A AMBIGÜIDADE E O EMPREGO DE PRONOMES

Rosane Santos Mauro Monnerat

No capítulo XII da obra Novíssimos estudos da língua portuguesa, Mário Barreto aborda a questão da “evidência e clareza da expressão”, abonando expressões pleonásticas da preposição “de” conjuntamente com pronomes possessivos para dar à frase “precisão e evidência maior”. Essas construções pleonásticas ou redundantes, do tipo “seu pai dele”, ou a sua casa dela”, nas quais os possessivos seu, sua são seguidos do genitivo dele, dela, deles, delas, encontram-se, inclusive, como assinala o autor, em bons escritores.

Observa-se, dessa forma, que a preocupação com a clareza e a necessidade de se evitar a ambigüidade tem sido preocupação constante dos bons autores.

Mas, na verdade, que se entende por ambigüidade?

De modo geral, esse termo se refere à propriedade de certos enunciados poderem ser interpretados de diferentes maneiras, sendo, pois, sinônimo de “pouco claro”. Para Lyons (1981) ambíguo é um sinal que codifica mais de uma mensagem. Tal ambigüidade pode provir de uma “imperfeição” do falante ou de uma “deficiência” do sistema da língua.

Convém destacar, no entanto, que nem sempre a ambigüidade é um problema. Muitas vezes, corresponde a uma intenção clara e determinada do falante, como ocorre, com freqüência, em textos publicitários e humorísticos. A ambigüidade só deve, pois, ser evitada quando é involuntária. E aí reside o problema: como evitar aquilo de que não nos damos conta?

Nesse ponto, importa, então, ressaltar o caráter dialógico da ambigüidade, ou seja, a ambigüidade se instaura sempre no interlocutor. Em outras palavras, ela só existe para o outro, já que, quando produzimos nossos textos, quando interagimos, sabemos o que estamos querendo dizer, transmitir. O outro, o nosso interlocutor é que pode não atingir, não perceber a nossa intenção, o nosso propósito.

A ambigüidade pode ser polissêmica, ou estrutural. No primeiro caso, deve-se à possibilidade de os vocábulos apresentarem mais de um significado; no segundo, ela se prende a problemas de construção. A ambigüidade derivada da polissemia do vocábulo pode ser evitada pelo esclarecimento maior do contexto, ou pela substituição do vocábulo polissêmico por outro de sentido equivalente; já no caso da ambigüidade estrutural, as causas são muitas e as possibilidades de eliminá-la variam conforme o problema que a origina.

Carneiro (2001) apresenta algumas possíveis causas da ambigüidade estrutural, quais sejam: a) a difícil distinção entre agente e paciente (Ex. a demissão do ministro causou impacto); b) o mau uso da coordenação ( Ex. Pedro e Maria vão desquitar-se.); c) a má colocação de palavras (Ex. A professora deixou a turma entusiasmada); d) o mau uso de pronomes relativos, geralmente com dois antecedentes expressos ( Ex. Encontrei a menina e o primo de que lhe falei.);e) a não distinção entre pronome relativo e conjunção integrante (Ex. O jogador falou com a secretária que mora perto daqui.); f) a indefinição de complementos (Ex. o pai quer o casamento logo, mas a filha não quer.); g) o mau uso das formas nominais (ex. O advogado encontrou o réu entrando no tribunal.) e h) o mau uso dos possessivos.

Nesse trabalho, focalizaremos o problema da ambigüidade no emprego dos pronomes pessoais e possessivos, lembrando, com Benveniste (1982: 51), que os pronomes não constituem uma classe unitária, mas espécies diferentes de acordo com o modo de linguagem da qual eles são os signos, pertencendo uns à sintaxe da língua e outros ao que se convencionou chamar “ocorrências de discurso”, já que incluem, além dos signos, aqueles que os utilizam.

No âmbito dos pronomes, a ambigüidade se manifesta especificamente no emprego dos pronomes pessoais e possessivos.

