FRANKENSTEIN E A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO
Cristina Maria Teixeira Martinho
Introdução
O texto que escreve tem de me dar a prova de que me deseja. Essa prova existe; é a escrita. A escrita é isto: a ciência das fruições da linguagem, o seu Kamasutra. (Barthes, 2000)
Avaliar uma obra de arte constitui uma tarefa bastante difícil. Como basear nosso julgamento? - Que meios e critérios poderemos utilizar? Até então a teoria e a historiografia literárias propuseram modelos consagrados pelo tempo guiados pela retórica aristotélica clássica, apoiada nos conceitos de imitação como critério de verdade, o do prazer na instrução, a expressão de originalidade e sinceridade, a coerência e economia e complexidade da estrutura.
Nestes últimos tempos surgiram idéias que em muito contribuiriam para dotar a literatura de uma amplitude mais de acordo com a modernidade. A Psicologia e a Psicanálise explicitando as disposições psíquicas conscientes e inconscientes que interferem no ato da leitura; a Sociologia, ao tratar das relações sociais que determinam procedimentos de produção de uma ideologia da qual a obra ficcional é o produto; uma Pedagogia de Leitura, insistindo na necessidade cada vez maior de potencializar maiores habilidades ao ato de ler. A Teoria da Comunicação ao abordar o texto enquanto mantenedor do código da comunidade: os Formalistas Russos com um painel de estratégias explicativas sobre a especificidade dos signos literários, o valor do estranhamento, abrindo caminho para a Estética da Recepção que deu os primeiros passos fundamentais para uma prática da critica baseada na recepção, fundamentando a ação do texto como agenciador de leitores e leituras.
O desenvolvimento do romance, lado a lado com o crescimento demográfico urbano, tem muito a ver com a separação da esfera pública relativa ao espaço homem x mulher; ampliou-se a distinção de classes, e a burguesia, cada vez mais emergente, formou fatos marcantes causadores da postura passiva da mulher no final do século XVIII e início do XIX. A época desenvolve o romance gótico, propondo-se como uma literatura de escape para a mulher burguesa que não questiona seu posicionamento. É uma literatura que deixa à vista aquilo que a sociedade "polida" tenta não deixar escapar: o mundo real da violência, das lutas econômicas, dos valores de mercado.
Neste trabalho, faço uma leitura desta postura, ao entrelaçar o gótico e a produção feminina, propondo uma compreensão da obra enquanto um texto do passado que abriu novas dimensões. Tomarei por base as idéias desenvolvidas pela Estética da Recepção, principalmente aquelas que se preocupam em articular a intertextualidade, que flutua "na luta entre homens e símbolos", tendo o leitor como pedra angular na especificidade do literário. O grotesco, como experiência estética do sublime, desenvolvida nos domínios do Iluminismo, descortina uma interação precisa entre autor-texto-leitor.
A Estética da Recepção considera a literatura um sistema que se define por produção, recepção e comunicação, tecendo uma relação dialética entre autor, obra e leitor. Não revitaliza a noção de produção e representação, bases da estética tradicional. Destaca que o ato de leitura tem uma perspectiva dupla na dinâmica da relação obra - a projeção desta obra pelo leitor de uma determinada sociedade. Interessa-se pelas condições sócio- históricas que formularam as diversas interpretações que o texto ficcional recebeu, e assinala que o discurso literário é o resultado de um processo de recepção ao mover a pluralidade destas estruturas de sentidos historicamente mediadas.
Como texto gótico a ser relido, escolhi Frankenstein, de Mary Shelley (1999). Esta obra abriu uma nova perspectiva para um novo tipo de gênero romanesco, mais tarde conhecido como ficção cientifica. A leitura atenta deste texto me permite preencher aqueles vazios preconizados por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, explicitando as relações de poder e a subversão destas relações numa ficção que deixa vir à tona o processo que marcou a tradição romanesca e a fundamentação sólida da sociedade moderna. Como um texto do passado, não me interessa apenas em relação ao seu contexto primário, mas também ao seu possível significado para situação contemporânea.
