A Norma é Culta ou Ideológica? 

Cirineu Cecote Stein (UFRJ)

 

Resumo

 

Subjacente à questão de qual norma ensinar ao usuário da língua materna estão os aspectos ideológicos controladores dos mecanismos sociais de dominação. Tomando por base a distinção entre “norma culta” e “norma vernácula”, este artigo objetiva verificar o percurso histórico no estabelecimento da norma culta no Brasil, considerando o Século XIX como o momento decisivo na consolidação dos atuais padrões cultos brasileiros. Paralelamente à noção da existência de várias normas, tanto numa perspectiva diacrônica quanto numa sincrônica, deve permanecer a consciência de que a norma culta, tal como vem sendo historicamente prescrita pelo ambiente escolar e pelos meios de comunicação, torna-se instrumento de dominação de uma elite que a domina.

 

0. Introdução

 

                Estar em contato com a norma culta da língua não é apenas um aspecto cultural. Trata-se, principalmente, de uma questão de prestígio social. Num país em que, historicamente, as desigualdades sociais se perpetuam, dominar o padrão culto da língua é ser detentor de um poderoso instrumento, senão de ascensão, pelo menos de imposição de respeito frente a uma interlocução dominadora.

                O Brasil é um país que, por mais de quatrocentos anos, mostrou-se analfabeto. Segundo Houaiss (1985, apud LOBO, 2003:407), até o século XIX o índice da população brasileira considerada alfabetizada oscilava entre 0,5% e 1%, sendo que, apenas no século XX, essa situação foi modificada: entre 1900 e 1920, 35% da população já eram alfabetizados (Fernandes, 1966, apud Lobo, 2003:407) e, de acordo com o censo demográfico de 1991, esse índice se eleva a 75% da população. Os esforços dos vários governos têm se direcionado para a eliminação total do analfabetismo no país, numa tendência mundial, seguindo preceitos da Unesco.

                Esses números que, a princípio, podem parecer promissores, não são suficientes, per se, para retratar o que subjaz à realidade lingüística brasileira. Embora possa parecer que a simples escolarização (ainda que em níveis muito baixos) represente a possibilidade de inserção do indivíduo em sua sociedade, o que geralmente se omite é, em relação ao uso do idioma, o distanciamento existente entre uma prática cotidiana (no nível da parole saussureana) e a prescrição que se decidiu instituir como padrão culto. Essa exclusão lingüística do cidadão se coloca como uma simbologia da própria exclusão social (cf. Mattos e Silva, 1996:295).

                Essa polarização da realidade lingüística brasileira, como indica Lucchesi (2002:64), define-se dentro de um diassistema heterogêneo, em que se distinguem “dois sistemas igualmente heterogêneos e variáveis: a norma culta e a norma vernácula ou popular. No caso específico do Brasil, especialmente a partir do século XIX, o distanciamento entre esses dois sistemas se intensificou gradativamente, num reflexo nítido da projeção ideológica da elite sobre seus dominados, que, sem acesso a um sistema regular (ou mesmo irregular) de educação formal, não conseguiriam transpor o fosso que os separava da sociedade prestigiosa. Valorizando um padrão culto distinto da norma vernácula, a elite conseguiria, assim, manter seu domínio, tanto ideológico quanto político.

                Embora as discussões mais acirradas em relação aos aspectos de uma língua brasileira ocupem o espaço do século XX, especialmente a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, o ponto inicial da discussão remonta ao século anterior e à questão do Romantismo, que se processou, quanto aos aspectos lingüísticos, de formas diferenciadas em Portugal e no Brasil. A elite brasileira, para manter seu projeto de dominação, assume, aqui, um processo lingüístico oposto ao que se verificou, ideologicamente, em Portugal, como será discutido mais à frente.

                Para determinação do que é a norma culta, já se convencionalizaram, como fonte de pesquisa, os textos publicados em jornais, para os séculos XIX e XX. Para o século XVIII, seguindo Barbosa (1999), tomam-se como referencial as cartas de comércio. Nos séculos anteriores aos citados, a produção de textos não-literários no Brasil se deu por meio de mãos portuguesas, o que os distancia de um possível corpus para estabelecimento do que seria a norma do português brasileiro àquela época.

