Discurso
direto
e
discurso
indireto
história
e
sentidos
Vanise Gomes de Medeiros (UERJ e PUC-Rio)
Introdução
Em
relação ao
discurso
direto e
indireto, há uma
posição tradicional,
presente
em diversas
gramáticas contemporâneas,
que apresenta o
discurso
direto (doravante DD)
como
aquele
em
que se reproduz a
palavra do
outro e o
discurso
indireto (doravante
DI)
como
aquele
em
que se reformula a
palavra do
outro.
Conforme essa
posição,
com o DD se garante a
fidelidade do
dizer;
já
com DI a
questão da
fidelidade se
torna
complexa uma
vez
que
aí se traduz a
palavra do
outro.
Ainda nessa
tradição, o DI
também é pensado
como sendo uma transformação de
um
discurso
direto,
isto é,
como
um “DD transformado” (Authier-Revuz,
1976: 6),
um
discurso
segundo a
partir de
um
discurso
primeiro (o DD, no
caso).
Isto
posto,
com
este
trabalho pretende-se
mostrar
que
tal
posição, se
dominante
em inúmeras
gramáticas e
também
presente
em
abordagens
lingüísticas (como é o
caso,
por
exemplo, da
abordagem transformacionalista),
não constitui, no
entanto, uma
posição
única.
Mais do
que
isso, objetiva-se
demonstrar
aqui
que
tal
posição é
fruto de
um
tratamento de
base lógico-sintática,
cujo percurso será
exposto neste
trabalho.
Discurso
direto
e
indireto
na
tradição
clássica
Rivara (2000)
bem
como Compagnon
(1996), na releitura
que fazem de
Platão, apontam
em
A
República
o gérmen de uma
discussão
que pode
ser trazida
para essas duas
formas de
discurso
relatado (DD e DI).
Conforme
Rivara (2000: 16), Platão opõe as
obras
em
que o
autor
fala
sempre
em
seu
próprio
nome e expõe a
história
àquelas
em
que
ele segue o
princípio da
imitação e dá
a
palavra a uma
personagem,
tentando
nos
dar a
impressão
que
não é
ele
que
fala. Platão
manifesta
sua
desconfiança
pela
segunda,
isto é,
por aquelas
obras
em
que o
autor dá a
palavra ao
personagem
dando a
impressão de
que
não é
ele,
autor,
quem
fala, e
prefere a
primeira,
isto é,
aquelas
obras
em
que se tem a
narrativa “pura”,
em
que há “harmonia”.
Isto possibilita uma
importante
observação:
dar a
palavra ao
outro,
em Platão,
conforme Rivara, resulta
em simulação. O
que significa
que o DD pode
ser pensado
não
como
lugar de
reprodução do
discurso do
outro,
mas
como
espaço de simulação de
um
dizer.
Compagnon
(1996)
também inscreve a
questão do DD e DI na
problemática da mímesis
em Platão.
Apesar de,
tal
como Rivara (2000),
situar o
problema destas duas
formas de
discurso relatado na releitura
que faz de A
República, Compagnon vai
buscar na reformulação do
funcionamento da mímesis
em O sofista a
compreensão da
posição de Platão
em A
República.
Em O sofista,
diferentemente do
que ocorre
em A
República,
não se tem
mais a
tríplice
divisão
entre: a
idéia de
cada
coisa,
que se situa no
patamar da
verdade e
que tem
por
criador
Deus, a
cópia da
realidade,
em
que se tem a
produção do
objeto
pelo
artesão, e a
cópia da
cópia,
em
que se
encontra a
imagem obtida
pelo
pintor
ou
poeta. A
divisão é
outra
em O sofista; e será essa
outra
divisão
que irá
permitir se
entender,
em Platão, o
desprestígio do
discurso
direto
em
prol do
indireto.
Conforme Compagnon, nesse
outro
texto de Platão, as
artes de
produção
são divididas
em
dois
tipos: a
produção
divina e a
produção
humana.
