A norma culta objetiva em textos jornalísticos argumentativos no século xx
Luciana Paiva de Vilhena Leite (UFRJ)
Patrícia Ferreira Neves Ribeiro (UFRJ)
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho, que se inscreve na linha de pesquisa Língua e Sociedade: variação e mudança, constitui, dentro do projeto maior de traçar uma história para o português brasileiro, uma iniciativa que visa identificar a norma objetiva (culta) do século XX, escrita em textos jornalísticos argumentativos, assinados e não assinados, e publicados em periódicos de grande circulação nacional.
O interesse desta pesquisa está em verificar se, em textos jornalísticos opinativos, a discrepância entre o oral e o escrito, no decorrer do século XX, tem sido minimizada ou alargada para efeito de fixação de uma possível nova norma escrita culta brasileira.
Relativamente ao século XIX, Pagotto (1998) já havia mostrado que uma nova norma culta escrita fora codificada no Brasil. Prova tal fato pela comparação que estabelece entre dois diferentes exemplares do texto constitucional: o da constituição do Império, de 1824, e o da primeira constituição republicana, de 1892.Constata que os dois textos foram redigidos em gramáticas bastante diferentes uma da outra. O texto constitucional de 1824 foi escrito no que ficou conhecido como o português clássico; o de 1892, por sua vez, foi escrito naquilo que se tem considerado como a atual norma culta do português, a qual, em geral, reflete as variedades modernas do português europeu.
As diversas correlações históricas e políticas colocam na segunda metade do século XIX, a moderna norma culta de Portugal como a norma culta do Brasil.
No que concerne ao século XX e, mais precisamente, aos quarenta anos que separam as décadas de 60 e de 90, inclusive - da ditadura à democracia - investiga-se a manutenção ou não da norma culta, de feitio lusitano, tal como configurada no final do século XIX.
Sendo assim, algumas indagações direcionam a investigação proposta por esta pesquisa.
Será que com as políticas totalitárias da década de 60 do século XX, instauradoras de projetos nacionalistas, como foram os do período de formação do Brasil como nação independente no século XIX, conserva-se o modelo lingüístico da primeira Constituição da República?
Por outro lado, será que com as políticas democráticas da década de 80 do século XX, com a vulgarização do sistema de ensino público e com o fenômeno dos meios de comunicação de massa, “inova-se” o modelo lingüístico nos moldes da Constituição do Império?
Ou, enfim, será mesmo que a norma culta, decalcada dos padrões de uso do português europeu moderno que ganha corpo na segunda metade do século XIX, com base no caráter elitista de formação do Estado brasileiro, atravessa todo o século XX, contando com o aval do discurso aparentemente neutro de uma ciência da linguagem, conforme atesta Pagotto (1998)?
Como tentativa de responder a essas questões, desenvolveu-se a presente pesquisa.
2. REFERENCIAL TEÓRICO
Este trabalho submete os artigos do corpus a um estudo consoante os pressupostos teóricos da sociolingüística diacrônica, centrada sobre uma unidade de perspectiva, representada, predominantemente, pela abordagem variacionista. Os fundamentos dessa análise se concretizam em exames lingüísticos que pretendem desvendar o contexto sócio-histórico dentro da heterogeneidade lingüística e a polarização (norma culta e norma vernácula ou popular) dos padrões de comportamento lingüístico que configuram a realidade do português brasileiro.
Segundo Lucchesi (2002), a norma culta seria dada pelos padrões de comportamento lingüístico dos cidadãos brasileiros socialmente privilegiados. Como norma lingüística, “é considerada tributária dos modelos transmitidos ao longo dos séculos nos meios da elite colonial e do Império e inspirados na língua da Metrópole portuguesa” (LUCCHESI, op cit, p. 87). A norma popular, por seu turno, é definida pelos padrões de comportamento lingüístico da grande parcela da população “alijada de seus direitos elementares e mantida na exclusão e na bastardia social” (ibidem).
Cunha (1985), com base na teorização de Eugênio Coseriu, faz uma distinção entre norma objetiva e norma subjetiva. A primeira é relativa a padrões observáveis na atividade lingüística de um grupo determinado, isto é, revela os padrões habituais de comportamento lingüístico. A segunda é relativa a um sistema de valores que norteia o julgamento subjetivo do desempenho lingüístico dos falantes dentro de uma comunidade de fala, ou seja, revela os modelos ideais que regulam o comportamento lingüístico.
