco,
1983: 21).
Jamais vemos
por
espelhos,
mas
por
enigmas.
A
tradução
oferece inúmeras possibilidades,
pois aenigmate pode
significar,
além do
cognato,
palavra
obscura,
emblema e
figurativamente,
imagem,
signo.
Debruçamo-nos
sobre “signos
de
signos,
para
que
sobre
eles se
exercite a
prece da
decifração”,
mas os
salmos do
livro de
Deus
já
não podem
ser sobrepostos aos
ditames do
livro da
Natureza
para explicá-los e
portanto a
oração
investigativa
já
não se reza
com(o)
um
rosário,
linear e
seqüencialmente
(21). Estamos neste
vácuo deixado
pela
cisão
entre os
nomes e as
coisas.
Quanto
mais
vago,
fluido,
mais
atraente
este
enigma parece,
como “a vague
shadow by the name of Black”,
em
Ghosts,
Paul Auster (Auster,
1990: 171).
Ou
ainda as
poucas
insinuações, “bastante
vagas
na
verdade,
sobre uma
estranha
relação”
que Guilherme
de Baskerville estabelecia
em
relação a
seus
suspeitos,
em
O
nome
da
rosa (Eco,
1983: 15).
Nosso
desejo é
pela
pergunta,
não
pela
resposta – ao
contrário
pelo
fetiche da
lógica do
enigma do
século XIX.
O
século XVIII é
um
marco na
história do
pensamento
científico,
quando ocorre
uma
cisão
entre
ciência e
filosofia
com o
funcionamento
independente das
ciências
empírico-positivas das
questões
filosóficas,
mais
especificamente
metafísicas.
Esta
separação está
vinculada a uma matematização da
experiência na
experimentação, a
ênfase na
distinção do
método
filosófico (especulativo)
e do
método
científico
empírico-positivo (a experimentação
ou
matemática).
Este
novo
modelo
onde o
logos
centra-se na
matemática
conduz a uma atomização da
natureza,
reduzida a
seus
elementos
dimensíveis. A
identificação
das
causas
eficazes na
determinação
dos
fenômenos
torna-se
ponto de
concentração
em
lugar das
causas
finais
em
sua
explicação. O
projeto
iluminista pretendeu
estabelecer e
estender a
todos os
domínios – do
universo
físico à
sociedade, à
política e à
moral,
um
projeto de uma
ciência
universal ordenadora e
normativa. A
evidência
racional
não é
suficiente e
por
isso busca-se
a
prova experimental
ou
princípio
empírico. A
ciência
associa-se
profundamente
com a
técnica e
quer
fornecer os
meios
para o
homem
dominar a
natureza.
Dois
pensadores
foram
fundamentais
tanto
para
este
projeto
quanto
para E. A. Poe e
seu
pioneiro “Os
crimes da
rua
Morgue”: Isaac
Newton e
Auguste Comte. A
grande
síntese da
física
elaborada
pelo
primeiro, cujas
contribuições
da
lei da
mecânica e a
teoria da
gravitação
exercem
enorme
fascínio
sobre Poe,
desde os
contos de
enigma
até Eureka,
sua
derradeira
obra. Se
podemos
dizer
que o
paradigma da
ciência é o
paradigma
newtoniano do
mundo
como uma
máquina, a
figura do
investigador
como
um
homem
máquina a
decifrar a
engrenagem do
mundo
pertence à
linhagem destes
dois
pensadores. O
fundador do
positivismo fornece o
arcabouço filosófico do
chevalier Dupin
criado
por Poe, cujas
convicções
refletem os
três
pressupostos epistemológicos
fundamentais
da
ciência
tradicional: a
simplicidade,a
estabilidade
e a
objetividade.
Assim
como o
cientista, o
investigador
acredita
que a
complexidade do
universo
oculta uma
simplicidade,
pressupondo uma
ordem
subjacente ao
caos
aparente
através de uma
operação
disjuntiva.
Este
cientista
da
realidade
concebe
um
mundo
ordenado, cujas
relações
funcionais
entre
variáveis
procura
estabelecer –
racionalmente
e eliminando
contradições –
uma
vez
que as
leis de
funcionamento
da
natureza
são
simples,
imutáveis e,
sobretudo, observáveis.