Cada uma delas produzindo
realidades e
imagens. As
realidades da
produção
divina corresponderiam à
criação;
já as
imagens da
produção
divina seriam,
por
exemplo, os
sonhos. Do
lado da
produção
humana, ter-se-ia
como
produção da
realidade a
casa do
pedreiro,
por
exemplo. E
como
produção das
imagens uma
nova
divisão:
Por
um
lado, a
arte de
produzir
cópias (eikon), as “boas”
imagens
que respeitam as
proporções,
que
são dotadas de
semelhança
com a
idéia;
por
outro, a
arte de
produzir
simulacros (phantasma), as más
imagens
que simulam a
cópia,
que fabricam a
ilusão,
que
são desprovidas de
semelhança
com a
idéia
porque
são produzidas
sem
passar
pela
idéia. (idem,
48)
Ou seja,
em O Sofista tem-se uma
divisão
entre boas e más
imagens, sendo a
primeira a
cópia,
que mantém
relação
com a
idéia, e a
segunda, o
simulacro,
que
não mantém
relação alguma
com a
idéia. Cabe
destacar
que o
simulacro
não é uma
cópia da
cópia,
ou
melhor, o
simulacro
não é
sequer uma
cópia,
mas uma simulação da
cópia. Trata-se de uma
imagem
desprovida de
semelhança.
É,
pois, esta
nova
divisão
que irá
permitir Compagnon
resolver o
impasse
que expõe
em A
República ao se
ter
aí a valorização do DI
em
detrimento do DD.
Eis o
impasse: “como
integrar o
discurso
indireto ao
trabalho do
artesão,
ambos valorizados; e o
discurso
direto ao
objeto
pintado,
ambos desvalorizados?” (ibidem:
50).
Para
isto, seria
preciso
entender o DD
como
cópia do DI,
isto é,
como
cópia da
cópia, o
que se
mostra
problemático.
Com a
nova
descrição da mímesis de O sofista,
tal
dilema se desfaz na
medida
em
que se tem
aí o
resgate da mímesis
através da
sua
divisão
em
produção de boas
imagens (cópias) e de
más
imagens (simulacros).
Ou seja,
com esta
outra
leitura é
possível se
entender o
lugar do DI,
como
cópia (boa
imagem), e do DD,
como
simulacro (má
imagem). O DD
não é,
então,
cópia do DI.
Em
suma, o DI é tomado
como tendo
relação
com a
idéia, uma
vez
que é
cópia (boa), e o DD,
como
não tendo
relação
com a
idéia,
como
não sendo
cópia do DI,
isto é,
como
não sendo
cópia da
cópia.
Portanto, o DD, na releitura de Platão
por Compagnon,
não se apresenta
como
espaço de
reprodução
tampouco
como tendo a
pretensão de
funcionar
como
um
discurso
verdadeiro. Ao
contrário, o DD é
aí
simulacro e,
como
tal, condenável.
Enfim, o DD,
longe de
ser tomado
como
discurso do
qual o DI derivaria,
longe de
ser tomado
como possibilidade de
reprodução de
discurso,
longe de
ser pensado
como sendo “fiel” ao
discurso
outro, é proposto
como
simulacro:
não se
trata
sequer de uma
cópia,
mas de
ilusão
que serve
para
enganar,
ludibriar.
O DD
não tem,
pois,
sua
gênese no
paradigma da
verdade.
Isto, pensado discursivamente, significa
que o DD
nem
sempre fez
funcionar o
efeito de
verdade
que
hoje se faz
presente nas
gramáticas,
em algumas
abordagens
lingüísticas e no
imaginário de
língua.
Já o DI,
como se observou, funciona
como
cópia, boa
imagem. Se
não faz
funcionar o
efeito de
verdade,
tampouco funciona,
como ocorre
com o DD,
como
recurso
lingüístico
que serve ao
engano.
Estes
dois
autores,
em
suas releituras de Platão, permitem
assim
problematizar o
funcionamento de duas
formas de
discurso
outro
tal
como
elas se apresentam no
imaginário
atual:
reprodução de
um
dizer, no
caso do DD, e
tradução de
um
dizer, no
caso do DI.
Oposição
que
trabalha
também o
efeito de anterioridade do DD
sobre o DI,
que
aí
ainda
não se apresenta.
Através de Rosier (1999) vai se
poder
avançar
um
pouco
mais
esse
quadro.
Embora Rosier critique a
posição de Compagnon,
porque
este teria
feito
deslizar uma
questão
relativa à
narração,
ligada à
noção de
gênero,
para
um
fato
gramatical –
afinal, no
latim
como no
grego o
problema do
discurso relatado é
tratado no
quadro das
figuras de
narração e
não
como uma
fato
gramatical (Rosier,
1999: 15) –,
ela irá
confirmar a
supremacia do DI
sobre o DD e, indo
além,
apontar o DI
como sendo uma
forma de
discurso
que teria
seu
funcionamento, no
período
clássico,
como
discurso da
verdade,
em
virtude de se
constituir
como
discurso da
lei.