Lucchesi e Lobo (1988) enfatizam essa distinção pela diferença que estabelecem entre norma-padrão e norma culta. Aquela reuniria as formas contidas e prescritas pelas gramáticas normativas (norma subjetiva); esta conteria as formas efetivamente depreendidas da fala dos segmentos plenamente escolarizados (norma objetiva), ou seja, dos falantes com curso superior completo, de acordo com a clássica definição do Projeto de Estudo da Norma Culta (CALLOU,1999).
Este trabalho se desenvolve, justamente, no encalço do repertório ativo de variantes lingüísticas intercambiáveis que configura uma norma objetiva escrita no Brasil.
3. METODOLOGIA
3.1. Corpus
O corpus da pesquisa conta com quatro artigos jornalísticos publicados na imprensa escrita carioca: 02 da década de 60 (um assinado e outro não assinado) e 02 da década de 90 (um assinado e outro não assinado).
O corpus é descrito conforme exposto no quadro a seguir:
Artigos Assinados | Artigos não assinados (Editoriais) | |
Década de 60 | ·Artigo do Jornal do Brasil ·Autor: Carlos Castello Branco ·Data: 14/12/1968 ·Título:” Primeiras impressões sobre o Ato de ontem” | ·Editorial do Jornal do Brasil ·Data: 31/12/1961 ·Título: “Panorama” |
Década de 90 | ·Artigo do Jornal do Brasil ·Autor: Fritz Utzeri ·Data: 02/12/1999 ·Título: “As mãos de Ediene” | ·Editorial do Jornal O Globo ·Data: 26/12/1999 ·Título: “Prosa de Governador” |
A opção pelo texto argumentativo vem de muito tempo sendo objeto de estudo anterior. Além disso, muitas vezes é no texto argumentativo que se estabelece o julgamento valorativo do autor (ou do veículo jornalístico) e, por isso, tal modelo pode ser considerado exemplar para uma “sintaxe canônica” da língua.
A respeito da subdivisão em textos assinados e não assinados, justifica-se a escolha pelo fato de serem estes os melhores modelos de modo argumentativo de organização do discurso a serem comparados, podendo ser observados, ainda, no que se refere à norma culta objetiva.
No que tange à época selecionada para estudo, a escolha se deu pelo fato de haver a diferença de 30 a 40 anos entre os referidos corpora. Assim sendo, espera-se que haja mudança(s) da norma culta objetiva em ambos os discursos enfocados, dado que da década de 60 à de 90 as diferenças políticas são evidentes, especialmente no que toca à liberdade de imprensa.
3.2. Tratamento dos dados
A análise pretende uma avaliação eminentemente qualitativa dos dados, uma vez que não se trata, neste caso, de variação lingüística stricto sensu, mas da possível verificação de uma (ou várias) norma(s) culta(s) objetiva(s) para o texto jornalístico argumentativo escrito. Além disso, como os corpora selecionados são reduzidos, não há subsídios para uma análise quantitativa.
Dito isto, é necessário enfatizar que a análise pretende pautar-se nas variáveis usadas por Pagotto (1998), a saber: (a) utilização dos pronomes clíticos; (b) uso de onde e aonde; (c) uso (ou não) de sentenças relativas cortadoras (cf. TARALLO, 1999 ) e (d) emprego de todo e todo o e na inserção do fator (e) - concordância verbal das passivas sintéticas com sujeito no plural, - uma vez que se tem observado uma série de variações na concordância verbal em textos escritos quando o falante/escritor pretende tornar indeterminado o sujeito gramatical, mas usa um verbo de transitividade direta.
Selecionaram-se as referidas variáveis por ser o texto de Pagotto (op. cit) uma referência ao presente trabalho, uma vez que, em seu estudo, o autor constatou que houve diferenças quanto aos citados fatores nos textos constitucionais de 1824 (Constituição do Império) e de 1892 (primeira Constituição da República). Sendo assim, Paggoto (op cit) observou que o texto constitucional de 1824 (diferentemente do de 1892): a) revelou clíticos em posição eminentemente proclítica; b) apontou o uso de “aonde” em contextos em que a atual Gramática Normativa prescreve “onde”; c) apresentou uma série de sentenças relativas cortadoras e d) revelou o uso de “todo o” em “construções universais”.
