DE IDÉIAS E IDEAIS
UMA LEITURA DE ANTERO DE QUENTAL

Tatiana Alves Soares Caldas
(UNESA e UniverCidade)

Antero de Quental, um dos principais integrantes da chamada Geração de 70, grupo literário que deu início ao realismo português, apresentou uma produção literária que incluía obras de intenção social, filosófica e política. Sendo dotado de uma vasta cultura e de um olhar crítico acerca das questões de seu tempo, foi ainda um dos principais divulgadores do pensamento socialista em Portugal, marcando a influência do cientificismo na mentalidade oitocentista.

A produção poética anteriana é considerada por muitos uma síntese de sua trajetória, tanto biográfica como literária. Desse modo, Raios de extinta luz e Primaveras românticas marcariam a primeira fase, na qual estão presentes o lirismo amoroso, o erotismo e a religiosidade. A estes se seguiriam as Odes modernas, obra caracterizada pela ação social e pela irreverência, sendo a mais expressiva de sua obra. A última fase, pautada pela reflexão metafísica e pelo pessimismo, é presentificada por Sonetos.

Em Odes modernas, obra da fase realista propriamente dita da poesia anteriana, nota-se o engajamento de vertente político-filosófica - influenciada pelos pensamentos de Platão e Proudhon -, além da reflexão sobre o papel da poesia. Nela se encontra a visão do homem da modernidade, dilacerado entre fé e progresso, entre religião e socialismo, lançando uma perspectiva filosófica sobre a sociedade do Portugal do século XIX. Observe-se que o próprio título da obra parece indiciar a tônica da mesma: enquanto odes remete à orientação clássica, o adjetivo modernas aponta a perspectiva da modernização, uma das preocupações da Geração de 70, que tentara, com as Conferências do Cassino, reformar a mentalidade e a sociedade portuguesas.

Acreditando que os sonetos de Odes Modernas estabelecem, no plano estrutural e semântico, as etapas do processo dialético como estratégia de reflexão, nosso estudo propõe uma análise da obra anteriana à luz dos conceitos filosóficos como marca do pensamento racional e objetivo que norteou o olhar realista.

Um dos principais traços percebidos em Antero diz respeito a uma fé desvinculada da perspectiva meramente mística e fixada na Ética, que se traduz na busca de uma nova Idéia, aqui entendida como uma reformulação de conceitos baseada nas correntes filosóficas e científicas que surgiam. Trata-se da fé como forma de elevação, destituída de simbolismo religioso, estando mais ligada à ética e à moral. Dessa forma, a Fé surge aqui como abstração, como conceito, e não em seu caráter subjetivo e dogmático, uma vez que este negaria o positivismo realista.

A nova Idéia buscada pelo eu-lírico anteriano entrelaça aspectos até então inconciliáveis, e a chegada a um ponto de equilíbrio assinala um processo quase dialético, em que se parte de uma tese, que será posteriormente negada por uma antítese, para que uma síntese seja alcançada. A tríade dialética não apenas mostra a influência de Hegel como aponta a estrutura formal mais freqüente na obra anteriana: o soneto é, por excelência, a estrutura que melhor serve ao processo dialético. Segundo Maria Madalena Gonçalves, na apresentação crítica às poesias de Antero, o soneto transporia, para o plano da Forma, o processo dialético de captação da Idéia:

(...) Tal como no sistema de Hegel é a Ideia (movimento geral do universo) que se exterioriza no homem, primeiro através do espírito subjectivo (esfera dos instintos), depois através do espírito objectivo (esfera da inteligência e do social) e, por fim, do espírito absoluto (que arte, religião e filosofia encarnam), Antero propõe uma evolução gradual no interior do poeta (...), uma evolução por estádios que culminará na Arte, por intermédio de uma forma poética privilegiada - o soneto.