Somente a
partir da pressuposição da
estabilidade
do
mundo, a
repetição e a
invariabilidade
podem
ser descritos os
fenômenos,
através de
leis
ou
princípios
explicativos.
Desta
convicção
decorre
um
corolário de
premissas: a
determinação (que
gera a previsibilidade dos
fenômenos) e a
reversibilidade (que
produz,
por
sua
vez, a
controlabilidade).
Em outras
palavras,
qualquer
desenvolvimento
incontrolado de
um
sistema é
definido
por
negação. O
cientista,
para
descobrir,
controlar e
descrever os
mecanismos de
funcionamento
da
natureza,
precisa
ocupar
um
lugar
arquimédico
ou
fora do
mundo.
Este
distanciamento
garante a
objetividade e
permite
avalizar o
conhecimento
do
mundo
tal
como
ele é.
Tanto
mais
objetiva e
eficaz será a
descrição
científica – e
analogamente a
investigação
criminal –
quanto
maior a
neutralidade do
observador.
Atualmente, o
novo
detetive
investiga vagando, errando, atraído
pela
inconsistência do
enigma,
seguindo os
rastros
sem
esperar
que nas
profundezas se esconda o
sentido
perdido das
palavras. Está
consciente da
incerteza das
respostas,
sabe
que
sem as
premissas
positivas
não há
promessa de
verdade
definitiva ao
fim de uma
investigação –
etimologicamente do
latim
respondere,
prometer
em
troca.
Este
indivíduo
continua indagando
sem a
expectativa –
ou a
vontade – da
decifração.
Decifrar,
hoje,
não significa
necessariamente
passar da
cifra à
palavra,
pois as
revoluções
científicas surrupiaram o
ferrolho do
segredo do
mundo
que Edgar
Allan Poe
tanto
reverenciava.
Reflexões
sobre
eventuais mudanças paradigmáticas caracterizam
hoje a
maioria dos
campos
disciplinares envolvidos
em
processos de
produção de
conhecimento.
Quais as
ressonâncias,
nos perguntamos, destas mudanças
em
nossa
prática,
isto é,
como a
produção
literária
contemporânea
tenta
solucionar
questões de
produção do
conhecimento no
momento
em
que a
própria
noção tradicional deste é questionada, a
partir do
espaço privilegiado da
narrativa
atual
que revê os pressupostos do
romance de
enigma,
clássico,
fundado
sobre
premissas de uma
ciência
positiva e
sobre o
realismo
literário,
ambos compartilhando a
pretensão de
descrever e
descobrir a
realidade/verdade? A
noção de tradicional a
que
nos referimos, no
entanto, refere-se a uma
concepção
distante,
mas
não perdida. É a
partir de
vários pressupostos epistemológicos
presentes na
ciência
clássica
que
vários
autores estão descrevendo uma
reavaliação do
paradigma tradicional,
para
forjar uma
ciência
que
parte de
um
novo
paradigma. Os
novos
desenvolvimentos ocorrem no
âmbito da
ciência tradicional, conduzindo os
cientistas a uma
reavaliação de
seu
paradigma
científico. No
entanto, é
preciso
ressaltar
que o
novo se aplica
não ao
surgimento destas
noções,
mas ao
seu
reconhecimento
pela
ciência.
Apesar da
recorrência de
termos
inovadores nas
áreas do
saber, os pressupostos
que descrevem
não constituem
novidade,
este
status é conferido
por
seu
acolhimento
pela
ciência.
Apesar
da
enorme
gama
de
desenvolvimentos
científicos
contemporâneos
podemos
distinguir
três
eixos
correspondentes
a
avanços
nas
dimensões
epistemológicas clássicas: da
simplicidade
à
complexidade e da
estabilidade
à
instabilidade
finalmente,
da
objetividade
à
intersubjetividade na
determinação
do
conhecimento
do
mundo.
O
reconhecimento
de
que
o
mundo,
seu
conhecimento
científico
é
socialmente
construído
em
espaços
consensuais, internalizado e institucionalizado
por
diversas
comunidades
científicas, transforma a supressão da subjetividade
em
um
questionamento
da
objetividade.
O
cientista/detetive
opera
em
espaços
múltiplos
da
realidade.