Defendendo a
posição de
que o
par oratio recta e oratio obliqua
ultrapassa uma
correspondência
com o
que se entende
hoje
por DD e DI, uma
vez
que
não se restringe à
frase e
tampouco se apresenta nas
gramáticas latinas,
mas se
trata uma
oposição de
ordem
retórica (onde se
encontra
tal
oposição no
período
clássico),
isto é, uma
oposição
que serve
para
diferenciar
gêneros discursivos, Rosier vai
apresentar
sua
hipótese
sobre DI inscrevendo-o na
relação da
narração
com o
político,
isto é, partindo do
suposto de
que a
questão da
narrativa tem
injunções
políticas
com
conseqüências na
forma de
discurso relatado.
Conforme esta autora, o DI tem
seu nascimento,
seu
primeiro
texto
escrito, no
século II a.C.,
com a proscrição dos
rituais dos
Bacanais.
Esses
rituais,
que vinham sendo
objeto de perseguições judiciárias,
são
proibidos
pelo
senado
grego
que redige,
em
discurso
indireto, o
texto de
interdição dos
Bacanais. Trata-se,
pois, de
um
texto
que institui uma
forma de
escrita da
lei,
qual seja, o
discurso
indireto. Pensando
esse
gesto
através da
Análise de
Discurso,
teoria
que serve de
suporte
para a
reflexão
aqui empreendida, trata-se de
um
duplo
movimento,
como se pode
observar: ao
mesmo
tempo
em
que se instaura uma
forma de
escrita da
lei,
em
discurso
indireto,
este
modo de
escritura,
isto é, o DI, funciona
como
forma
que confere
um
estatuto
oficial ao
enunciado
que
ele relata.
Retornando à
autora citada, esta formula
sua
hipótese
sobre o DI: trata-se de uma
forma codificada
por uma
prática
política; uma
forma
que se inscreve
como
prática de uma
determinada
formação discursiva,
qual seja, a da
lei:
E
com
isto se inscreve
como
forma de relato da
verdade (ibidem).
Portanto, a
partir de Rosier, pode-se
observar o DI
como materializando uma
determinada
formação discursiva,
qual seja, a
jurídica, e instaurando
assim uma
forma de relato do
discurso da
verdade,
em DI, ao
mesmo
tempo
em
que se instaura
como
forma de
discurso da
verdade. Uma
forma de
prática da
verdade
que
também atua no
discurso
histórico. Neste,
bem
como no
discurso
jurídico,
não se teria o DD. É interessante
sublinhar
que o
não comparecimento do
discurso
direto no
discurso
jurídico e no
discurso
histórico, no
período
clássico, se deve, recuperando o
que se observou
com Compagnon,
em
função de,
com o
discurso
indireto, o
autor
falar,
isto é, de o
discurso
indireto
funcionar
como se o
autor assumisse o
dizer ao
passo
que o
discurso
direto funciona
como se o
autor simulasse
um
dizer, instaurando
assim a
ilusão de
um
falso
dizer.
Antes de
prosseguir, é interessante
trazer esta
questão
para
nossos
dias
para
observar o
discurso
indireto funcionando
como
prática do
discurso da
verdade
em
alguns
territórios discursivos da
sociedade
contemporânea.
O
discurso
indireto
ainda é uma
forma de
inscrição na
lei da
fala do
outro.
Ou
melhor, o
discurso
indireto é uma
prática
corrente
judiciária
em
diferentes
situações enunciativas.
Por
exemplo,
tanto
em
depoimentos
policiais
quanto
em relatos de
depoimentos
nos
tribunais, relata-se a
palavra do
outro
em
discurso
indireto e se responsabiliza
com
esse
gesto o
outro
pelo
dizer. E
não
somente
aí,
em outras
práticas institucionais o
discurso
indireto
também comparece funcionando
como
forma atestatória do
dizer e do
fazer: é o
que se pode
observar nas
atas e
documentos
em
reuniões
em
que os
dizeres e
fazeres
são redigidos
em
discurso
indireto e,
depois de lidos, assinados.