O leitor em questão
Uma obra de arte é um produto de teias de efeitos comunicativos, caminhos que abrem para a configuração de um real sentido e estimulado pela sensibilidade e experiência. Produto acabado, necessita de um destinatário - um ser concreto, com planos vivenciais, com uma ótica produzida por sua própria situação contextual, além da sensibilidade provocada por sua cultura, gosto pessoal - que irá se defrontar com esta obra, abrindo assim um caminho de diversidades e diálogo que se manifesta com uma riqueza de ressonâncias, de forma hermenêutica, no dizer de Jauss, citado por Costa Lima:
Um texto poético se torna compreensível na sua função estética apenas no momento em que as estruturas poéticas, reconhecidas como características no objeto estético acabado, são retransportadas, a partir da objetivação da descrição, para o processo da experiência com o texto, a qual permite ao leitor participar da gênese do objeto estético (...) doravante o texto deve ser considerado como o ponto de partida de seu efeito estético. (Lima, 1983: 307)
Jauss propõe o objeto estético como uma forma e uma resposta que providenciarão atos hermenêuticos específicos. O primeiro trata do inventário dos elementos dos textos que condicionam as diversas leituras; o segundo diz respeito ao entrosamento das mudanças de horizontes no processo histórico das leituras feitas. Para Jauss, o conceito de horizonte ê abrangente; inicialmente é o limite do que ê visível, sujeito às alterações devidas às mudanças de perspectiva do observador. O diálogo entre a obra e um leitor virtual depende de fatores determinados pelo horizonte de expectativa responsável pela primeira reação do leitor ã obra. Todo leitor dispõe de um horizonte de expectativa resultado de inúmeras motivações. Jauss considera este horizonte de expectativa como um dos postulados mais importantes da sua teoria.
Ao contrário de Jauss, Iser concentra-se nos efeitos que os vazios do texto podem abrir na consciência de um leitor ideal. O texto, produto de uma combinação da linguagem e do sentido, apresenta um espaço implosivo de vazios e carências que possibilitam a inauguração de um processo de comunicação. Estes vazios são os responsáveis pelas diferentes perspectivas de representação, levam o leitor a fazer uma coordenação durante o processo de leitura. As carências, ausência de elementos determináveis e apenas insinuados no texto, condicionam o posicionamento do leitor na obra. Os vazios provocam estímulos que impulsionam a imaginação do leitor a preencher os espaços existentes no texto. Isto justifica a possibilidade de variadas leituras de um mesmo texto.
A Estética da Recepção permite compreender o sentido e forma da obra literária pela variedade histórica das suas interpretações. Exige, por outro lado, que a obra individual seja introduzida na seqüência literária adequada, o que permitirá reconhecer o seu papel histórico no contexto das experimentadas pela literatura "séria" e poderemos captar todo o seu potencial criativo, Os textos teóricos selecionados nos permitirão uma leitura mais atenta da importância cultural, filosófica, psicológica e ideológica do modo.
Hans Robert Jauss questiona o conceito de experiência estética desenvolvido no Ocidente em seu artigo "O prazer estético e as experiências fundamentais da Poiesis, Aisthesis e Katharsis", assinalando a dominação da filosofia, da religião e da metafísica platônica do belo, deixando em aberto a ambivalência que tais critérios propunham. Pede o resgate hermenêutico da necessidade da experiência estética do leitor; junta-se ao idealismo e denuncia a arte moderna como mercadoria; relembra Freud ao afirmar que o prazer estético é desencadeado a partir de fontes psíquicas profundas. Jauss caracteriza outra possibilidade de definir a experiência estética agrupando as três categorias fundamentais do fenômeno estético - poiesis, aisthesis e katharsis - criar para dar prazer àquele que se sente arrebatado pelos sentidos para ganhar a vitória na purgação do poder do desconhecido.