                Por essa conduta metodológica, verifica-se a distinção entre o que se entende como prescrição, segundo os compêndios gramaticais, e descrição, segundo uma linha de análise dos fenômenos lingüísticos internos ao idioma. A norma culta, aqui em reflexão, deve, portanto, ser entendida como o uso verificado nesses documentos e, não, a prescrita nas gramáticas ou verificada nos textos literários, salvo casos específicos, como o que será utilizado para exemplificação, mais à frente.

                Este artigo objetiva, à luz dessas informações teóricas, estabelecer um diálogo com a consciência do leitor acerca da questão da língua como instrumento de cidadania, de modo a perceber os possíveis aspectos ideológicos subjacentes ao padrão culto estabelecido socialmente.

 

1. O percurso no estabelecimento da norma

 

                Uma passagem bastante pitoresca quanto aos problemas inerentes à fixação da norma é a referida por Castro (2002:12), segundo a qual o escritor Augusto Abelaira, recorrendo à Nova Gramática do Português Contemporâneo (Cunha & Cintra) para verificar o uso de uma dada construção sintática, encontrou-a, mas abonada por um exemplo dele próprio, Abelaira. Esse fato deixa perceber a relativização que se deve ter em conta quando da análise das prescrições normativas. Mesmo o escritor pode hesitar quanto às construções a empregar, e seu uso como referencial pode tornar-se duvidoso. O escritor, na verdade, se apresenta como mero pretexto, pois, efetivamente, é o gramático normativo quem fixa a norma (idem, p. 13). A solução, como já apresentada na introdução, está em buscar o estabelecimento da norma em textos não-literários das várias épocas. Mas, ainda com base nesse substrato, a relativização deve ser constante, pois a pretensão de verificação ¾ diga-se “verificação”, não “estabelecimento” ¾ da norma se dá a partir do maior percentual de recorrência de dada construção. Mais razoável, ainda, é a noção de uma possível norma para distintos momentos históricos (Barbosa, 2004), anulando a noção equivocada de uma norma culta que se perpetue ao longo da evolução histórica de um povo, como recorrentemente se pretende sugerir no contexto brasileiro, de forma mais específica.

                A sociedade brasileira tem perpetuado a noção de que a língua oral deve ser um reflexo da norma culta, que se manifesta na língua escrita. Esse comportamento possui raízes históricas, num contraste constante entre dominadores e dominados. Trata-se do permanente embate entre a “gente boa” (Lucchesi, 2002:78) da colônia e os desprestigiados, na época representados, respectivamente, pela elite dos pequenos centros urbanos e pelos negros, índios e mestiços. Assim, usos desviantes desse padrão culto seriam condenados, mesmo que extrapolando as esferas de realização lingüística culta (i.e., aquelas outras em que se manifesta a espontaneidade linguageira, como uma conversa íntima). Rosenblat (1967:114) considera que o maior erro do critério tradicional de correção se situa numa confusão de planos, como se o mesmo padrão regulador pudesse ser aplicado a todas as circunstâncias de fala.

                O critério de correção se coloca de forma imperativa no cotidiano social. Curiosamente, mesmo entre indivíduos analfabetos, é possível verificar uma preocupação com uma “forma de falar” mais apropriada (idem, p. 116). Rosenblat (idem, p. 113) questiona o seguinte ponto: por ser o sistema correto por natureza, o critério de correção não deve ser aplicado à “língua”; mas não seria aplicável à “fala”? Embora essa discussão coloque em juízo a própria noção de sistema, nela se encontra a fundamentação para o uso dominador e indiscriminado que se procura perpetuar para a norma culta. Mesmo que, em sua linguagem cotidiana, o dominador não utilize toda a prescrição gramatical, permanece no inconsciente coletivo a noção de que o dominador detém essa norma, e dela advém seu prestígio social. Como o acesso a ela é restrito, e como a fala popular se mostra tão distante desse padrão culto, o dominado permanece em sua condição subalterna, indefinidamente.