Ou seja,
ainda
que as
gramáticas e
abordagens
lingüísticas contemporâneas apontem
para o DD
como
forma de
reprodução
fiel, há
territórios
em
que o
discurso
indireto se
encontra institucionalizado
como
prática de
um
discurso da
verdade.
Voltando à
Rosier, se,
por
um
lado, a autora observa
que o
discurso
indireto constitui uma
prática
política,
isto é, uma
prática do
discurso
jurídico (e
também do
discurso
histórico) é
em
outro
lugar
que irá se
encontrar o DD no
período
clássico, a
saber, na
poética.
Ou seja, o DD se apresenta
como tendo
estatuto estilístico ao
passo
que o DI funciona
como “signo de
legitimidade”, (idem,
21). Daí,
como se apontou
atrás, o
tratamento destas
formas
como recobrindo uma
oposição
não de
formas
gramaticais
mas de
gêneros discursivos. O DI
como uma
prática do
discurso
jurídico e
histórico; o DD
como uma
prática do
discurso poético,
literário.
A
questão
que se apresenta
agora é: se, no
período
clássico, o DD
não funcionava
como
forma de atestação do
dizer,
como
forma de relato da
verdade,
em
que
momento o DD passou a
ter o
estatuto de
discurso da
verdade?
Ou
melhor, pensando esta
questão à
luz da
Análise de
Discurso,
em
que
momento o DD
passa a
ser tomado
como
forma de relato “literal”,
isto é,
como produzindo o
efeito de
literalidade do
dizer?
O
processo
de
mudança
do
estatuto
dos
discursos
direto
e
indireto
Será,
conforme Rosier,
com os
gramáticos de Port-Royal
que se terá o
começo de uma
mudança
significativa no
estatuto do DI: de
língua da
lei,
portanto, da
verdade,
para
finalmente, no
século XIX, se
apresentar
como
discurso do
falso, da
infidelidade.
Como
já
dito,
discurso
indireto e
direto
não constituem uma
questão
gramatical no
período
clássico,
tampouco constituem
um
par
que se oponha nesse
período. É
somente no
século XVII,
com a
gramática de Port-Royal,
que vai se
encontrar o
discurso
indireto sendo estudado a
partir do juntivo
que.
Ou seja, é
através da
sintaxe
que o
discurso
indireto
passa a
ser pensado
em uma
gramática. É
aí
que
ele se gramaticaliza. É,
pois, no
século XVII
que comparece na
gramática,
como
um
par, o DD e o DI. É
também nesta
gramática
que se apresenta a
idéia de transformação do DD
em DI,
embora centrada
apenas na
pessoa
gramatical (mais
tarde é
que a
idéia de transformação se estenderá aos
verbos).
Aqui interessa
destacar
que a
idéia de transformação coloca o DD
como
anterior ao DI,
isto é,
como
um
discurso
primeiro, o
que irá
possibilitar se
pensar
mais
adiante
em uma
supremacia do DD
em
relação ao DI.
Ou seja, instaura-se,
pois,
com esta gramaticalização do
par DD/DI,
um
gesto de
leitura do DD e do DI
como
formas
que se relacionam e
como
formas
que decorrem uma da
outra.
Gesto
que irá
permitir
outros
sentidos a
estas
formas.
Uma
observação se faz
necessária
sobre a
Gramática de Port-Royal: o juntivo
que é tomado nesta
gramática
como
pronome
relativo e todas as relativas
são consideradas
aí
como
incidentes. O DI é,
pois,
tratado
como uma
subordinada
através de
um
pronome
incidental.
Contudo,
considerar o DI
como
subordinada e o DD
como
discurso
primeiro
não significa
ainda a
supremacia do DD
sobre o DI. Ao
contrário, na
gramática de Port-Royal, o DD continua condenado.
Em outras
palavras,
ainda
que gramaticalizado
como
forma
antecedente ao DI, o DD continua a
não
significar na
formação discursiva do DI,
qual seja, na
que confere
legitimidade ao
dizer. É
preciso
expor a
relação
entre o DD e DI nessa
gramática e a
manutenção da proscrição ao DD.
Os
autores da
gramática de Port-Royal se
interrogam
sobre a
prática do
discurso
indireto e
observam
que,
entre os
hebreus e
evangelistas,
diferentemente
do
que ocorre na
tradição
latina, há uma
preferência
pelo relato
direto.