Quanto aos pronomes pessoais, na primeira pessoa, a ambigüidade morfológica ocorre sempre que se neutraliza a oposição entre 1a e 3a pessoas do singular, como no imperfeito, mais-que-perfeito e futuro do pretérito do indicativo, ou nos tempos do subjuntivo. Fica, dessa forma, enfraquecida a afirmação de que o português pode prescindir do pronome sujeito por já ter a indicação da pessoa expressa na desinência número-pessoal. Também a tão mencionada elegância estilística da omissão do sujeito cede lugar à necessidade de sua presença por razões de evidência e clareza de informação.

Na segunda pessoa, a ambigüidade apresenta-se com contornos distintos, se comparada à primeira pessoa. Essa diferença deve-se ao uso do tratamento você, no português do Brasil e à peculiaridade de ser esse pronome um pronome de 2a pessoa que se faz acompanhar por um verbo de 3a. Para tornar esse quadro mais complexo, acrescente-se a identidade entre a 1a e a 3a pessoas em vários tempos da conjugação verbal (a que acabamos de nos referir). Como resultado dessa confluência, uma forma como “contava” pode servir tanto a 1a, como a 2a , ou a 3a pessoas.

Na terceira pessoa, a origem do problema está na ambigüidade morfológica constante entre a 2a e a 3a pessoas, o que promove a explicitação do sujeito em ambas. Podem ser considerados ambíguos contextos em que mais de um referente se apresente como candidato potencial a sujeito do verbo em questão, sendo necessária, nesses casos, a explicitação do sujeito para a interpretação apropriada.

Na área de pronomes pessoais, são compartilhados entre essas duas pessoas (2a e 3a) os pronomes O e LHE, sendo que o primeiro tornou-se de emprego raro na linguagem oral, quando há uso de segunda pessoa (TE) e o segundo, também pouco usado, está evoluindo para que seja compreendido como sendo de segunda pessoa. O esquema seguinte ilustra essa situação:

Eu o vi = Eu vi você, Eu te vi, *Eu lhe vi Þ segunda pessoa do discurso

Eu o vi = Eu vi ele Þ terceira pessoa

Eu lhe falei: Eu falei para você, Eu te falei, Eu lhe falei Þ segunda pessoa do discurso

Eu lhe falei: Eu falei para ele Þ terceira pessoa

Observemos, agora, os pronomes possessivos,

De acordo com a gramática tradicional, os possessivos variam, em português, quanto à pessoa do “possuidor” e quanto ao gênero e o número do “possuído”. Essas variações fornecem vinte formas de possessivos. Houve uma convulsão no sistema pronominal, que causou profundo desequilíbrio, quando foi introduzida a terceira pessoa como segunda semântica, continuando como terceira gramatical.

Teoricamente há causas para a ambigüidade do possessivo SEU:

· ambigüidade pelo fato de SEU poder ter, num enunciado, dois ou mais referentes, todos de terceira pessoa;

· ambigüidade pela possibilidade de emprego da mesma forma SEU em referência a pessoas gramaticais do singular e do plural, tais como a segunda alternando com a quinta, ou, ainda, a terceira alternando com a sexta. Essa ambigüidade é própria dos possessivos e não existe da mesma maneira em todas as línguas, como, por exemplo, em inglês, onde não há dúvidas quanto ao emprego de your para a segunda pessoa (correspondente a você) e his e her para a terceira pessoa (correspondente a dele e dela).

Embora o emprego de terceira pessoa gramatical para a segunda pessoa semântica não seja restrito ao possessivo, como vimos, é nessa área que mais ambigüidade causa.

Um exemplo como “Elas viram a sua casa” pode ter as seguintes interpretações:

Elas viram sua casa =

· Elas viram a casa dela;

· Elas viram a casa delas (caso em que a casa pode ser um só, sendo que elas vivem juntas - posse coletiva - ou que há uma casa para cada uma - posse distributiva)

· Elas viram a casa dele.

· Elas viram a casa deles (posse coletiva ou distributiva)

· Elas viram a casa de você.

· Elas viram a casa de vocês.