O estilo gótico, deslanchando novas formas do bizarro em meio aos ideais de harmonia clássica, decoro público e normas comportamentais, afirma o poder de uma literatura da desrazão silenciada pelas Luzes e apoiada em noções sobre o belo, o prazer, o gosto e o bem que irrompem na arte do horror. É interessante observar com mais precisão a filosofia que atualizou o horror como uma forma de atingir o leitor e levá-lo á fruição da aesthesis e katharsis como Jauss pretende. O gótico se presta a essas idéias, ao transportar para a ficção motivos irracionais, mistérios insondáveis, a expressão do numinoso.
A literatura gótica vincula-se ao Sublime, não somente pelos padrões de imagens convencionais catalogadas por Edmund Burke em sua obra sobre o sublime (1968), mas também pela rede de relações psicológicas reconhecidas anteriormente por Longino, cuja poética inovou uma teoria verdadeiramente afetiva da literatura. O autor latino, escrevendo no século II, considera que o mérito da obra de arte está em seu poder de transportar o leitor ao êxtase, quando desperta paixão - o que acontece ao atingir o Sublime. O poder da retórica domina o Sublime quando a linguagem do poeta, trabalhada, evoca no ouvinte / leitor um entusiasmo correspondente. As palavras distanciam-se de seu contexto denotativo e se investem da experiência da singularidade. O Sublime é o ponto mais alto e a excelência do discurso que tenta não a persuasão, mas o arrebatamento do ouvinte.
Burke enfatiza o princípio semelhante de retórica ao abordar a questão da relação da linguagem e do sublime, mas muda os pólos da discussão das regras que o formalizam, realçando as operações psicológicas ocorridas durante a experiência da leitura. Centrada na emoção e na crença, a linguagem do sublime está elaborada fora do discurso ordinário; as palavras não apresentam imagens do real para a mente, mas determinam efeito e sugestão, como se fossem traços mentais ou resíduos de representação que se referem a qualquer imagem externa daquela realidade.
Longino e os filósofos que se ocuparam com o estudo e a regulamentação de uma Poética do Sublime afirmam um aspecto mais sombrio que se desenvolve nesta época, quando tentam moldar a experiência individual além do controle da consciência. As discussões, no final do século XVII, refletem uma atmosfera cada vez mais gótica, associada ao modo sombrio, melancólico, passional. O temor e o terror são a fonte profunda do prazer e do poder estético
Qualquer coisa que seja terrível em relação à visão é também Sublime, e uma certa obscuridade é necessária para transformar qualquer coisa em terrível. Se, na experiência sublime tudo é incerto, sombrio, confuso, terrível, talvez o terror resulte do fato de que na sombra, na escuridão, é impossível distinguir onde as coisas começam e terminam. Subjetivamente, o terror é causado quando somos incapazes de distinguir o Eu do Outro, ou por tornarmo-nos incertos da divisão do que é e do que não é o Eu.
A sublimação do gótico foi possível porque surgiu no imaginário coletivo depois que o racionalismo autorizou uma certa desmistificação da vida. O romance atualiza os sonhos e os temores sentidos por aqueles que viam as ruínas decadentes como actantes da história. Desta separação temporal nasce o mito, a fenda / falha, a diferença que faz brotar uma nova escritura. O que aparece, então, é a primeira tentativa de recuperar e domesticar o mito pela história, e o estranho por uma linguagem consciente das demandas imperativas de um novo real. Catalisa uma visão que transcende o tempo, sintomática de períodos de mudanças cataclísmicas, políticas, religiosas, filosóficas e literárias.