Para os
gramáticos de
Port-Royal, no
entanto, a
prática do DD é
considerada
um
arcaísmo. A
posição
discursiva desta
gramática é
ainda de
interdição do
DD e de
preferência
pelo DI uma
vez
que
com
este se mantém
a
unidade da
predicação,
algo
que
não ocorre
com o DD.
Este justapõe
duas
enunciações e
ameaça a
unidade
predicativa. A
polifonia
que o DD expõe
proscreve
seu
uso.
Portanto,
com a
gramática de Port-Royal, o
par se
gramaticaliza. E, se,
através da
idéia de
transformação, o DD
passa a
ser considerado
como
anterior ao
DI, continua, no
entanto,
em
função da
idéia de
unidade de
predicação e
da
harmonia do
texto, a
ser
proscrito.
Será
através da
pontuação,
ou
melhor, das
aspas,
que, no
século XVIII,
o
estatuto do DD
irá se
alterar. Continuando a
seguir os
passos de
Rosier, é
com Beauzée
que se tem, no
século XVIII,
o
tratamento do
DD
em
um
capítulo
consagrado à
pontuação. O DD comparece
na
gramática
em
termos de
pontuação e é
tratado na
relação da
escrita
com o
oral.
Percebendo a
função
lingüística da
pontuação, Beauzée se debruça
sobre o DD e
não se refere ao DI. Apresenta o DD
como equivalente à
citação,
em
função das
aspas. As
aspas,
sinais
tipográficos inventados no
século XVII
pelo
impressor Guillaume (Compagnon,
1996: 38),
são expostas
como servindo
para
descrever a
maneira de
relatar
diretamente as
palavras do
outro (Rosier,
1999: 30) e, nesse
sentido,
não se distingue DD de
citação.
Ambos,
citação e DD, aparecem,
então,
como
falas demarcadas e aprisionadas
pela
tipografia.
Ambos comparecem
aí
como
falas primeiras.
Falas autênticas.
Visto
isto, importa
tecer algumas
observações.
Em
primeiro
lugar,
aproximar o DD da
citação serve
para
conferir
àquele
um
outro
sentido.
Melhor dizendo, se o DD,
ou
melhor, a oratio recta situava-se na
poética e
por
ser
simulacro
era
banida, no
discurso dos sofistas
ela
também aparecia e
era condenável
duplamente:
por
ser
simulacro e
por
poder
corromper.
Mas
poder
corromper implica
assumir
que esta
forma de relato tem uma
força.
Ou seja, à
citação se atribuía uma
força argumentativa.
Aproximar,
então,
citação de DD implica
conferir de alguma
maneira essa
mesma
força ao DD. E
isto permite uma
reflexão interessante no
terreno do
discurso
jornalístico.
Se o DD
não é
prática do
editorial
ou
mesmo de
artigos,
não
por
ser
simulacro,
mas
por se
trabalhar nestes
espaços a
ilusão de neutralidade e
objetividade
que se articula
também
através do
não
rompimento
sintático da
sentença (algo
que o
discurso
direto promove), é, no
entanto,
forma
recorrente na reportagem
jornalística.
Aí ocorrendo
em
função de
sua
força argumentativa e do juridismo (Ver
Medeiros 2003) no
discurso
jornalístico.
Em
segundo
lugar,
tomar DD e
citação
como equivalentes a
partir de
um
recurso
tipográfico – as
aspas – permite
observar a
tipografia
como
um
dispositivo
que serve à
política do
dizer na
imprensa,
isto é, os
sinais
tipográficos
são
produto da
prática
política da
imprensa
sobre as
formas de
demarcação da
palavra do
outro.
Ainda a
esse
respeito cabe
sinalizar
que os
séculos XIX e XX assistem uma
revolução
tecnológica no
domínio do
discurso relatado (Catach,
1996: 77). Aparece uma profusão de
sinais de
circunscrição da
palavra do
outro:
alguns
são
criados;
outros ressignificados,
como é o
caso das
aspas
que ampliam
suas
funções. À
guisa de
explanação, as
aspas
já existiam na
Idade
Média (idem)
com
outros
sentidos e
funções.
Por
exemplo,
elas marcavam
um
comentário
crítico, “um
acréscimo requerendo uma
atenção
especial
sobre
um
fragmento do
texto” (Authier-Revuz,
1998: 373); a
partir do
final do
século XVIII, passam a
servir
para
indicar a
alternância de
vozes do DD.