A forma DELE seria a forma desambiguadora, pois flexionada quanto ao gênero do possuidor (caso os possuidores possíveis sejam de gênero diferente) ou flexionada no plural pode dar conta dos casos de ambigüidade a que nos referimos.

A área de ambigüidade causada pelo emprego da forma SEU tanto para a segunda (e quinta pessoas) como para a terceira (e sexta) apresenta, portanto, formas desambiguadoras:

SEU - segunda pessoa Þ desambiguadores possíveis: Do senhor,de você, teu.

SEU - terceira pessoa Þ desambiguador possível: Dele.

Com relação ao emprego da forma DELE, observa-se que é mais utilizada para possuidor humano. A substituição da forma SEU pela forma DELE se dá com menos intensidade em contextos em que o possuidor é impessoal, (a forma SEU é menos individualizadora, menos pessoal que a forma DELE, onde se sente muito o pessoal ELE).

Nos diálogos, quando há concorrência entre a segunda (e a quinta) e a terceira (e sexta) pessoas, a forma DELE toma quase totalmente o encargo de terceira pessoa, exceto quando o possuidor é indefinido, não havendo, portanto, mais ambigüidade, já que a forma SEU se destina quase categoricamente à segunda pessoa, permanecendo DELE para a terceira.

Vale lembrar a esse respeito as observações de Mário Perini (2004, p. 62) em A língua do Brasil amanhã e outros mistérios, em relação ao emprego do pronome seu. Ele pergunta: que quer dizer seu? E observa que as gramáticas e os manuais de ensino de português para estrangeiros não levam em conta esse detalhe da ambigüidade do pronome, que pode acarretar muitos mal-entendidos.

Diz o autor: no português falado, seu significa apenas “de você” (com uma exceção, que seria o caso de construções mais ou menos fixas, como “Fulano e sua cara de pau”, ou “Lá vem fulano com suas piadas de mau gosto”). Nos outros casos, usamos as formas analíticas dele, dela, deles, delas, e inclusive de vocês, porque seu só vale para o singular. Uma frase como “Vou convidar a Patrícia e seu marido para jantar lá em casa”, normalmente, significa: “vou convidar Patrícia e o marido de Patrícia”. Mas essa mesma frase falada significa outra coisa: vou convidar a Patrícia e o marido de quem me escuta (ou seja, o “teu” marido). Perini relata que percebeu isso, quando viu uma estrangeira, ao escutar um disco de Maria Betânia, dizer a uma amiga brasileira: “Sua voz é muito bonita. Ao que a amiga respondeu: “Obrigada”. Na verdade, a estrangeira queria dizer: A voz dela, de Maria Betânia, é muito bonita”, mas usou sua, como mandam as gramáticas, e errou.

Com essas observações, Perini quer demonstrar que “a escrita não é uma simples representação da fala, porque cada uma delas utiliza uma variedade da língua nitidamente diferente, em sua estrutura gramatical, da outra”( op. cit , p. 63). As regras da língua falada são estritas e relativamente complexas e desobedecê-las leva à quebra da comunicação.

Vale destacar, ainda, que alguns pronomes que, em certos contextos pareciam totalmente ambíguos, tornam-se não ambíguos pelo contexto lingüístico ou extralingüístico, independentemente de as frases serem faladas ou escritas. Observem-se os casos seguintes:

· “D. Maria deixou toda a sua fortuna para Tereza.” (já que não se pode deixar a fortuna de outrem, sua, obrigatoriamente, deve referir-se a D. Maria), ou ainda:

· “Ele a assassinou e, na pressa, o caderninho caiu de seu bolso sem que ele percebesse.” (é impossível que o cadáver, na pressa, deixasse cair seu caderninho, ficando automaticamente seu atribuído a ele).