                O estudo da norma, no Brasil, deve remontar ao final do século XVII, utilizando-se os textos notariais como referência. Os textos escritos no século XVI e no início do século XVII foram produzidos por portugueses aqui residentes ou de passagem, e, indiscutivelmente, refletem um comportamento lingüístico europeu. Por convenção metodológica, excluem-se os textos literários. No entanto, essa postura deve ser reconsiderada quando em presença de escritores que, mesmo fazendo uso de uma forma literária, procuraram refletir os usos populares, como é o caso, no século XVII, de Gregório de Matos Guerra. Ao leitor contemporâneo não soará estranha a construção destacada nesses versos: “Se como Anjo sois dos meus aItares, / Fôreis o meu custódio, e minha guarda, / Livrara eu de diabólicos azares.”. Mattos e Silva (1996: 311), por exemplo, menciona que Mattoso Camara, décadas atrás, já analisava o uso do pronome-sujeito de 3a pessoa como objeto direto (“ele acusativo”). O verso de Gregório de Matos registra esse uso no século XVII. Esse fato, então, significa que o brasileiro, mesmo após séculos, persiste em suas mesmas “incorreções” lingüísticas? Ou significa que a norma sempre buscou se manter distante do que talvez possa ser considerado um padrão lingüístico que, possivelmente, é inerente a uma gramática internalizada?

                Avançando para o século XVIII, as cartas de comércio seriam tomadas como referencial para estudo da norma culta (Barbosa, 1999). A partir do século XIX, os textos jornalísticos, especialmente os editoriais e os anúncios (nos jornais sempre foi de praxe a circulação de textos literários, como os folhetins). A razão de, anteriormente ao século XIX, não serem considerados os jornais está na ausência de oficinas tipográficas no território colonial (os jornais que circulavam no Brasil eram impressos em outros países). Apenas com a vinda da família real foi possível uma produção jornalística brasileira, inclusive em regularidade e quantidade expressivas.

                O século XX traz uma nova perspectiva em relação à divulgação da norma. O advento dos modernos meios de comunicação, numa sociedade que se torna industrializada e apresenta um intenso crescimento urbano, acaba por gerar uma visão cosmopolita que democratiza os padrões culturais e lingüísticos (Lucchesi, 2002:79). O Movimento Modernista inaugurado em 1922 se alicerçou, especialmente, na questão da identidade cultural do povo brasileiro. O elemento mais representativo dessa identidade é a língua, que passou a ser explorada, trabalhada, recriada e também representada por inúmeros escritores. Não é desconhecido da maioria dos professores de Português o poema de Oswald de Andrade intitulado “Pronominais”:

 

Dê-me um cigarro

Diz a gramática

Do professor e do aluno

E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco

Da Nação Brasileira

Dizem todos os dias

Deixa disso camarada

Me dá um cigarro

 

Curiosamente, as avaliações a que são submetidos os alunos em sala de aula (situação para a qual é especialmente reservado esse texto) indagam qual seria o erro presente nos versos e qual a regra prescritiva. Dificilmente algum professor busca uma discussão sobre a questão da diversidade lingüística e mesmo os aspectos envolvidos no estabelecimento da norma culta. Estabelece-se, assim, uma rígida distinção entre “o que se pode escrever” e “o que se pode falar”. A discussão, em sua essência, permanece em níveis extremamente superficiais.

                É reservado ao século XIX, no entanto, talvez o que se possa considerar o mais importante papel no estabelecimento da consciência sobre a norma. Com o advento do Romantismo literário, as questões nacionalistas (motivadas de formas distintas na Europa e no Brasil) ocupam o centro das discussões. O Brasil há pouco politicamente independente busca sua identidade. Mas essa identidade permanecerá como conflito entre dois pólos: os interesses da elite, materializados na adoção de um padrão lingüístico normativo baseado no português europeu moderno e a efetiva cultura nacional, que busca, num sentimento nativista, sua maior forma de expressão (Lucchesi, 2002:79).