Então,
com os
novos
sinais
tipográficos e/ou
com a ressignificação dos
já existentes, estava
em
questão, de
acordo
com Catach, “a
passagem de uma
cultura da
voz e da
orelha
para
um
cultura do
olhar”,
por
um
lado, e,
por
outro, a desambigüização do
dizer. Estava
em
jogo, pode-se
dizer, lançando
mão de Foucault (1997) e Schneider (1985), a
questão a autoria. A
integração do
autor ao
sistema de
propriedade da
nossa
sociedade (Foucault,1997:48) tem
como
contrapartida a
incorporação da
alteridade ao
sistema
legal. É
preciso a
partir daí
separar o
que seria de
si do
que seria do
outro.
Conforme Schneider (1985:35),
data do
início do
século XIX as primeiras
preocupações
com o
plágio;
portanto,
com o
direito de autoria.
Legisladores e
juristas passam a
intervir
para
definir a
propriedade autoral.
Para
determinar o
que
era do
dizer do
um e o
que
era do
dizer do
outro. As
aspas cumprem
este
papel.
Enfim, as
aspas, igualando DD à
citação, permitem
observar o
papel da
tipografia no
que se refere à
mudança do
estatuto do DD e no
que se refere à
política do
dizer
que resulta de uma
política
sobre os
sentidos. Seguindo Orlandi (2001:116), pode-se
afirmar
que as
aspas,
assim
como as outras
diferentes
tecnologias da
escrita (pontuação,
parênteses,
notas de
rodapé), estabelecem “uma
relação regrada
com os
sentidos”, fabricam a “normalidade dos
sentidos”. As
aspas, no
caso, estabelecem a
unidade na
dispersão dos
dizeres.
Para Rosier, o
papel das
aspas ao
lado da
polêmica instaurada no
século XIX
em
função da
entrada
em
cena do
discurso
indireto
livre (doravante DIL)
é
fundamental na
mudança do
estatuto do DD.
Sua
hipótese é a de
que a
ampla
discussão
sobre o DIL no
século XIX
tem
como uma das
conseqüências
colocar
em
cena,
como
um
par o DD e o DI, e de transformá-los,
em
diferentes
lugares,
em
um
trio: DD, DI e DIL.
Em outras
palavras, se DD e DI aparecem
como
par na
gramática de Port-Royal,
isto é,
conforme Rosier,
algo circunstancial. No
século
seguinte estão separados
em
lugares
distantes: DI sendo
tratado na
parte
relativa às completivas; DD sendo
tratado na
parte
referente à
pontuação.
É
somente
com a
entrada
em
cena do DIL
que se
passa a
trabalhar DD e DI
como
par.
Pensando a
questão
em
termos discursivos, a
entrada do DIL e a
discussão
que suscita
toma o
par DD/DI
como
posto,
isto é, de
acordo
com a
Análise de
Discurso,
como
um já-lá,
como
um pré-construído.
Por
um
lado, o DIL instaura na
gramática o DD ao
lado do DI,
por
outro
lado, possibilita uma
reflexão
sobre a
autonomia do
dizer.
Reflexão
que decorre da
autonomia
sintática possibilitada pelas
aspas.
Retornando a
Rosier,
para esta autora, uma
vez
que a
gramática de Port-Royal colocou o DI
como
forma derivada do DD, o
passo
seguinte e
fundamental
para a
mudança de
estatuto do DD se deu
com as
aspas, ao servirem
para
demarcar
um
território
como de
reprodução do
dizer,
por indicá-lo
como
autônomo:
O DD
usa
marcas
próprias
para uma
reprodução
fiel
assim
como a
citação e se
constrói
como
verdadeiro
ou fazendo a
verdade. O DI se
torna a
partir daí
discurso da
transposição, do
falso. (ibidem,
43,
Tradução
minha)
Autonomia
que servirá,
com a
entrada do DIL
em
cena,
para
criar
para o DD a
tradição de
forma de
reprodução e
manutenção
fiel da
palavra do
outro,
forma de
reprodução
verdadeira do
discurso do
outro; daí,
forma de relato da
verdade.
Da
autonomia
do
discurso
direto
São várias as
ilusões
que o DD
engendra: de
fidelidade à
palavra do
outro, de
objetividade
na
transcrição da
palavra
outra e de
neutralidade
por
parte de
quem relata
esta
palavra
outra.