(GONÇALVES, 1981: 28)

A imagem de algo absoluto, que estaria acima dos instintos e da sociedade, remete de forma inequívoca ao pensamento platônico, que defendia um conhecimento contido em idéias eternas e absolutas, presentes em um mundo separado. O mundo das idéias, tal como o definiu Platão, corresponderia à verdade em sua essência, uma vez que as coisas sensíveis presentes no mundo das sombras nada mais seriam do que imitações, mutáveis e ilusórias, do mundo das idéias.

No soneto I da série Tese e Antítese, a remissão à dialética hegeliana já se evidencia a partir do próprio título, e será confirmada ao longo do poema. Significativamente, na poesia anteriana os títulos se repetem com freqüência, talvez numa sugestão do caráter dinâmico e mutável do mundo e da Arte. O soneto reflete acerca do conhecimento e de como ele se afigura ao eu-lírico então:

Já não sei o que vale a nova idéia,

Quando a vejo nas ruas desgrenhada,

Torva no aspecto, à luz da barricada,

Como bacante após lúbrica ceia!

Sanguinolento o olhar se lhe incendeia...

Aspira fumo e fogo embriagada...

A deusa de alma vasta e sossegada

Ei-la presa das fúrias de Medeia!

Um século irritado e truculento

Chama à epilepsia pensamento,

Verbo ao estampido de pelouro e obus...

Mas a idéia é num mundo inalterável,

Num cristalino céu, que vive estável...

Tu, pensamento, não és fogo, és luz!

(GONÇALVES, 1981: 102-103)

A primeira estrofe apresenta-se marcada por uma atitude inicial de dúvida, de não-conhecimento. O sujeito lírico tenta apreender o sentido da nova idéia, como se esse conhecimento correspondesse ao sentido da própria existência:

Já não sei o que vale a nova idéia,

Quando a vejo nas ruas desgrenhada,

Torva no aspecto, à luz da barricada,

Como bacante após lúbrica ceia!

(Ibidem: 102)

Ao afirmar não saber o que vale a nova idéia, o eu-lírico demonstra uma estupefação diante de um mundo em constante mutação. A idéia que se perde nesse redemoinho é comparada a uma bacante após uma lúbrica ceia, numa sugestão da essência que se corrompe e degrada em meio à satisfação de impulsos e instintos. Não por acaso ela surge desgrenhada e torva, intensificando a sua quase animalização.

A segunda estrofe reitera o processo de degradação observado na primeira, mostrando a idéia aprisionada pelas fúrias:

Sanguinolento o olhar se lhe incendeia...

Aspira fumo e fogo embriagada...

A deusa de alma vasta e sossegada

Ei-la presa das fúrias de Medeia!

(Ibidem: 103)

As imagens do olhar incendiado e sanguinolento, bem como da embriaguez e da fumaça, conferem à idéia um tom quase depreciativo, sugerindo uma espécie de torpor incompatível com a razão. O estado de quase inconsciência em que ela se encontra sugere a ausência de paradigmas no momento presente, visão confirmada pela estrofe subseqüente:

Um século irritado e truculento

Chama à epilepsia pensamento,

Verbo ao estampido de pelouro e obus...

(Ibidem: 103)

Note-se a crítica ao mundo de então, como se o século irritado e truculento fosse o responsável pela degradação da idéia em sua essência. A valorização da guerra e da violência, presente sobretudo nas imagens do pelouro e do obus, contribuiriam, segundo o sujeito poético, para o caos em que o mundo se encontra. Mais uma vez nota-se a influência de Platão, que defendia um conceito de Moral baseado na busca do Bem, aqui identificado com o Belo e o Uno. Dessa forma, a filosofia platônica combatia o relativismo dos valores, pregando os conceitos em seu sentido absoluto. A brutalidade das peças de artilharia contrasta com a Idéia como abstração, numa imagem fugidia mas poderosa, como se vê na estrofe seguinte:

Mas a idéia é num mundo inalterável,

Num cristalino céu, que vive estável...

Tu, pensamento, não és fogo, és luz!