O texto ficcional adquire sua função, não pela comparação ruinosa com a realidade, mas pela mediação de uma realidade que se organiza por ela e o gótico apresenta uma realidade permeada pela obsessão da morte, da violência, da perversão sexual, do macabro e do sobrenatural, que exploram uma psique coletiva, ponto culminante de transformações sociais; significativo é o fato que os dois símbolos potentes da imaginação gótica - o castelo e a prisão, são evocados nos títulos de duas das mais importantes obras do século atual: O Castelo e O Processo, de Franz Kafka. A ficção do autor tcheco, como a dos escritores góticos, pinta um mundo em ruínas, desespero cósmico, decadência e corrupção, provando que os bastiões tradicionais da ordem aprisionam e não servem mais para servir o espírito mano.
Iser enfatiza o caráter de comunicação da arte como um importante elo que liga o modo gótico ao publico leitor:
Como estrutura de comunicação não é idêntica nem com a realidade a que se refere, nem com o repertório de disposições de seu possível receptor, pois virtualiza tanto a forma de interpretação dominante da realidade, com que cria seu repertório, quanto o repertório das normas e valores de seu possível receptor. A não identidade da ficção com o mundo, assim como da ficção com o receptor e a condição constitutiva de seu caráter de comunicação. (Lima, 1979:105)
O gótico e suas convenções chamam a atenção do leitor, ao descortinar um modo de falar sobre a relação da linguagem que problematiza as relações urbanas sociais e sexuais, que se movem entre o jogo de velar e desvelar, especularmente, tratando-se da passividade e da vitimização da mulher nesse novo panorama. 0 modo não vai transformar o real em ficcional, mas vai propor uma transcrição da visão de mundo que se orquestra a partir de desordens que abrem para o novo homem urbano um quadro aterrorizante. O leitor se orienta pelas possibilidades das combinações
Se os vazios dos textos ficcionais orientam (os atos de representação do autor) contra o pano de fundo da linguagem pragmática, contribuindo para a desautomatização das expectativas habituais do leitor, então este precisa reformular para si o texto formulado, a fim de ser capaz de recebê-1o. Quanto maior a quantidade de vazios, tanto maior será o número de imagens construídas pelo leitor. (Ibid, 106-109).
Essas idéias transcritas acima ajudam a compreensão da literatura gótica e em como esta apodera-se da Historia para mostrar seus desvios, com um espaço que afirma um presente dissoluto, vislumbra um alhures e cria uma arquitetura para reafirmar as regras de um espaço ameaçado pela nova sociedade. Essência indefinível, sugestão e maneira de captar o mundo na fruição da duplicidade, perversão ou realização de uma poética fundamentada sobre uma estética do efeito, o gótico apresenta imagens discordantes de uma realidade que se interioriza e marca mudanças nas metáforas descritivas da criação artística. Quando Iser afirma que os vazios "liberam o que está oculto”, podemos rever como este gênero apropria-se do novo público de leitores e determina uma mudança fundamental no elo que une a literatura e a sociedade. Propõe-se como um isolamento, enquanto triunfo do individualismo, prevê posturas solitárias, acentua a tendência que interroga as contradições humanas, não para resgatar elos do passado, mas para inaugurar a era do homem e de seus problemas, na dramatização de seus conflitos e incertezas. O espaço gótico expande estes vazios, as fronteiras comuns, insinuando que a realidade e mais profunda do que realmente admitimos.
Frankenstein - A distonia da alteridade
Iser assinala que "o texto literário contem em si textos e contextos que faz ressaltar as seleções que efetua de sua ambiência (Umwelt), assinalando como esta intervém no texto" (Lima, 1983, 371). Frankenstein é um trabalho de grande tapeçaria literária, com referências explícitas a Milton e a outros clássicos da literatura ocidental.
Mary shelley, filha de dois escritores, William Godwin e Mary Wellstonecraft, encontrou nos pais o auxílio para formar sua personalidade literária. Bastante versada na cultura de seu tempo, a jovem cria a primeira obra de ficção cientifica, inaugurando uma nova era. A primeira vista, o livro parece oferecer uma serie de valores românticos típicos do século XIX, refletindo as idéias revolucionarias e não-convencionais. Uma leitura mais atenta, porem, sugere que estes mesmos valores são questionados pelos principais acontecimentos do enredo.