A complexidade representa uma
dimensão
importante
neste
novo
paradigma.
Atualmente,
o
termo
não
implica uma
ausência
ou
insuficiência
teórica,
transformando-se
em
uma
questão,
objeto
de
estudo
e
pesquisa
sistemática.
Na
medida
em
que
o
desenvolvimento
das
ciências
da
informação
oferece
meios
para
a problematização da complexidade, e,
principalmente,
para
a
tentativa
de
estabelecimento
de
respostas,
a
apropriação
de
elementos
do
romance
de
enigma
–
fundado
sobre
a
simplicidade
–
por
parte
da
narrativa
contemporânea
permite
pensar
a complexidade e a
constante
busca
de
soluções
ainda
que
estas sejam inalcançáveis
por
instrumentos
clássicos
de
indagação
da
realidade.
Pensar
a
narrativa
contemporânea
sob
a
perspectiva
da complexidade
não
permite
compreender
o
universo
numa
dimensão
simplificadora,
não
oferece
um
método
(não-positivo)
para
fazê-lo,
mas
gera, compensatoriamente,
um
desafio
que
estimula
novas
formas
de
pensar
e
agir.No
lugar
de uma
chave
única
de
acesso
à
ordem
deste
mundo,
hoje
construímos
chaves
que
nos
permitam
abrir
as
fechaduras
desejadas.
Qual
o
lugar
então
deste
impulso
de decifração?
Com
o
deslocamento
do
logos,
o
antigo
centro
das
narrativas
de
enigma
muda
constantemente
e o
detetive
está neste
espaço
sempre
cambiante,
entre
o
enigma
e o
conhecimento
aos
pedaços.
Sua
motivação é o
amor
ao
conhecimento
e ao
questionamento
não
apenas
dos pressupostos da
ciência
que
não
lhe
permitem
abrir
as
janelas
do
mundo,
mas
também
os de
sua
própria
identidade
inconstante,
enfim,
as
realidades
plurais
e as
identidades
multiplicadas.
O
encanto de
escritores
contemporâneos
pelo
romance de
enigma e a
reafirmação da
conjetura
que o
trespassa afirmam a
vitalidade
desta
parte da
narrativa
que se permite
falar do
conhecimento
em
sua
situação
atual. Esta
devoção
dedicada dos
escritores
contemporâneos
ao
romance de
enigma,
sua
ênfase
convidativa a
pensarmos
sobre os
processos de
conhecimento,
faz-se a
partir da renovação dos
processos e
artifícios do
romance,
revertendo e frustrando as
expectativas
do
leitor.
Em
troca,
oferece-lhe
um
número
infinito de
possibilidades, de
conclusões
em
aberto. O
fascínio
que a
obra de Poe
ainda exerce
não deve
ser procurada
nos
termos de uma
mera
desconstrução de
premissas
antigas,
mas de
sua
problematização e
substituição
por
outros
conceitos.
Diferentemente
da auto-reflexividade
característica do
Modernismo,
ocupada
com a
tarefa da
escrita
como
construção
verbal, a
literatura
contemporânea,
ou ao
menos
parte dela,
enfatiza
questões
epistemológicas, sinalizando
todo
um
novo pressuposto
para a
representação
literária. A
literatura e
sua
ciência
permitem-se
falar de
questões
epistemológicas
abertamente,
quando a
distância
que
fundamentava a
representação
e,
mais
especificamente
segundo
nosso
argumento,
caracterizava o
observador de
primeira
ordem (o
detetive/cientista)
e o
objeto de
sua
investigação
(o
enigma)
não
lhe permite
penetrar a
suposta
essência das
coisas,
refletindo uma
realidade
anterior e
exterior
com
exatidão. A
infinidade de
representações
– e
soluções – a
partir da
infinidade de
pontos de
vista
possíveis é o
canto da
sereia da
narrativa
contemporânea
que se
apropria dos
elementos
básicos do
romance de
enigma.
Através desta
troca
parte do
romance
contemporâneo está
retomando e inovando a
velha e boa
arte da
narrativa.