(Ibidem: 103)

A última estância apresenta uma remissão quase literal ao Mundo das Idéias alegorizado por Platão, ao falar de um mundo superior, inalterável, no qual a idéia permanece estável. Digno de destaque é o verbo ser no indicativo, numa assertiva que contrasta com o tom modalizante das estrofes precedentes. Há definições precisas, sugerindo um conhecimento, uma consciência acerca das coisas por parte do sujeito lírico, consciência essa enfatizada pela exclamação no último verso. A tese e a antítese referidas no título correspondem à ignorância e à constatação de tal ignorância. A descoberta da consciência, decorrente da tensão Luz X Fogo, representa a síntese desse processo, numa referência à Alegoria da Caverna, em que as imagens e sombras distorcidas pelo fogo eram tidas como a realidade, e a luz do sol, do mundo de fora da caverna, cegava temporariamente quem dela saía, criando nos habitantes a ilusão de que reais eram as sombras que se viam antes. Ao afirmar que o pensamento não é fogo, é luz, o eu-lírico defende a supremacia do espiritual sobre o carnal, uma vez que a luz aponta, em seu simbolismo, a verdade e a transcendência:

(...) A simbologia luz-espírito é especialmente relevante na visão de mundo do maniqueísmo e da gnose. (...) No budismo a luz significa metaforicamente o conhecimento da verdade e a superação do mundo material no caminho para a realidade absoluta. (BIEDERMANN, 1993: 227-228)

A superação do materialismo, bem como o conhecimento da verdade absoluta, remetem de forma inequívoca à alegoria platônica. Note-se que o soneto anteriano mostra uma idéia entorpecida por fogo e fumaça. Chevalier, em seu Dicionário de símbolos, associa o fogo à ambivalência do mundo, representando a ilusão do mundo das sombras, trêmulas e vacilantes:

(...) O fogo terrestre simboliza o intelecto, a consciência, com toda a sua ambivalência. (...) A chama também é vacilante, e isso faz com que o fogo também se preste à representação do intelecto quando este se descuida do espírito.

(CHEVALIER, 1990: 440-443)

Desse modo, o eu-lírico fala de um pensamento que ele descobre não ser fogo mas luz, aludindo à elevação da luz do lado de fora da caverna.

O soneto II da série Tese e Antítese apresenta uma oposição Céu X Terra que também remete, a nosso ver, ao binômio Mundo das Sombras/ Mundo das Idéias:

Num céu intemerato e cristalino

Pode habitar talvez um Deus distante,

Vendo passar em sonho cambiante

O Ser, como espectáculo divino:

Mas o homem, na terra onde o destino

O lançou, vive e agita-se incessante...

Enche o ar da terra o seu pulmão possante...

Cá da terra blasfema ou ergue um hino...

A idéia encarna em peitos que palpitam:

O seu pulsar são chamas que crepitam,

Paixões ardentes como vivos sóis!

Combatei pois na terra árida e bruta,

Té que a revolva o remoinhar da luta,

Té que a fecunde o sangue dos heróis!

(GONÇALVES, 1981: 106)

Neste soneto, a tese e a antítese demarcam a oposição entre os dois planos, aqui simbolizados pelo Céu e pela Terra. Observe-se que não se trata de uma oposição de ordem religiosa, mas filosófica, em que o mundo superior, o da consciência, contrasta com o mundo terreno, caracterizado pelo conflito e pela involução.

A primeira estrofe retrata um céu intemerato e cristalino, sugerindo um espaço onde não há temor. A caracterização positiva do local é intensificada pela imagem da transparência, evidenciando a clareza em todas as suas acepções. A esse mundo elevado opõe-se o mundo terreno, numa dicotomia reiterada pela repetição do termo terra, enfatizando o espaço a ser redimido pela consciência, como se observa na segunda estrofe:

Mas o homem, na terra onde o destino

O lançou, vive e agita-se incessante...

Enche o ar da terra o seu pulmão possante...

Cá da terra blasfema ou ergue um hino...