 

2. Romantismo, o divisor de normas

 

                Pagotto (1998) observa as construções lingüísticas utilizadas na constituição do Império, de 1824, e na constituição republicana, de 1892, dois textos que marcam, portanto, o início e o fim do século XIX. Verificou, no primeiro, o predomínio do uso pronominal proclítico; no segundo, do uso enclítico. No primeiro, a forma “aonde”, em contextos em que a norma culta prescreve “onde”, como ocorre regularmente no segundo. No primeiro, o uso de relativas cortadoras; no segundo, de relativas não-cortadoras. No primeiro, a construção “todo o”, para a quantificação universal; no segundo, essa forma é utilizada sem o artigo.

                A partir desses dados, Pagotto (p. 52) verifica que várias características entre as enumeradas são típicas do português clássico, o que atestaria “o seu caráter de norma culta do período. Por outro lado, muitas delas vieram a ser consideradas no Brasil como formas populares, fora daquilo que é prescrito pela norma culta moderna”. Essa constatação lhe permite sugerir que o século XIX foi o momento em que se processou uma mudança radical na norma culta, momento em que os falantes teriam começado a perceber as formas lingüísticas que deveriam usar na escrita de modo diferente das que vinham utilizando regularmente. Acrescenta, ainda, que não se tratava apenas de formas da escrita em desuso “sendo substituídas por formas da oralidade brasileiras. Elas são substituídas por outras igualmente estranhas ao português brasileiro nosso de cada dia, que continua seguindo o seu percurso de mudanças”.

                A título de curiosidade, SILVA & ANDRADE (1894 [1887]:589) informam que as formas pronominais sem preposição eram preferidas no século XIV, e exemplificam: “mim ouve (R. de S. Bento) = me ouve, ouve A mim.”, tecendo o seguinte comentário: “Note-se pois que os modos de dizer me ouve, me parece, etc., não é, como affirmam os Portugueses – um brasileirismo, que nos tem servido para chacota. Não approvamos, porém, como veremos adiante, essa construcção”*. A seguir, prescreve, para esse ambiente, o uso pronominal enclítico.

                A norma prescrita por esse compêndio do final do século XIX deixa perceber que o uso proclítico remonta, em Portugal, a momentos anteriores à colonização brasileira. No momento representado pela gramática de SILVA & ANDRADE (1887), percebe-se, os portugueses já haviam incorporado – na linguagem oral – a construção enclítica, uma vez que criticavam esse “brasileirismo”. Os brasileiros, no entanto, apenas mantinham um uso do Português arcaico, o que revela, por exemplo, ser o Português brasileiro mais conservador que o Português europeu. Os mesmos autores apresentam as seguintes linhas (p. 619):

“O emprego proclítico do pronome, a par da fórma enclitica, data do séc. XII. No XIV é manifesta a preferência pelas fórmas procliticas (quando em relação adverbal ou conjunctiva), e que mais se accentúa e torna-se geral e uniforme, no XV.

“No latim barbaro a preferencia é pela posposição do pronome obliquo (...).

“Mas que o povo portuguez mais se affeiçoou á anteposição, provam-no os seus dizeres, proverbios, juras, precações e imprecações: - O demo te leve; o diabo te carregue; Deus te ouça; Deus te ajude; máos raios te partam; Deus me livre, etc.”

 

Essa tendência do homem brasileiro, comentada por João Ribeiro (apud Pagotto, 1998:60) é o mesmo ponto de apoio para a denominação feita por Gilberto Freire, em 1933, do homem cordial, em oposição ao uso enclítico europeu, percebido como imperativo, autoritário. No contexto do século XIX, essa tendência e outras típicas do Português brasileiro ensejaram, durante o período do Romantismo literário, uma das maiores polêmicas lingüísticas: a questão alencariana.