Em
oposição a uma
ciência
moderna
que procurava legitimar-se
através de
apelos a metadiscursos, a
ciência
contemporânea, ao ocupar-se de
objetos
como “indecidíveis”
ou os
limites do
controle
preciso está teorizando
sua
própria
evolução
como
descontínua e
paradoxal. Está mudando o
significado da
palavra “conhecimento”,
enquanto
expressa
como
tal
mudança pode
ocorrer: produz o
desconhecido,
não o
conhecido. E sugere
um
modelo de
legitimação
em
cuja
base estaria a
diferença,
entendida
como paralogia (Pessis-Paternak,
1993: 4). Neste
sentido,
talvez seja
possível
dizer
que as metanarrativas
que sustentavam o
discurso iluminista
ainda sobrevivam,
apenas
como referenciais
ou instrumentais,
como exemplifica o
físico
brasileiro Mário
Novelo, ao
partir de
modelos fundacionais
para repensarem
respectivamente a
noção e
uso do
conhecimento na
física. A
urgência de
esclarecer a
própria
epistemologia decorre da
mudança paradigmática,
ou da
nova
epistemologia,
que
deixa de
ser
subjacente à
ciência e
passa a
estar
duplamente
presente no
fazer
científico.
Não
apenas
ela
procura
responder à
questão epistemológica
sobre o
sujeito do
conhecimento,
mas o
cientista vive e atua no
mundo a
partir de
sua
epistemologia,
suas
convicções,
valores e
percepção do
que significa
conhecer o
mundo. Na
ciência e
em
outros
campos do
saber,
hoje, os
fins pretendem
contribuir
para a
diversidade, a
incerteza e a indecidibilidade. O
impulso
positivista de
investigação do
mundo permanece,
apesar do
modelo
que circunscreve mostrar-se implausível e
principalmente
por
nos
ter mostrado o
caminho errado – prescindirmos de
nossa subjetividade – e
assim ter-nos indicado
outro percurso.
Conjuguemos
então
esta
busca
incessante
através
de
sua
manifestação
na
literatura
e na
ciência.
O narrador de
Meus
lugares
escuros,
de James
Elroy, declara ao
final
da
busca
frustrada
pelo
assassino
da
mãe.
Diante
do
enigma
duradouro,
ele
afirma: “
nunca
vou
parar
de
procurar.
Eu
não
deixarei
que
isto
termine.
Eu
não
a trairei e
não
a abandonarei
outra
vez”
(MLE, 442). Tomamos a
epígrafe
final
do
livro
como
epígrafe
para
o
final
de
nossa
reflexão:
Estou
com
você
agora.
Você
fugiu e se escondeu e
eu
a achei.
Seus
segredos
estão a
salvo
comigo
agora.(...)
Saqueei
seu
túmulo.
Eu
a revelei. (...) Aprendi
coisas
a
seu
respeito.
Tudo
o
que
aprendi
me
fez amá-la
com
intensidade
ainda
maior.Eu
saberei
mais.
Seguirei
seus
rastros
e invadirei
seu
tempo
oculto.
Descobrirei
suas
mentiras.
Reescreverei
sua
história
e revisarei
meu
julgamento,
à
medida
que
seus
antigos
segredos
forem explodindo. Justificarei
tudo
isto
em
nome
da
vida
obsessiva
que
você
me
legou.Não
consigo
ouvir
sua
voz.
Consigo
sentir
seu
cheiro
e o
sabor
de
seu
hálito.
Posso senti-la. (...)
Você
se foi e
eu
quero
mais
de
você
(Ellroy,
1999: 443).
“A
investigação
continua”, informa uma
nota,
solicitando
que
informações
sobre
o
caso
sejam “ enviadas
para
o
detetive
Stoner”
por
telefone
ou
e-mail
(Ellroy, 1999). A
nota
extrapola a
moldura
diegética, trespassando as
fronteiras
já
complexas, no
romance,
entre
realidade
e
ficção.
O
que
conta
é
que
o
enigma
não
foi desvelado
mas
a
busca
continua,
infinita,
dentro
e
fora
da
narrativa.
Este
novo
detetive
continua
sua
busca,
onde
provas
não
encaixam
como
peças
de
um
quebra-cabeça
cujo
arcabouço
constitui-se
pelo
mistério
da
morte
da
mãe:
Eu
era
um
detetive
sem
sanções
oficiais
e
sem
as
restrições
de
provas.