(Ibidem: 106)

A terra, aqui vista como representação do Mundo das Sombras, demarca uma antítese do céu, como se pode notar pela conjunção que inicia a estrofe, acentuando a oposição entre ambos. A referência ao outro mundo é precedida pela adversativa, estabelecendo a oposição entre os mundos superior e inferior. Não por acaso, enquanto aquele é repleto de luz, este aparece marcado pela agitação e pela blasfêmia.

Entretanto, há uma perspectiva de síntese, uma vez que há seres movidos por um ideal, e que poderiam se afastar das sombras, buscando o sol, como se verifica nos dois tercetos:

A idéia encarna em peitos que palpitam:

O seu pulsar são chamas que crepitam,

Paixões ardentes como vivos sóis!

Combatei pois na terra árida e bruta,

Té que a revolva o remoinhar da luta,

Té que a fecunde o sangue dos heróis!

(Ibidem: 106)

Observe-se que as paixões que os impelem não são paixões carnais; ao contrário, pertencem ao campo semântico do ideal, da paixão combativa, da entrega a uma causa. Através da luta, da revolta advinda dos seres cujos peitos palpitam com a Idéia, chegar-se-ia à síntese. Não por acaso, os termos luta e heróis são utilizados para representar essa atitude que pode revolver a terra árida e bruta, fecundando-a. O engajamento dos heróis age como fator de conscientização dos demais, trazendo o conhecimento, e sendo, portanto, revestido de uma conotação heróica. Lembremo-nos, mais uma vez, das palavras do filósofo grego, que defendia o retorno à caverna, com o objetivo de conscientizar aqueles que ainda viviam no Mundo das Sombras e desconheciam a própria ignorância. Essa valorização da Idéia como a abstração que pode redimir os homens constitui a tônica do pensamento platônico e perpassa a obra anteriana. Ainda que pareça intangível ou misteriosa, deve ser constantemente buscada, como se observa no soneto V da série A Idéia:

Mas a Idéia quem é? quem foi que a viu,

Jamais, a essa encoberta peregrina?

Quem lhe beijou a sua mão divina?

Com seu olhar de amor quem se vestiu?

Pálida imagem que a água de algum rio,

Reflectindo, levou... incerta e fina

Luz que mal bruxulei pequenina...

Nuvem que trouxe o ar... e o ar sumiu...

Estendei, estendei-lhe os vossos braços,

Magros da febre dum sonhar profundo,

Vós todos que a seguis nesses espaços!

E, no entanto, ó alma triste, alma chorosa,

Tu não tens outra amante em todo o mundo

Mais que essa fria virgem desdenhosa!

(GONÇALVES, 1981: 112)

A reverência à Idéia é vista na sua caracterização como divindade, ou no ato de lhe beijarem a mão. As maiúsculas, se por um lado apontam a personificação, por outro sugerem a referência à abstração, à essência.

Todas as imagens da segunda estrofe refletem a indefinição, a fraqueza, a ausência, acentuando o caráter fugidio da Idéia - aqui tomada como Razão, Clareza, Consciência - quando não totalmente alcançada:

Pálida imagem que a água de algum rio,

Reflectindo, levou... incerta e fina

Luz que mal bruxulei pequenina...

Nuvem que trouxe o ar... e o ar sumiu...

(Ibidem: 112)

A imagem da Idéia que enfraquece quando não encontrada é intensificada pelo uso de adjetivos e pronomes que reiteram a indefinição - pálido, algum, incerto, mal -, bem como pelos verbos presentes na estrofe: bruxulei, sumiu, acentuando as imagens que remetem ao campo semântico da doença, do entorpecimento, da fraqueza:

Estendei, estendei-lhe os vossos braços,

Magros da febre dum sonhar profundo,

Vós todos que a seguis nesses espaços!

(Ibidem: 112)

A expressão magros da febre dum sonhar profundo evidencia a ausência de perspectivas por parte daqueles que não estão envolvidos em nenhuma busca, sendo tal busca o que, segundo o eu poético, daria sentido à existência.