José de Alencar, um dos mais profícuos e melhores romancistas brasileiros, utilizava em seus textos construções que buscavam resgatar a identidade nacional. Entendia que a linguagem utilizada no meio popular seria, senão a maior, uma das maiores características de seu povo.

                O ponto principal a ser considerado é a diferenciação lingüística essencial entre o Português brasileiro e o europeu durante o século XIX, momento em que floresceu o Romantismo. Pagotto (1998:53), com base nas diferenças lingüísticas verificadas entre a constituição do Império e a primeira constituição republicana, já mencionadas anteriormente, percebe duas diferenças diametralmente opostas: enquanto em Portugal as variantes em mudança, na norma vernácula, ascenderam à condição de norma culta, com o apoio da literatura romântica, que as incorporou em seus textos, no Brasil, mesmo com a literatura buscando sistematizar essas variantes populares, a norma culta não as incorporou: ao contrário, construiu-se um maior senso de estigmatização.

                Explica-se o fenômeno. O Brasil se apresentava ao mundo como país politicamente independente. Como atualmente os EUA são considerados por muitos o maior referencial de desenvolvimento, inclusive na esfera cultural (a Inglaterra e a França também já ocuparam esse posto), no século XIX, para os vários mundos coloniais, a Europa, como um todo, se colocava como referencial a ser seguido. Era necessário mostrar que o cidadão brasileiro, mesmo habitando uma terra tropical sem desenvolvimento, se comportava como os europeus. A extrema idealização dos personagens românticos, tanto femininos quanto masculinos, inclusive para os indígenas, nada mais foi do que a tentativa de igualar o brasileiro ao europeu. Embora os escritores, como Alencar, por exemplo, desejassem caracterizar o comportamento lingüístico de seus personagens como tipicamente brasileiro, na prática social a assimilação de modos se efetivou também lingüisticamente, ou seja, a elite brasileira, na expectativa de igualar-se à européia, busca assimilar os padrões lingüísticos de Portugal, sem a consciência, no entanto, de que, em Portugal, a norma culta estava em final de processo de modificação, na assimilação de padrões outrora populares. Assim, enquanto a norma culta em Portugal se distanciava do português clássico, a do Brasil se aproximava dele.

                Esse procedimento está na base do constructo ideológico das elites. O acesso à norma culta se restringiria àqueles que pudessem receber a educação formal. Considerando a precariedade do ensino no Brasil até o início do século XX (cf. Villela, 2000), a constatação é a de que o acesso a essa educação formal era privilégio basicamente da elite dominante. Assim, como sugere Lucchesi (2002:64), a intensificação da polarização verificada na realidade lingüística brasileira, entre a norma culta, de um lado, e a vernácula, de outro, está fundamentada em “um modelo adventício de regulação do comportamento lingüístico engendrado desde a independência política do Brasil por meio do projeto elitista de dominação que marca a formação do Estado brasileiro”. Por extensão, mais do que ter negado o acesso à norma culta, a grande parcela desfavorecida da população lhe tem negado o acesso à própria ascensão social.

 

3. A prescrição e o uso

 

                Talvez o maior problema quanto à observação da questão da norma culta, para o usuário comum da língua, esteja em não possuir uma visão diacrônica que permita entender o processo evolutivo no estabelecimento da norma. O texto de Pagotto (1998), ao destacar as diferenças lingüísticas entre os dois corpora utilizados, permite essa visualização.

                Os dados apresentados a seguir são uma tentativa de contribuir para o enriquecimento dessa visão diacrônica. Foram colhidos em três documentos, a saber: a) carta de Antônio Rodrigues da Cunha Viana para AEC, Bahia, 16 de março de 1798; b) carta da redação do jornal Echo Social, Rio de Janeiro, 08 de março de 1879; c) carta da redação do jornal O Estravagante, Rio de Janeiro, 09 de outubro de 1881. Esses documentos serão referidos, respectivamente, como documentos (a), (b) e (c).