Eu
podia
pegar
sugestões
e
boatos
e considerá-los verdadeiros.
Eu
podia
viajar
a
vida
dela na
minha
própria
velocidade
mental.
(...)
Eu
podia
envelhecer
na
minha
busca.
(...)
Eu
podia
abrir
mão
da
minha
busca
com
devota
isenção
e
esperar
o
momento
em
que
nossos
olhares
se cruzassem
com
alguma
nuvem
(Ellroy,
1999: 442).
O
enigma,
duradouro,
continua a
ser
perseguido a
partir
da
premissa
de
que
somente
fatos
questionáveis,
em
função
de
um
método
oficial
de
investigação,
podem,
paradoxalmente,
mantê-lo
em
movimento.
A
noção
de
evidência,
a
exemplo
da reconceitualização de
erro
apresentado
por
Satya Mohanty
em
Literary theory and the claims of History, nesta
situação
alterada
demanda
revisão.
Uma
prova
corresponde, tradicionalmente, ao
caráter
de
um
objeto
de
conhecimento
que
não
comporta
nenhuma
dúvida
quanto
à
sua
veracidade e
falsidade,
ligando-se à
certeza.
Isto
é, a
certeza,
percebida
como
prova
de assentimento
que
se pretende
objetiva
e
subjetivamente
eficiente
poderia
ser
definida
como
construção,
baseada
no
conceito
de
produção
de
diversos
modos
de
conhecimento
em
vez
de
um
objetivo
inatingível
de
evidência
universal.
A
desistência
de uma
questão
metafísica
oferece uma
perspectiva
do
conhecimento
e
seus
objetos
para
aqueles
que
se preocupam
com
sua
intervenção
no
mundo.
Para
indivíduos,
como
nós,
desconfiados
das
certezas
do
pensamento
científico
e das
soluções
de
enigmas,
mas
apaixonados
pela
conjetura, pelas
perguntas.
Este
detetive/cientista
assim
está
determinado
a
ser
um
detetive/cientista,
completamente
novo,
está
consciente
de
que
vive – e opera – num
mundo
diferente
daquele do
investigador
do
século
XIX, o
mundo
concebido
como
uma
máquina
com
determinada
engrenagem
cujas
peças,
separadas, podem explicar-lhe o
funcionamento.
Sua
realidade
deve
incluir
as
imagens
das
nuvens,
sempre
abertas
a
novas
configurações,
como
respostas
sempre
provisórias e
multiformes
ao
enigma.
E
sobretudo
a
fazer
um
retorno
auto-reflexivo,
ou
seja,
aplicar
a
ciência
sobre
si
mesma
para
então
problematizá-la e reformulá-la – e
conseqüentemente
seus
próprios
pressupostos
sem
valorizar
as
respostas,
sempre
provisórias,
apenas
movido
pela
vontade
de
procurar.
Isto equivale a
pensar o
observador/investigador
não
mais
imune à
realidade/crime
que observa,
porque a
partir do
momento
em
que o
observador
começa a
observar o
mundo estará
também se auto-observando. Esta
própria
relação de
observação
com o
mundo passará a
ser
seu
objeto de
investigação, tratando-se
portanto de uma
observação de
segundo
grau.
Em
teorias de
conhecimento
atuais tornou-se
senso
comum o
acento
sobre a subjetividade do
investigador /
cientista no
discurso
científico. No
caso deste
investigador, uma
foto de 36
anos definia o
enigma “como
um
corpo deixado numa
estrada e
como
fonte de
inspiração
literária.
Eu
não
tinha
como
separar o
ela do
eu” (MLE, 258). Esta permeabilidade
entre a
mãe e o
personagem concede-lhe
habilidades – literárias – obsessivas,
que brotam
como “a
busca de
um
conhecimento
sombrio” e
mais
ainda, uma
maldição da
obsessão
dada
pela
mãe deu-lhe o
dom
que “adotou
seu
formato
final na
linguagem” (MLE, 259).