Ou, ainda, nesta troca de correspondência pela internet:

· Mauro, nosso cada vez mais saudoso mestre Prof. Celso Pedro Luft, em suas aulas no Pós em Letras da UFRGS, postulava que a VT é um sufixo flexional (ou desinência). Dá uma olhada na "Segunda parte: Morfologia" (p.89-110) da sua (obviamente não é a gramática do Mauro, mas a do Prof. Celso Luft) Moderna Gramática Brasileira. Porto Alegre; Rio de Janeiro: Globo. Estou aqui com a 6ª edição, de 1985; a versão original é de 1974. Abraço & Sorte!Tirza. (CVL 8/8/2004)

Palavras finais

Concluindo, gostaríamos de destacar que a questão da ambigüidade no emprego das formas lingüísticas deve ser considerada a partir de uma problemática que tome o texto como ponto de partida, com seus mecanismos de coesão e de coerência, já que a falta de clareza pode implicar o não-texto. Assim, no ensino de língua materna, no trabalho em sala de aula, deve-se conscientizar o aluno para a problemática da ambigüidade - tanto a intencional, chamando a atenção para os efeitos estilísticos daí decorrentes, quanto a não intencional e, nesse último caso, orientando o aluno no sentido da reescritura de seu próprio texto, levando em consideração outras possibilidades que a língua coloca a seu dispor para dizer o mesmo, sem contudo ser ambíguo. Vale também ter em conta a função referenciadora dos pronomes, como recurso de retomadas coesivas, considerando-se as condições textuais e contextuais que tais retomadas requerem para que se possa assegurar a clareza e a precisão referencial, a interpretação coerente, como já postulava Mário Barreto. Exercícios para identificar os termos substituídos pelos pronomes, bem como outros de identificação dessas retomadas, para estabelecer as cadeias referenciais de um texto seriam uma forma de explicitar para o aluno os mecanismos de construção de textos coesos e, por essa via, coerentes.

Dessa forma, sugere-se uma análise de fatos da gramática, articulada ao texto, à preocupação com a variedade de registros (oral, ou escrito) e de usos da língua. Essa é, portanto, uma boa oportunidade para chamar a atenção para o fato de que, contrariamente ao que alguns colegas têm postulado, há e sempre haverá espaço para o estudo da gramática, já que não se pode falar, nem escrever sem gramática, mas, citando Antunes (2003), um estudo em que se tenha em vista (i) uma gramática na perspectiva da linguagem como forma de atuação social, ou seja, uma gramática que seja relevante, selecionando noções e regras gramaticais úteis e aplicáveis à compreensão e aos usos sociais da língua; (ii) uma gramática que seja funcional, que privilegie, de fato, a aplicabilidade real de suas regras, tendo em conta, inclusive, as especificidades de tais regras, conforme esteja em causa a língua falada ou a língua escrita; (iii) uma gramática contextualizada, incluída naturalmente na interação verbal, uma vez que é condição indispensável para a produção e interpretação de textos coerentes, relevantes e adequados socialmente, o que torna falsa a questão colocada por alguns professores de “texto ou gramática” ?;(iv) uma gramática que traga algum tipo de interesse, desmistificando a idéia de que estudar a língua é algo penoso, desinteressante; (v) uma gramática que liberte, que “solte” a palavra. Nesse sentido, convém lembrar a possibilidade de, em certas situações, subverter as regras da língua para obter certos efeitos de sentido; (vi) uma gramática que prevê mais de uma norma, caracterizando a “norma-padrão” como sendo a variedade socialmente prestigiada, mas não a única “certa”, já que “certo” é aquilo que se diz na situação certa à pessoa certa e, enfim, (vii) uma gramática que é da língua , que é das pessoas, já que se a experiência humana da interação verbal é lingüística, ela é também verbal. Isso por si só faz a gramática recobrar a sua importância.

Referências

ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.

BARRETO, Mário. Novíssimos estudos da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Presença/INL-FCRB - MEC, 1980.

BENVENISTE, Emile. A natureza dos pronomes. In: DASCAL, Marcelo (org.) Fundamentos metodológicos da lingüística. Campinas: Ed. do Autor, 1982.

CARNEIRO, Agostinho Dias. Redação em construção. São Paulo: Editora Moderna, 2001.

LYONS, John. Língua(gem) e lingüística - uma introdução. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora S. A., 1987.