A imagem da perseguição obsessiva da Idéia aparece em outros sonetos da série homônima. O soneto VIII tematiza novamente essa procura, evidenciando o caráter árduo da demanda. A imagem ascensional do Mundo das Idéias é aqui simbolizada pelo Céu, num anseio de ordem metafísica. O eu-lírico dirige-se a um interlocutor que procura um Céu, o espaço da Idéia, do Absoluto:

Lá! Mas onde é ? Aonde? - Espera,

Coração indomado! O Céu que anseia

A alma fiel, o céu, o céu da Idéia,

Em vão o buscas nessa imensa esfera!

O espaço é mudo - a imensidade austera

Debalde noite e dia se incendeia...

Em nenhum astro, em nenhum sol se alteia

A rosa ideal da eterna primavera!

O Paraíso e o templo da Verdade,

Ó mundos, astros, sóis, constelações!

Nenhum de vós o tem na imensidade...

A Idéia, o sumo Bem, o Verbo, a Essência,

Só se revela aos homens e às nações

No céu incorruptível da Consciência!

(GONÇALVES, 1981: 113)

A dificuldade da procura é acentuada pelos termos mudo e austero, que demarcam a errância humana. O Paraíso, em sua essência, ainda não teria sido encontrado pela humanidade, uma vez que estaria ligado à consciência, como se observa nas duas estrofes finais. O último terceto parece sintetizar não apenas o soneto em questão, mas a postura do sujeito lírico anteriano no que diz respeito à Consciência como elemento primordial na condução ao mundo ideal, do Bem, do Verbo, da Essência. A crença de que uma consciência incorruptível leva à Idéia em sua plenitude revela a, um só tempo, a influência de Platão e Proudhon na lírica anteriana. Platão, ao pregar a necessidade de retorno à caverna, acentua o compromisso daqueles que já tiveram a revelação da Verdade para com aqueles que ainda não atingiram tal estágio. Digna de destaque é a passagem, contida na Alegoria da Caverna, em que o filósofo associa o Conhecimento à Moral:

(...) Tereis, pois, de descer cada um por seu turno à vivenda subterrânea dos demais e acostumar-vos a enxergar no escuro. Uma vez acostumados, vereis infinitamente melhor que os habitantes da caverna e conhecereis cada imagem e o que representa, porque já tereis visto o belo, o justo e o bom na essência. (PLATÃO, [s/d]: 186)

A constatação de que é necessário voltar à escuridão da caverna, atitude tão mais difícil para quem já vislumbrou a claridade do mundo superior, pode ser vista ainda em alguns poemas de Sonetos, última fase da produção anteriana. Tormento do Ideal traduz a angústia de quem conheceu a Luz mas se vê na obrigação de retornar às sombras:

Conheci a Beleza que não morre

E fiquei triste. Como quem da serra

Mais alta que haja, olhando aos pés a terra

E o mar, vê tudo, a maior nau ou torre,

Minguar, fundir-se, sob a luz que jorre;

Assim eu vi o mundo e o que ele encerra

Perder a cor, bem como a nuvem que erra

Ao pôr-do-sol e sobre o mar discorre.

Pedindo à forma, em vão, a idéia pura,

Tropeço, em sombras, na matéria dura,

E encontro a imperfeição de quanto existe.

Recebi o batismo dos poetas,

E, assentado entre as formas incompletas,

Para sempre fiquei pálido e triste.

(GONÇALVES, 1981: 132)

Ao afirmar ter conhecido a Beleza que não morre, o eu-lírico assume ter tido acesso ao mundo superior, e, em decorrência disso, tem consciência do que é viver nas sombras, vendo a maior nau ou torre minguar, fundir-se sob a luz que jorre. À procura da idéia pura, ele tropeça, em sombras, na matéria dura, evidenciando a tensão do plano superior com o embrutecimento encontrado nas sombras. Depois do batismo da Luz, volta às trevas das formas incompletas, da luz bruxuleante. Do desconhecimento inicial, passou-se à consciência. Cumpre, agora, atingir a síntese do processo, na conscientização dos demais. A Beleza que não morre contrasta de forma dolorosa com o mundo que perde a cor, acentuando a oposição entre os dois mundos definidos por Platão.