Assim, o
romance
Dália
negra,
escrito a
partir de
um
crime
real, o
assassinato da
jovem Betty
Short,
passa a
assumir uma
função de “substituta
simbiótica
para Geneva Hilliker Ellroy”(MLE, 130). A
jovem transformou-se numa
espécie de
obsessão
coletiva da Los Angeles do
pós-guerra. A
alusão ao
romance de 1987 de James Ellroy exemplifica a
relação intertextualidade/enigma:
a
solução de
um
livro está
em
outro.
Em
Dália
negra encontramos o
germe de
busca da
morte da
mãe
como
verdade, uma
espécie de
centro
oco
que ocupa
ambos os
romances. “Procure a
mulher”, recomenda
um
velho
policial
em
Dália
negra, ao
personagem do
investigador Bucky Bleichert, a
quem está
entregue a
narração do
romance: “Cherchez la femme, Bucky.
Lembre-se disso” (Ellroy, 2000:
17). Cherchez la femme,
norma de
investigação criminal, torna-se, nesta
narrativa,
não
apenas endoxa
retórica,
regra intertextual
que usamos,
além daquelas de
gêneros
que utilizamos a
fim de explicarmos
um
texto, de
forma
semelhante às
leis
que utilizamos
para
explicar
universos. A
regra
não funciona e a
busca remete ao
infinito. Cherchez la femme,
este
imperativo, assumirá o
papel de uma
norma perseguida
com
insistência,
sem no
entanto revelar-se
eficaz.
Ou
melhor, o
investigador sabe
que é o
método
disponível,
mas
também percebe
que a
investigação num
mundo
diferente torna-se
problemática.
No
mundo
construído a
partir do
pensamento
causal
clássico, duas
propriedades
diversas se dão,
natural e
inevitavelmente: a
cisão
entre
sujeito/observador
e
objeto/observado
e a
ordenação
geral do
mundo
observado
em
pares de
opostos. Esta
ordem se
confirma,
para o
conhecimento
humano,
em
experiências
diárias,
como
causa e
efeito,
dia e
noite e uma
lista
interminável de
pares
nos
quais os
opostos se
chocam
violentamente.
Paul
Watzlawick,
em “A
perfeição
imperfeita”,
lembra
que esta é
um
longo
confronto
que “ainda
não sagrou,
porém, a
vitória
definitiva de
nenhuma das
falanges”,
resta
indagar-se se
acaso
“existirá
algo no
cerne da
luta e da
negação do
qual se nutre
a
força do
oponente? A
pergunta é
retórica:
Heráclito
já o sabia:
toda
coisa,
para
existir, necessita de
seu
contrário” (Watzlawick,
1984: 166).
Isto ocorre de
diversas
formas.
Para o
taoísmo, o
elemento
determinante
da
cisão
em
pares de
opostos é a
falência do
sentido,
enquanto
para o
cristianismo,
é o
fato de
termos provado
da
árvore do
conhecimento.
Um
evento
desafortunado
que teria
nos
tornado
imunes à
morte,
conforme
lamenta o
personagem – o
cientista
observado –
Peter Stillman,
em
Cidade
de
vidro,
de
Paul Auster (Auster,
1986: 103). Na
ciência
moderna, a
dissensão constitui-se da
severa
separação do
sujeito
observador e do
objeto
observado.
Atualmente, o
fato
incontornável,
segundo o
autor, é
que a
essência da
perfeição contém
algo
que conduz à
imperfeição.
Este
ponto de
vista,
porém,
não constitui
uma
nova
interpretação,
mas a
suposição de
que a desejada
perfeição
ainda
não é a
autêntica
perfeição, e
que
por
este
motivo
nos cabe
procurar
mais dela.
Assim
percebemos,
por
exemplo, as
construções
científicas e
sociais
estabelecem
realidades
que
são o
contrário do
estado
ideal
tencionado,
enquanto
ocorre o
mesmo
com o
indivíduo:
quem
deseja
esquecer relembra
ainda
mais
dolorosamente.
Para chegarmos à
perfeição é
preciso
desarraigar
a
imperfeição.
Mas
este
imperativo
enreda o
anseio da
perfeição numa
armadilha
imposta no
confronto
com o
impulso da
negação e na
premissa desta
utopia,
pois uma
negação
não equivale à
negação da
negação. A
última supõe
uma retroação sendo,
assim,
paradoxal.