Iser afirma que "se o texto literário é um ato intencional dirigido a um certo mundo, então o mundo com que ele se relaciona não é simplesmente nele repetido, mas experimenta ajustes e correções" (Lima, 1983: 373). Mary Shelley apresenta uma visão subjacente: o conflito entre a retórica do "livro e os acontecimentos. Em seu entusiasmo utópico para ajudar a humanidade, Victor Frankenstein se vê como um benfeitor; conduz por anos a tarefa (de) si imposta em criar a vida, reunindo partes de vários corpos para formar um ser maior que o homem. Nesta atividade, ele se afasta de todo o domínio familiar. Mas logo que o monstro ganha a vida, o jovem médico sente uma revolta moral, repulsa, um sentimento que se afirma mais forte à medida que a historia continua. E, depois de todos os revezes, mortes, e sofrimentos, Victor considera que toda esta situação é uma espécie de retribuição pelo seu ato de criação;
Mary Shelley trabalha a interação obra e mundo, apresentando uma obra que pode ser lida de diversas formas. Produzida num contexto que via surgir o declínio do poeta como demiurgo, o ato de criar toma a direção da fantasia sobrenatural, fugindo de uma concretização esquematizada. E isto tem a ver com a depreensão do imaginário e sua natureza pois
O difuso do imaginário e a condição para que ele seja capaz de assumir configurações diversas, o que e sempre exigido pois se trata de tornar o imaginário apto para o uso. A ficção e a configuração apta para o uso do imaginário (porque) cria possibilidades dele se organizar, mas provoca tematizações pragmáticas correspondentes. (/..) A ficção é a configuração contrafactual da realidade existente; ela ultrapassa os limites dos dois planos - imaginário e real". (Lima, 1983: 379).
Mary Shelley trabalha esta dialética do imaginário e propõe três narrativas que se interconectam, contadas por homens totalmente destituídos do sentimento de vida familiar. Cada um deles apresenta a perspectiva de negação desta experiência. Walton, Victor e a criatura são seres que problematizam o TER da vida burguesa. Walton está determinado a encontrar regiões no Pólo Norte para nelas viver e deseja partilhar sua descoberta com a humanidade, da mesma maneira que Victor. Os dois se encontram - duplos/parceiros no isolamento. Victor, para gerar uma vida artificial se exila da humanidade, dos confortos da casa, da noiva. Incapaz de confessar seus atos, não consegue avisar sua família do perigo que a ronda. A criatura, centro da narrativa, por sua vez esta colocada como um marginal na sociedade; sem família, apreende o mundo pelos livros e, enfurecido por comportamentos para ele incompreensíveis, aniquila todos que possam contribuir, de alguma forma, para com a vida feliz de seu criador.
Vivendo numa época que já mostra os sinais da decadência de uma ordem que não satisfazia as demandas do real, Mary Shelley parece impregnada das idéias da mãe e delas se serve para criar uma fantasia que fale sobre os efeitos periculosos e perniciosos da manutenção rígida das esferas masculina e feminina do domínio público. Trabalho x lazer, razão x imaginação são a tônica que impulsionam subversivamente o real ficcional. Inocência x marginalidade são eixos que determinam os narradores.
As três narrativas concêntricas impõem um desdobramento linear da linha do enredo. Inicia e termina com Walton, escrevendo para sua irmã inglesa, da periferia exterior do mundo civilizado, limite entre o conhecido e o desconhecido. Deste ponto caminhamos para dentro do círculo da civilização, os arrabaldes rurais de Genebra centro da ética Protestante. Neste lugar, homens e mulheres demonstram os bons sentimentos, a compostura e o decoro decorrentes das convenções tradicionais. As famílias ligadas à temática estão bem codificadas. Estas famílias não mostram a visão de tantos romances da época, com as aventuras que sempre apresentaram finais felizes, triunfando sobre qualquer posicionamento contrário.