Já no que se refere a Proudhon - principalmente na imagem do socialismo como libertação -, verifica-se, em trechos de cartas de Antero, essa visão de uma redenção através da Moral, em que o escritor estabelece a aliança entre Ética e Estética, elogiando o pensamento proudhoniano. É talvez em Hino à Razão, também integrante de Sonetos, que a influência de Proudhon mais se faça notar, na medida em que o poema em questão defende a virtude e o heroísmo, através de um combate de ordem moral, em que a tomada de consciência tornaria o mundo justo e igualitário:

Razão, irmã do Amor e da Justiça,

Mais uma vez escuta a minha prece.

É a voz dum coração que te apetece,

Duma alma livre, só a ti submissa.

Por ti é que a poeira movediça

De astros e sóis e mundos permanece;

E é por ti que a virtude prevalece,

E a flor do heroísmo medra e viça.

Por ti, na arena trágica, as nações

Buscam a liberdade, entre clarões;

E os que olham o futuro e cismam, mudos,

Por ti, podem sofrer e não se abatem,

Mãe de filhos robustos, que combatem

Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

(GONÇALVES, 1981: 130-131)

O próprio título já sintetiza a essência do poema: trata-se de um louvor, de uma homenagem. A primazia concedida à Razão reitera a postura racional e filosófica, tão cara à estética realista. É a ela que o eu-lírico se dirige, irmanando-a ao Amor e à Justiça. Observe-se que o sujeito poético apresenta uma prece, marcando uma fé não de ordem religiosa, mas filosófica. Ao afirmar-se uma alma livre, só a ti submissa, mostra-se livre de amarras ou crenças, subordinado apenas àquilo que o guia e que humaniza a sociedade. A criação, destituída de sua perspectiva mística, surge aqui como mera poeira, iluminada pela Razão. A virtude e o heroísmo estariam, segundo o eu poético, na consciência humana, conferindo ao pensamento racional a capacidade - e a responsabilidade - de transformar o mundo. Essa missão é evidenciada nas duas últimas estrofes, na imagem dos filhos robustos que se erguem, heróicos, lutando sob o signo da Razão:

Por ti, podem sofrer e não se abatem,

Mãe de filhos robustos, que combatem

Tendo o teu nome escrito em seus escudos!

(Ibidem: 131)

A atitude racional, movida por uma crença de caráter filosófico, conduz a um objetivo socialista. As idéias e valores que libertariam a humanidade teriam sua origem na racionalidade, aumentando inclusive a responsabilidade de engajamento do indivíduo. A Razão aludida surge como matriz da virtude e do heroísmo, propiciando um combate ético e ideológico, que se realiza através da tomada de consciência. A Arte apresenta-se como redentora, na medida em que batiza seus escolhidos, fazendo deles agentes de transformação, possibilitando a saída da caverna, para, com a luz gerada pela Razão, chegar, enfim, ao Mundo das Idéias.

BIBLIOGRAFIA

BIEDERMANN, Hans. Dicionário ilustrado dos símbolos. São Paulo: Melhoramentos, 1993.

CHEVALIER, Jean & GHEERBRANDT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.

CIDADE, Hernâni. Antero de Quental: a Obra e o Homem. Lisboa: Arcádia, 1978.

LOPES, Óscar. Antero de Quental: vida e legado de uma utopia. Lisboa: Caminho, 1983.

PLATÃO. Diálogos - A República. Rio de Janeiro: Tecnoprint, [s/d.].

MONTEIRO, Adolfo Casais. Antero de Quental - Poesia e Prosa. Rio de Janeiro: Agir, 1960.

GONÇALVES, Maria Madalena. Poesias de Antero de Quental. Lisboa: Seara Nova e Editorial Comunicação, 1981.