 

 

3.1. Casos de contração

 

                Estilisticamente, é recomendado que a preposição “de”, por exemplo, quando seguida de um artigo ou pronome começado por vogal, funda-se com eles, formando uma única palavra. Há escritores, porém, que consideram essa fusão um prejuízo para o valor semântico original da preposição (cf. Lapa, 1998:241). Esse uso, no entanto, reside numa sutileza de significação, passando despercebido do usuário comum da língua. O que hoje se coloca como norma estabelecida, no entanto, mostrava-se de forma diferente.

                Bacellar (1783:106) assim prescreve: Todas as vezes que em qualquer modo de falar, sem barbarismo, se achar a preposição de, da, (b), das, do, dos, (c); o vocábulo que se segue á esta, vai a genitivo; v.g. amor da patria (...). E, na nota (b), esclarece: “i.e. De com o artigo a, v.g. d’a.

                Silva (1802:65), na nota (b), observa:

 

“Quando a preposição concorre com a artigo, contrahem-se, ou ajuntão se em á com accento agudo: se concorre com o artigo, perde se ás vezes, e ó faz se agudo; v.g. fui ó templo, bradei ós Ceos. De concorrendo com o artigo perde o e, e fica d’a, d’o, d’as, d’os. Em com o artigo perde se, e fica ‘na, ‘no, por em a, em o. Por com o artigo perde o r, ou muda se este em l: v.g. po-lo campo, ou por o campo. Per em Pel, pela casa.

 

Explicando o que ocorre quando se dá esse tipo de contração, o mesmo Silva (p. 123):

 

Quando se supprime uma vogal usamos de (‘) v.g. d’o, d’as, ‘no, ‘nas, e não n’o, n’a; porque o que se supprime é a preposição em, e onde falta a vogal, ai deve ir o sinal: v.g. c’o homem, por com o; chama-se a isto (‘) sinalefa.

 

                E Barbosa (1881:227), por sua vez:

 

Todo o objecto sensivel, que existe, existe em um logar. Esta relação de existencia, a mais geral por ordem ao logar onde, é a que indica nossa preposição em, ou se exprima e escreva assim, ou ëe com todos seus sons, ou só pela letra n’ junta com o artigo, como: n’o, n’a, n’os, n’as. Assim, do espaço do logar dizemos: estar na cidade, estar em o campo.

 

                O que se percebe dessas citações é uma evolução na norma para o uso de uma preposição contraída com um artigo ou com um pronome iniciado por vogal. Tanto Bacellar (final do século XVIII) quanto Silva (início do século XIX) prescrevem a indicação da contração por um apóstrofo. Como bem indica Silva, esse sinal diacrítico deveria ser posto no ponto exato de supressão da vogal, indicando, inclusive, as formas incorretas. O fato de ter indicado essas formas como incorretas implica dizer que elas seriam, na época, utilizadas correntemente. Aliás, a prescrição de Barbosa (final do século XIX), assume explicitamente o que Silva, 79 anos antes, havia prescrito como incorreto. Na atualidade, sequer se cogita esse uso.

                A documentação analisada oferece alguns dados bastante interessantes.

Em (a), as seguintes três ocorrências: 1. Em os Navios Caretas emvio primeira e segunda Via de letras”; 2. “hûa Remessa que a Vossa mercê sehá defazer emrollos de fumo emos Navios”; 3. “que todos emgeral ofazião nesta te fim deFevereiro passado.”.

A julgar pela prescrição sua contemporânea (a de Bacellar), o autor dessa carta não cumpre o indicado, uma vez que não contrai a preposição com o artigo e, ao contraí-la com o pronome, não utiliza o apóstrofo. O uso feito pelo autor da carta retrata a norma anterior a essa que prevê a contração, que, por sua vez, é inovadora.

Os documentos (b) e (c) apresentam informações distintas, embora estes dados não devam ser considerados excludentes uns dos outros por uma simples razão: o espaço de tempo entre os dois textos é de apenas dois anos e meio, estando ambos localizados no final do século XIX.