Ilusões
que se apóiam
no
corte
sintático promovido na
cadeia
discursiva; na possibilidade de o DD
funcionar
como
forma
autônoma,
corpo à
parte
que se
mostra,
como
exterior, à
cadeia
discursiva.
De Authier-Revuz (1978) importa
destacar duas
marcas do
comportamento
autônomo do
DD.
Diferentemente
do DI, o DD
não
comporta
sinonímia,
isto é,
não se pode
substituir,
por
exemplo, “não
sou
casado”
em
um DD
por “sou
solteiro” (tradução
de
exemplos de
Authier-Revuz, 1978:54). O DD,
também
em
oposição ao
DI, permite a
repetição
daquilo
que
não se
compreende;
por
exemplo, da
palavra
estrangeira.
Ou seja, a
autonomia do
DD decorre de,
com esta
forma,
poder se
ter a
reprodução do
significante.
Tipo de
reprodução
que impede a
sinonímia e
que permite a
reprodução da
palavra
ouvida
embora
não
compreendida.
Aí reside
sua
ilusão de
reprodução
verdadeira do
discurso do
outro.
Ou seja, a
impossibilidade de alteração do
significante
de
um
território
demarcado (pelas
aspas, no
caso)
possibilita
que se tome o
DD
como mantendo
a
palavra
outra.
Esquece-se,
como lembra
Authier-Revuz (2001:193),
que “toda
forma de
representação
de
um
discurso
outro
reencontra
então o
problema do
sentido e,
portanto,
marca,
qualquer
que seja o
tipo de
representação
escolhida, o
registro da
interpretação”(Tradução
minha).
Esquece-se de
que
manter o
significante
não implica a
manutenção do
significado.
Não se
considera a
enunciação.
Isola-se
um
dito e
julga-se
assim se
dar
conta do
dizer. Delimita-se
um
enunciado
como
tal e
aprisiona-se-o
entre
aspas supondo
com
esse
gesto
apreender o
sentido.
Julga-se,
pois,
domar o
sentido
aprisionando o
dizer.
De
acordo
com
Authier-Revuz (1998:145), o
discurso
relatado, DD
ou DI,
não relata uma
frase
ou
enunciado,
mas
um
ato de
enunciação.
Aí reside a
diferença
entre uma
abordagem
enunciativa e discursiva de
outra de
ordem
sintática.
Nesta,
ele importa
pelas
marcas de
subordinação e
de pronominalização; naquela,
ele é assumido
enquanto
enunciação
outra
que se ilude
poder
reproduzir. Daí, no
caso do DD,
seu
conflito
constitutivo:
O L[ocutor] se apaga
diante do
enunciado
que
ele repete
textualmente
e, ao
mesmo
tempo,
quer
ele queira
ou
não,
retira todas
as
marcas da
situação da
enunciação
que
ele relata e
na
qual o
enunciado se
inscreve e
toma
seu
sentido. (Tradução
minha)
Então, o DD
relata uma
enunciação
que
ele apaga no
ato de
delimitação do
enunciado
outro
através das
aspas.
Demarca-se o
dizer
outro supondo
aí
não
intervir – esta é
sua
ilusão: da
não
intervenção na
palavra do
outro. E é
esta
ilusão
que produz o
efeito de
neutralidade no
tratamento do
discurso
outro, e, indo
mais
adiante, o
efeito de
verdade.
Para
concluir
Através de
Compagnon, pôde-se
observar o DD funcionando
como
simulacro na
tradição
grega,
como
discurso da
falsidade, ao
passo
que o DI se
apresentava
como
cópia, boa
cópia.
Através de
Rosier, foi
possível
acompanhar
como o DI se
constituiu
como
discurso da
lei e,
por
conseguinte,
da
verdade, e
como, no
século XIX,
veio a
perder
este
estatuto
para o DD,
que
aí
passa a
funcionar
como
discurso da
verdade. O
caminho
que se trilhou
com Rosier
serve
também
para
pensar o percurso da
gramaticalização destas duas
formas de
relato do
discurso
outro
como
produto de
um
tratamento de
base
lógico-sintática
dado ao DI e
DD,
isto é,
como
produto de
um
processo
que vai
significando DD e DI na
formação
discursiva da
lógica.