Em
resumo, trata-se,
segundo
Watzlawick, do
seguinte:
“pode-se
refutar uma
idéia (ou
hipótese,
cosmovisão etc.)
ou
porque se
sustenta uma
opinião
contrária
ou
porque
não se tomou
partido
nem da
idéia
nem da
sua
negação (seu
oposto) e,
portanto,
nos
encontramos à
margem do
conflito
entre
afirmação e
negação (Watzlawick,
1984: 167).
Ou seja,
estamos
fora do
par de
contrários e
somos
por
isso
autônomos.
Não se
trata de
estar a
favor
ou
contra nesta
contenda,
mas
apesar disso –
e
aí está o
ponto
central –
entramos
em
choque
com a
visão
maniqueísta
que opera uma
divisão do
mundo
em
pares de
opostos, uma
separação
que
aparentemente
o trespassa e define.
Contudo,
assim
que
compreendemos
que a
negação dos
contrários e a
permanência
fora do
contorno dos
pares de
contrários
são
dois
modos de
negação
essencialmente
diversos, e
que
apenas “em
virtude de
certo
malabarismo
mental
ou na
órbita do
pensamento
primitivo
podem
ser concebidas
como uma e
mesma
realidade, fundada na
negação e na
afirmação, abre-se-nos uma
via
que
nos permite
escapar desse
dilema
paradoxal” (Watzlawick,
1984: 167).
Então,
reparamos no
aspecto
inumano desta
construção
que perpassa
nossa
vida
cotidiana e
social,
fato aceito
resignadamente
como
dado
apriorístico do
mundo
real. O
pensamento
maniqueísta
não pode
permitir-se
evitar a
imperfeição
inata,
pertencente à
natureza de
toda
suposta
perfeição e
decorrência
inevitável de
sua
vontade de
perfeição.
Logo, o
paradoxo
torna-se uma
pedra de
toque, num
sentido
não
somente
metafórico,
mas
bastante
concreto.
Uma
quarta
razão,
além da
filosófica, da
literária e da
científica (Eco,2001)
se delineia à
pergunta
sobre a
devoção de
autores e
críticos ao
policial, numa
época
em
que perdemos a
expectativa de
solucionar o
enigma de
forma
definitiva.
Trata-se de uma
razão
imperfeita, da
qual partilham
o
cientista e o
detetive: a
dedicação
apaixonada
que impulsiona
e mantém a
busca
da
elucidação do
mundo, e
não
pela
elucidação.
Mudados os
mecanismos,
mudou a
esperança
por
resultados. O
que
conta é a
procura,
permanente, e
os
resultados,
sempre
imperfeitos
porque
provisórios. A
crise da
razão permite
ao
novo
detetive na
narrativa
contemporânea
reinventar
a
realidade,
pelo
amor à
procura do
enigma,
embora
não espere
mais
encontrar a prometida
resposta.
Estabelecer a
natureza do
método
investigativo
contemporâneo torna-se
impossível
quando
pretendemos
adotar os pressupostos
epistemológicos da
ciência
tradicional – a
simplicidade,
a
estabilidade e
a
objetividade –
se
não assumimos
também
outros. As
técnicas,
recursos e
conhecimentos
desenvolvidos
pela
ciência
tradicional estão
disponíveis
para o
investigador/cientista
de múltiplas
realidades,
mas
seu
uso se dá de
forma
completamente
diferente de
como operava
antes da
transformação paradigmática. Se
não há
leis
definitivas
acerca da
realidade,
mas
apenas
afirmações consensuais, estão perdidas as ingênuas
esperanças de
previsibilidade e
controle.
Este
detetive
das
realidades –
em
contraponto ao
detetive da
realidade do
século XIX –
assume,
assim
como o
novo
cientista, a
complexidade, a
instabilidade
e a intersubjetividade (Esteves, 2002:
153). O
enigma
permanece, e o
novo
detetive/cientista
continua apaixonadamente buscando
nomes
para
a
rosa,
com
um
foco
mais
abrangente,
mais
flexível e
sobretudo
complexo,
integrador,
sem a
intenção de
um
sentido
oculto,
ou
mais de
um,
mas –
afirmativa e
incessantemente
– de
sentidos,
de
verdades.
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