Temos em Frankenstein, o caminho oposto. Os leitores se deparam primeiro com a civilização e seus descontentes, em suas tentativas de resgatar-se dentro desta sociedade com aventuras miraculosas que atinjam o valor de uma regeneração de vida. A circularidade do enredo enfatiza um outro tipo de vida mantida pela consciência das personagens que se vinculam a outros valores. Cegos para quaisquer outros contextos, Walton e Victor, na rea1idade, não se compreenderam ainda como trânsfugos sociais. Mary Shelley não tematiza o processo inconsciente que os leva ao isolamento, mas trabalha a transcendência dos valores que permeiam suas ações.
O que seria mais tarde conhecido como o jargão dos oprimidos, tem na obra de Mary Shelley o valor de uma profecia: os alicerces da futura sociedade das massas onde a relação opressor x oprimido se torna mais patente; a liberdade de ação torna-se mais "limitada e idéias de retaliação e vingança são a tônica de um ciclo inteiro de autodefesa, mutuamente perniciosa e geradora da destruição.
Esta é a dinâmica central de Frankenstein. É uma narrativa sobre a dialética da opressão na perspectiva ampla do opressor e do oprimido, perpassando para a família e daí para a sociedade como um todo. Talvez melhor do que qualquer historia gótica, a obra retrata o trabalho extremo de uma forma diatônica da alteridade. Expõe com clareza os resultados infelizes da recusa em validar as necessidades e o direito da existência de Um x o Outro.
Ao deixar sua casa, Victor Frankenstein torna-se melancólico, inicialmente, mas o objetivo de suas pesquisas em atingir o Conhecimento retira-o do contexto do círculo doméstico. Chega a dar vida a uma criatura, mas por não ser capaz de entender as vinculações de sua ação, afasta dela qualquer tipo de elo afetivo, negligenciando seu papel. A criatura, sem mesmo receber nome, perde a identidade e a possibilidade de conseguir enquadrar-se socialmente, pois o nome representa a autodefinição e a pertença social. Ser insignificante, é sempre mencionada como demoníaco, espectro, monstro, sempre repelida pelos outros por seu aspecto desproporcional, um Outro diferente e ameaçador à sociedade. Desesperado e isolado, determina-se ao aniquilamento de ambos, criador e criatura. A combinação dos elementos textuais tem ressonância na vida comum; a estatura da criatura/monstro de Victor tem seu análogo nas máquinas que aparecem na Inglaterra e são de estatura gigantesca; a tecnologia de então tinha "monstros mecânicos enormes, que Blake em 1808 chamara de "dark Satanic mills ". (Tropp, 19, 56)
Entre o homem e seu substituto - a máquina - existe incerteza e temor; um sentido de urgência leva o próprio homem a se questionar sobre as demandas do real que se robotiza e sofistica, deixando em aberto o futuro - foco central de Frankenstein, quando a relação do homem com seu tempo se modifica pelas hélices metálicas que orquestram o novo tempo. A protéica vitalidade da obra e da visão da autora projetam as grandes aberturas que o século XIX trouxe ao homem: um novo espaço, a transformação da vida, a percepção de um novo tempo, a imagem de um outro homem.
Considerações finais
Os homens fazem a sua própria historia, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha, mas sob aquela circunstancia com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado. A tradição de todas as gerações mortas oprime o cérebro dos vivos como um pesadelo.
Procurei fazer uma pequena leitura da obra Frankenstein a partir das formulações teóricas da Estética da Recepção, por esta. escola recomendar a questão da autonomia da arte compreendida na sua gênese produtiva e analisada na dimensão histórica de sua receptividade a fim de que ela possa conciliar a função social da comunicação com a função estética.