Por fim, o trabalho pretende responder à questão-chave: se no século XVIII, o modelo de escritura da norma culta objetiva eram os textos da administração pública (cf. BARBOSA, 1999) e no século XIX tal modelo eram os jornais (cf. BARBOSA, 1999), qual seria, então, o modelo de escritura da norma culta objetiva no século XX?
4. ANÁLISE DOS DADOS: INDÍCIOS GRAMATICAIS PARA O ESTABELECIMENTO DA NORMA CULTA OBJETIVA ESCRITA NO SÉCULO XX.
4.1 Artigos Assinados
O confronto das décadas de 60 e de 90 revela que, em artigos jornalísticos assinados, os fenômenos sintáticos focalizados comportam-se de igual modo.
No que concerne ao uso dos clíticos, observa-se que os textos assinados são essencialmente enclíticos, excetuando-se os contextos em que a norma padrão prescreve a próclise. São ilustrativos desses dados os exemplos a seguir:
(1) “Ao Ato Institucional não deverá seguir-se nenhum outro ato institucional” (Década de 60).
(2) “Mas Ediene (...), se tiver filhos, não os aconchegará em seus braços para dar-lhes o calor e o alimento dos seios da mãe” (Década de 90).
(3) “Uma conseqüência que não estava inicialmente prevista, desse novo Ato Institucional será a intervenção federal nos Estados, na forma que se estabeleceu” (Década de 60).
(4) “Ediene, ainda menina, trabalhava na máquina infernal quando se distraiu e seus braços voltaram ao barro” (Década de 90).
Nos exemplos (2), (3) e (4), pode-se notar o emprego dos elementos gramaticais não, que e quando, respectivamente, como fatores de próclise.
Com relação à presença do fator onde/ aonde, constata-se que não há ocorrência desses articuladores sintáticos nos artigos jornalísticos analisados.
Inexistentes também, em ambas as décadas, são as sentenças relativas cortadoras. As relativas-padrão, depreendidas dos textos estudados, comprovam essa observação.
(5) “Resta saber se terá condições de exercer com a mesma moderação seu antecessor os tremendos poderes de que se investiu após tanta hesitação”. (Década de 60).
(6) “Os dedos que enche de anéis são os dos pés, com os quais escreve, desenha e passa batom nos lábios” (Década de 90).
Sobre as ocorrências todo/ todo o, vale dizer que, nos artigos em foco, não há emprego de todo o em construção universal. Observe-se que, nos exemplos abaixo, a marca gramatical todo o não tem a função de indicar quantificação de natureza universal, mas sim de exprimir totalidade.
(7) “A medida estancou todas as fontes políticas de resistência ao Governo, não deixando nenhuma válvula” (Década de 60). [a totalidade das fontes políticas de resistência].
(8) “Ela é uma das centenas de crianças mutiladas (...) trabalhando como gente grande em troca de minguados cobres, indispensáveis para manter a vida de famílias miseráveis em todo o país” (Década de 90) [o país inteiro].
Em especial, no corpus assinado da década de 60 (exemplo (7)), encontrou-se apenas um caso de todo o e em construção pluralizada. Nesse caso, a recomendação prescritiva de que no plural todos venha acompanhado de artigo, a menos que haja um determinativo que o exclua, foi cumprida.
No que diz respeito à voz passiva sintética com sujeito plural, depreende-se apenas um exemplo do artigo assinado da década de 60. Nesse caso, o padrão da concordância verbal se impõe, conforme atesta o exemplo seguinte:
(9) “... e tudo indica que se cumprirão as profecias de um expurgo no Poder Judiciário” (Década de 60) [sujeito paciente no plural].
O texto da década de 90 apresenta voz passiva sintética apenas com sujeito singular.
(10) “No Brasil, desde 1875, com a lei Rio Branco, ou do Ventre Livre, extinguiu-se a escravidão infantil” (Década de 90) [sujeito paciente no singular].
4.2. Artigos não assinados
Em relação aos editoriais enfocados na análise (artigos não assinados), percebe-se que os resultados encontrados demonstram que não é o gênero (assinado/não assinado) que demonstra uma possível variação na norma culta objetiva. O que, talvez, ocasione essa variação seja o aspecto ‘estilístico”, isto é, pode ser que a variação entre os fatores selecionados para estudo ocorra se forem observados em narrativas, como crônicas, contos, fábulas etc. Entretanto, como se pode notar nos excertos abaixo, a norma objetiva não varia, mantendo-se tal qual a prescreve a Gramática Tradicional.