Em (b), verificam-se as seguintes ocorrências: 1. “se passam nas chamadas <<Agencias de locação de serviços>>”; 2. “vimo-nos na necessidade”; 3. “e para o aluguel, no qual os honrados agentes”; 4. “as cousas que... n’um momento fazem liquidação”; 5. “a existencia d’esse genero de agenciar”.

Em (c), estas ocorrências: 1. “a leitura do nosso jornal”; 2. “em letras de ouro nos livros da litteratura”; 3. “a briosa população desta capital”.

                Os dados presentes em (b) indicam uma oscilação em relação ao uso do sinal diacrítico para indicar a contração, enquanto em (c) esse uso se mostra totalmente ignorado, num reflexo do que se apresenta como a atual prescrição para esses casos.

 

4. Considerações finais

 

                O cotejo dos dados acima provavelmente possibilitou ao leitor a percepção de que a norma culta, que, de um ponto de vista sincrônico, parece estática, sofre, na verdade, um processo evolutivo. A expectativa é a de que essa constatação venha acompanhada de uma postura que relativize o embate entre a norma culta e a norma vernácula e, a partir dessa consciência, motive a percepção dos mecanismos ideológicos subjacentes ao emprego dessa que as elites buscam impingir como norma culta.

                No Brasil, curiosamente, a norma culta se fixa com o predomínio do discurso científico, e sua manutenção se processa sem maiores polêmicas (Pagotto, 1998:60, 67). Em nome desse mesmo discurso científico, que passa a dominar todos os contextos de comunicação como forma única de expressão, indiscriminadamente, é que as elites são bem sucedidas na manutenção de seu domínio. Veja-se, por exemplo, a intensa divulgação que os grandes meios de comunicação têm feito do que se considera “certo” ou “errado” no Português. Como toda essa mídia possui um intenso poder de penetração no imaginário popular, e como essas prescrições normativas parecem se colocar muito mais como exceções do que como regras, mais se desenvolve no cidadão a sensação de que nunca conseguirá dominar seu próprio idioma. Essa capacidade de uso “correto” fica restrita a um grupo privilegiado, e o abismo lingüístico-social se mantém.

                Não se deve perder de vista a idéia de que, por se tratar de uma relação com uma língua viva, a norma culta varia de acordo com o momento histórico: não se deve pensar em uma norma culta no Brasil, mas nas suas várias normas cultas. É imperiosa, sobremaneira, a consciência do plurilingüismo, respeitando as diversidades culturais e sociais, conhecendo-as, e, a partir desse conhecimento e do domínio dessas normas, a capacidade de fluência social entre os vários estratos.

                Evidentemente, toda essa questão deve ser mediada por uma via pedagógica. Não é preciso recorrer a estudos específicos para perceber que, historicamente, a pedagogia adotada na formação escolar do cidadão brasileiro tem sido centrada no código, quando deveria ser centrada sobre o uso desse código. O que não significa eliminar a prescrição: pelo contrário, com uma abordagem desse tipo é possível desenvolver o senso crítico no aprendiz-cidadão.

                Lucchesi (2002:87) oferece uma interessante definição:

 

A norma culta seria, então, constituída pelos padrões de comportamento lingüístico dos cidadãos brasileiros que têm formação escolar, atendimento médico-hospitalar e acesso a todos os espaços da cidadania, e é tributária, enquanto norma lingüística, dos modelos transmitidos ao longo dos séculos nos meios da elite colonial e do Império e inspirados na língua da Metrópole portuguesa. A norma popular, por sua vez, se define pelos padrões de comportamento lingüístico da grande maioria da população alijada de seus direitos elementares e mantida na exclusão e na bastardia social.

 

                Talvez o problema da norma possa ser resolvido de uma forma bastante simples: tirando essa grande maioria da população da bastardia social.

 

5. Referências bibliográficas

 

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_____. Palestra proferida no dia 11 de abril de 2004, para a Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no curso Norma, variação e história, ministrado pela Profa. Dinah Callou.

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* Será mantida a grafia como registrada nas obras consultadas. Isso pretende ser mais um elemento que desperte a curiosidade do leitor para o processo evolutivo da língua.