Tive oportunidade de verificar que o modo gótico está associado a uma certa qualidade de efeito de 1eitura, pois exerce sobre o leitor um poder baseado na estética do Sublime, idéias desenvolvidas no século XVIII, ao propor uma mudança na retórica poética, na estética das artes e da literatura. Com impacto surge a criação do romance, determinada pelas sensibi1idades oriundas do reconhecimento que uma nova era carregada de potencialidades e transformações dirige o homem para outras posturas.
O gênero literário burguês, em sua essência, ganhou formas multifacetadas a partir de demandas de um novo público. A ascensão gradual da burguesia; renovando valores, modificar do aspirações, coisificou o real do universo e suas relações: o espaço público passou a ser um observatório privi1egiado da diversidade, ponto estratégico para apreender o sentido de todas as transformações.
O texto de Jauss recuperou a interação subjetiva da produção e da recepção em processo dialógico, propiciando a articulação que ocorre quando o sujeito presente descobre o discurso passado como uma resposta aos problemas colocados por sua visão. E a categoria do sublime, estudada por inúmeros filósofos, assinala precisamente os limites da representação: quando a imaginação se defronta com o inexprimível passa a haver a ameaça, a crise, que leva o indivíduo a se perceber como incapaz de controlar seus limites.
Baseado na estética do sublime e do terror, o gótico nasce abrindo brechas para novas fronteiras; bastante significativo e o fato de ter sido um tipo de gênero que influenciou as primeiras abordagens de Freud em relação à fantasia, a formulação do inconsciente e seus sintomas, e a imagética que formulou em sua ciência, confirmando os estudos de Varma que viu no gótico um modo diretamente responsável pela descoberta do inconsciente, relacionado aos estados de ansiedade e aos processes internes subjetivos.
Minha leitura de Frankenstein busca renovar a obra enquanto discurso que subverte as leis do real, critica as posturas da diversidade que se abrem para o homem perdido no abismo de suas inovações, apresenta uma crítica sexista a idéias burguesas que separam a do domínio público do privado, apresentando uma imagem do homem moderno, desenraizado de suas perspectivas, face a simbólica de um imaginário potente, um universo onírico, espaço de vacilações deste homem agora dotado de engenhos e dispositivos incansáveis.
Mary Shelley apresenta uma obra com determinantes potenciais de inovação, e faz um balanço do mundo problematizando agora os anseios e as expectativas do homem que estranha o mundo que vive, que tem a sensação de ter sua vida organizada a partir de demandas exteriores que transcendem a sua própria existência; no jogo aberto de uma intertextualidade flutuante "na "luta entre homens e símbolos. Mary Shelley mostra as perdas, as "imposições violentas, e os choques que estão a vista nesta nova sensibi1idade, marca inaugural de uma época que visa emancipar o homem, mas na realidade o agrilhoa aos deuses da técnica. Faz o diálogo com o presente momento, não como uma falsa ou ingênua adaptação as expectativas de significado de nossa época, mas demonstra que o próprio homem, a própria sociedade traça na armadilha de sua própria astúcia.
Frankenstein apresenta uma metáfora gótica da modernidade. Uma alegoria que transforma a linguagem referencial desrealizar a expressão através de uma linguagem sugestiva e densa na problemática do homem em busca de conhecimento. Aliena a poética ao propor a inquietação, a incerteza de sentido, propicia a ironia do distanciamento e leva o leitor a usufruir os caminhos do Sublime. Faz da psique humana mito e cenário góticos. Walton e Victor são criaturas a procura de um ponto indeterminado que e o próprio espaço da criação imaginaria.
No seu jogo ficcional, Mary Shelley reconduz a função de comunicação da obra e apresenta sua resposta às expectativas do leitor, demonstrando como sua arte, ao interferir / questionar a realidade de sua atualidade, engendra o próprio caminho histórico do homem de hoje.
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