Em se tratando do emprego dos clíticos, constata-se que tanto os textos de 60 quanto os de 90 continuam eminentemente “enclíticos”, exceto nos casos de atração por próclise.
Vejam-se os excertos:
(11) “A crise brasileira ressente-se, então, de uma colocação precária da validade dos Partidos Políticos (...)” (Década de 60)
(12) “A agricultura mato-grossense tornou-se altamente técnica”. (Década de 90)
(13) “(...) ao longo do ano que se despede, para o fim de uma análise(...)” (Década de 60)
Nota-se, pois, que o fragmento (13) é caso de fator de próclise, ou seja, há atração exercida pelo relativo que .
Passando-se para o segundo fator de análise, constata-se que o editorial da década de 60 não apresenta ocorrências de onde/aonde. Do texto da década de 90 foram extraídos os excertos a seguir, ambos de acordo com os preceitos da atual Gramática Normativa:
(14) “A terra prometida, onde corre leite e mel (...)” (Década de 90)
Em relação às sentenças relativas, constata-se a não-ocorrência absoluta de “relativas cortadoras”, que pareciam existir freqüentemente no texto constitucional de 1824 (cf. PAGOTTO, 1998:52). Tal constatação deixa evidente que a segunda metade do século XX, em termos de modelos oficiais de escritura, assemelha-se à atual norma lusitana. Vejam-se os excertos:
(15) “Mas, passado o instante em que a nação respirou aliviada de algum conflito armado (...)” (Década de 60)
(16) “(...) e uma pecuária excepcionais, que encontravam agora caminhos mais fáceis” (Década de 90)
A observação do fator “todo/todo o” demonstra a inexistência de “todo o” em construção universal nos editoriais analisados, como se pode verificar a seguir:
(17) “(...) renuncia o Sr. Jânio Quadros à Presidência da República, causando, como era normal, perplexidade em todo o país”. (Década de 60) [no país inteiro]
(18) “(...) apesar dos 38 graus de calor que registra todos os dias”. (Década de 90) [os dias inteiros]
No que concerne ao último fator morfossintático inserido nesta análise - a concordância verbal nas passivas sintéticas - observa-se apenas uma ocorrência de sujeito paciente no plural (e esta ocorrência nos moldes prescritivos) no editorial da década de 60. Na década de 90, além de a ocorrência de passivas sintéticas ser mais escassa, o sujeito paciente só se apresenta no singular, como se nota a seguir:
(19) “De fato não a aceita, haja vista as preferências que se têm afirmado, ùltimamente, através das urnas”. (Década de 60) [sujeito paciente no plural]
(20) “(...) há quatro anos não se registra um único caso de febre aftosa (...)” (Década de 90) [sujeito paciente no singular]
Vale enfatizar, porém, que o excerto (19) traz sujeito paciente no plural anteposto ao verbo, sujeito este marcado pelo pronome relativo “que”, o que facilita a concordância na passiva. No caso (20), apesar de o sujeito paciente estar no singular, sua posição é pós-verbal.
4.3. O texto constitucional de 1988
Pelos dados descritos nas seções anteriores, constata-se que a norma objetiva culta em textos jornalísticos do século XX comporta-se do mesmo modo que a norma codificada no Brasil no decorrer do século XIX. Norma esta da primeira constituição republicana, de 1892, conforme atesta Pagotto em seu texto de 1998.
A despeito, contudo, dos artigos de opinião, indaga-se se também, no texto constitucional de 1988, texto que costuma ser a expressão mais alta das elites de um país, esta mesma norma se mantém. A título de curiosidade, investigam-se as mesmas marcas gramaticais morfossintáticas verificadas no corpus do jornal e nos textos constitucionais de 1824 e de 1892, buscando-se delimitar com mais precisão a norma culta objetiva escrita no século XX.
Pela análise empreendida, verifica-se que o texto constitucional de 1988 é também essencialmente enclítico, conforme demonstram o exemplo abaixo:
(21) (Parágrafo XVI - artigo 5º): “todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público...”.
Quanto ao uso de onde/ aonde, nota-se que a apresentação da forma onde se dá em contextos em que a atual norma culta a prescreve. O exemplo abaixo é elucidativo desse dado.
(22) (Parágrafo LXII- artigo 5º) : “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente...”.