Expliquemos revendo a
passagem do
DD, de
simulacro,
para
discurso da
verdade no
século XIX, e
a do DI, de
discurso da
lei,
para
discurso
que falseia.
No
caso do DI,
este é,
como se viu, gramaticalizado
através do juntivo
que. E
passa a
ser tomado
como
forma decorrente de
outra,
isto é, do DD. No
caso do DD,
este,
por
sua
vez,
adentra a
gramática
através de
um
sinal de
pontuação: as
aspas.
Em
ambos os
casos está
em
jogo a
formação discursiva lógico-matemática
que
trata as
formas de
discurso relatado
através do
tipo de
proposição, tomando a
sentença
como
objeto
em
si. No
caso do DI,
pela completiva,
isto é,
pela
oração
subordinada; no
caso do DD,
pela
autonomia do
dito
que advém das
aspas associadas à
ruptura
sintática
que esta
nova
forma de
escritura possibilita.
Em outras
palavras,
nem DI
nem DD
são
tratados enunciativamente, na
gramática,
isto é,
não importam na
relação
com a
enunciação
que reportariam,
mas
como
enunciados tomados sintaticamente.
O percurso
que se observou,
então, consiste no percurso
que
trabalha estas duas
formas de
discurso relatado
como
fenômenos da
sintaxe e
que
como
tal permitiu a
assunção do DD à
discurso da
verdade, uma
vez
que
discurso
primeiro (o DI,
como
já
dito,
passa a
ser tomado
como
discurso derivado do DD) e uma
vez
que
forma
autônoma.
Autonomia
que coisifica a
palavra do
outro e faz supô-la
transparente.
Que a
toma
como
objeto do
mundo, e
que,
com
esse
gesto, instaura a
ilusão de
apreensão, de
detecção
fiel do
discurso
outro, e produz o
efeito de
objetividade e neutralidade de
um
trabalho de
transcrição da
palavra do
outro.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS
AUTHIER-REVUZ, J. “Les formes du discours rapporté.
Remarques sintaxiques et sémanthiques à
partir des traitements proposés”. DRLAV,17, Paris: Paris VIII.,
1998.
––––––. “Hétérogénéité montrée et
hétérogénéité constitutive: elements pour une aprroche de l’autre dans le
discours”, DRLAV 26, Paris: Paris VIII, 1982.
––––––. “Le guillemet, un signe de ‘langue
écrite”, à part entière”. In: A qui appartient la pontuaction?. J.
M. Defays, L Rosier, F. Tilkin (eds.). Duculot, 1998.
CATACH, N. La ponctuation. 2ª
ed. Col.
Que sais-je? Paris: PUF, 1996.
CERQUILINI, B. “Le style indirect libre et la
modernité”. Langage, no. 73,
mars, Paris: Larousse, 1983.
COMPAGNON, A. O
trabalho da
citação.
Belo
Horizonte: UFMG, 1996.
CUNHA, C. F. da & CINTRA, L.
Nova
Gramática do
Português
Contemporâneo. 2ª ed.
Rio de
Janeiro:
Nova
Fronteira, 1985.
FOUCAULT, M. O
que é
um
autor? Lisboa:
Passagens, 1997.
––––––. A
ordem do
discurso. 4a ed.
São Paulo: Loyola, 1998.
HAROCHE, C.
Fazer
dizer,
querer
dizer.,
São Paulo: Hucitec, 1992.
LIMA, C. H. da
Rocha.
Gramática normativa da
língua portuguesa. 29a ed.
Rio de
Janeiro: José Olympio, 1988.
MEDEIROS, V.
Dizer a
si
através do
outro: do
heterogêneo no identitário
nacional.
Tese de
doutoramento, UFF, 2003.
ORLANDI, E.
Discurso e
texto.
São Paulo:
Pontes, 2001.
––––––.
Discurso e
leitura.
São Paulo: Cortez, 1998.
PÊCHEUX, M.
Semântica e
discurso. Uma
crítica à afirmação do
óbvio.
Campinas: UNICAMP, 1988.
RIVARA, R. La langue du récit: introduction à
la narratologie énonciative. Paris: L’Harmattan, 2000.
ROSIER, L. Le discours rapporté: histoire,
théories, pratiques. Louvain-la-Neuve: Duculot, 1999.
SCHNEIDER, M. Voleurs de mots. France:
Gallimard, 1985.