As relativas cortadoras são também inexistentes como comprovam os trechos escritos sob a forma da relativa-padrão:
(23) (Parágrafo 1º - artigo 213): “Os recursos de que trata este artigo poderão ser destinados a bolsas de estudo para o ensino fundamental e médio...”.
O escape fica por conta do emprego de todo o. Curiosamente, seu uso ocorre fora dos atuais padrões prescritivos, isto é, a expressão todo o é empregada para indicar quantificação universal, nos moldes da constituição de 1824.
(24) (Parágrafo único) : “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. [qualquer poder].
Este último exemplo talvez revele aquela oscilação que se almejava encontrar na atual norma culta escrita brasileira. É provável que a expressão todo o, mesmo no sentido de qualquer, seja qual for, tenha sido empregada num texto altamente conservador por não ser alvo de uma avaliação que a estigmatize.
Mesmo condenando o uso do artigo nesse caso, Cunha (1985: 225) adverte que a preocupação em estabelecer a distinção entre todo “qualquer”, “cada” e todo o “inteiro”, “total”, é muito mais comum entre professores portugueses do que entre os brasileiros, já que em Portugal o uso do artigo para expressar a totalidade é muito mais freqüente na língua contemporânea do que na do Brasil.
Esse fato pode ser realmente comprovado pelas ocorrências relativas a esse fenômeno levantas por Neves (2000), que mostra que o uso de todo o no singular no sentido de “qualquer” é também ocorrente em um corpus que abriga desde textos escritos de literatura romanesca até de jornalística do século XX.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados depreendidos das análises de textos jornalísticos opinativos, assinados e não assinados, das décadas de 60 e de 90 do século XX, como também do texto constitucional de 1988, permitem mostrar que a norma culta decalcada dos padrões de uso do português europeu moderno, a qual se estabelece e se fortalece na segunda metade do século XIX, alicerçada no perfil elitista de construção do estado brasileiro, atravessa, inegavelmente, todo o século XX. Ao contrário do que se supunha sobre a inovação do modelo lingüístico nos moldes da Constituição do Império, conserva-se, tanto em textos jornalísticos argumentativos da década de 60, quanto da década de 90, o modelo lingüístico da primeira Constituição da República.
Em âmbito lingüístico, nem as políticas democráticas da década de 80 nem a vulgarização do sistema de ensino público nem a democratização dos meios de comunicação superam o totalitarismo instaurado na década de 60. Além disso, nem a intensificação do contato das camadas médias e altas com dialetos populares rurais nem a chegada de mais de três milhões de imigrantes europeus e asiáticos, em período pós-ditadura, parecem ter possibilitado o afastamento do padrão normativo de matiz europeu nos corpora do jornalismo opinativo.
Pergunta-se afinal qual seria, então, o modelo de escritura da norma culta objetiva no século XX que estaria a assegurar tão rigidamente o modelo lingüístico conservador da 1ª Constituição Republicana.
Diacronicamente, a fixação da norma culta objetiva escrita é assegurada por fontes diversas. Barbosa (1999) mostra que, no século XVIII, o referencial para o texto cotidiano é o da máquina burocrática. No século XIX, antes da vulgarização da escola, os textos de jornal representam o parâmetro para fixação da norma. Já no século XX, parece ser a escola o motor que fornece o respaldo para a manutenção de uma norma culta alijada das reais tendências de uso da língua nos diversos segmentos da sociedade brasileira. É isso que observa Lucchesi (2002: 88) quando diz que
a norma culta atual atravessa todo o século XX, não sem contar com o aval do discurso aparentemente neutro de uma ciência da linguagem [escola] que forneceu respaldo para a manutenção [pela escola] de uma norma-padrão alheia às tendências reais de uso da língua nos diversos segmentos da sociedade brasileira
Assim, conclui-se que os textos jornalísticos opinativos, assinados e não assinados, produzidos no decorrer do século XX, refletem aquela norma lusitana - adventícia e anacrônica - legitimada e ensinada nas escolas até hoje.
Usar então o corpus do jornal para ensinar a norma culta objetiva atualizada, com o propósito de colocar objetivos mais realistas para o ensino da língua, conforme sugerem lingüistas como Mário Perini (1995), é até certo ponto uma ilusão. Sobretudo os artigos de opinião conservam ainda o modelo lingüístico de tendência lusitana, no feitio da primeira Constituição da República.
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