ANÁLISE DE FRASES DO TIPO "ALUGA-SE CASAS"
EM FACTOS DA LÍNGUA PORTUGUESA

Márcia Sipavicius Seide (UNIOESTE e PG USP)

Introdução

Esta pesquisa objetiva mostrar a importância da análise proposta por Mário Barreto para frases do tipo “Aluga-se casas” publicada na obra Factos da Língua Portuguesa em 1916.

Uma vez que a obra em apreço é uma coletânea de análises lingüísticas elaboradas em decorrência de questões dirigidas ao autor, foi adotado o ponto de vista prescritivo de análise. Esta escolha justifica-se quando são consideradas as condições de produção textual.Não é difícil imaginar a relação dialógica que permeou a elaboração da obra: enviavam questões ao então professor de Língua Portuguesa do Colégio Militar, consulentes que não tinham senão a expectativa de que a autoridade em questões lingüísticas resolvesse, de modo definitivo, casos polêmicos ou omissos, dando a palavra final sobre que construção era considerada a mais correta. Por a noção de correção lingüística ser exatamente o que caracteriza o prescritivismo, optou-se por considerar esse ponto de vista.

Desse ponto de vista, a análise de Barreto foi confrontada com as fornecidas por gramáticas pedagógicas publicadas ao longo do século: a de Francisco Augusto Pereira Junior (1924), a de Napoleão Mendes de Almeida (1961), a de Faraco e Moura (1990) e a de Terra e Nicole (1996).

Ao final, é apresentada uma análise lingüística deste tipo de frase baseada no Ensaio de Semântica de Bréal, conforme a 3a. ed. publicada em 1904.

A análise de Mário Barreto

Antes de iniciar a apresentação da análise, convém apresentar uma breve contextualização da época em que a obra foi publicada. Até a década de 30 do século passado, não existia curso superior em Letras no Brasil. Os professores de português eram formados em outras áreas e autodidatas em assuntos filológicos e lingüísticos. Algumas instituições de ensino secundário - em especial o colégio Pedro II que teve como professor catedrático de língua portuguesa o filólogo Fausto Barreto, pai de Mário Barreto - exigiam a defesa de uma tese na área como um dos requisitos para ingresso na instituição. Os professores catedráticos eram, então, aqueles que mais conhecimento tinham em matéria lingüística. Nos ginásios e nos colégios eram ensinados, a par da língua portuguesa, o latim e o francês, e, mais raramente, a língua grega.

Os estudos lingüísticos do começo do século passado estavam baseados na Filologia, na Lingüística Comparada e na Lingüística Histórica, pois, naquela época, a ciência da linguagem estava constituída pela Filologia e pela Lingüística pré-estruturalista e seguia uma metodologia documental, motivo pelo qual adotava uma uma abordagem cuja cientificidade dependia de as hipóteses serem comprovadas em textos escritos por literatos considerados exemplares. O pressuposto de que toda língua viva evolui ao longo do tempo também fazia parte dos pressupostos adotados.

Alguns trechos do prefácio aos Factos de Língua Portuguesa evidenciam os paradigmas de cientificidade então vigentes :

(...) a razão de ser de trabalhos desta natureza [...] é que ninguém já agora acredita que se adquira o conhecimento de uma língua com folhear algumas gramáticas [...] ¿Donde se originou tal desvalia? Primeiramente, de que as verdadeiras dificuldades da língua não as resolve a teoria. E mais, de se conservarem os gramáticos duplamente segregados, por uma parte, da língua viva, da língua do tráfego diário [...], por outra parte, da sciência da linguagem, cujas leis afectam desconhecer, cujos princípios se comprazem em desdenhar; donde resulta que, em contradição com uma e outra, desatam as dúvidas que lhes caem na alçada, segundo o modo de ver de cada um, o que faz desses manuais um corpo de doutrina inconsistente, sem base sólida na natureza, incapaz, por conseqùência, de se impôr. [...] (...) no terreno da sciência, o estudo do fenómeno lingùístico abrange o facto positivo da exteriorização do pensamento, de larga documentação, nas obras dos grandes escritores, e as operações intelectuais e orgânicas que o determinaram, susceptívies de verificação (...) (RAMOS, 1982:VI a XV)

Um pouco mais adiante, Ramos tece elogios a Mário Barreto colocando-o em pé de igualdade com Said-Ali e Cândido de Figueiredo. Ato seguido, descreve as virtudes da obra prefaciada evidenciando seu caráter científico :

(...) o estudo da trama do discurso se há de realizar por um processo psíquico-fisiológico, como vem sendo praticado em repertórios da espécie dos <<Estudos>> de Júlio Moreira e de Mário Barreto, das << Dificuldades da língua portuguesa>> de Said-Ali, da série de prestantíssimos volumes de Cândido de Figueiredo, onde se deparam, em frases completas, todas as manifestações da vida interior, surpreendidas nas obras dos que melhor se exprimiram, porque mais fundo vibraram. E eis aí por que me atraem particularmente os <<Estudos>> e os <<Factos da Língua Portuguesa>> de Mário Barreto, opulentíssimos de fraseologia vernácula, o que permite a quem os compulsa abeberar-se nas fontes clássicas, vendo confirmadas com abundantes citações, as tendências da língua [...] nos quais por outra parte, se não tiram conclusões que se não baseiem nos princípios irrefragáveis da sciência da linguagem; [...] os desvios aparentes das leis dominadoras dos factos são explicados pela acção de outras leis intercorrentes, (...).(SILVA, 1982: XVII).

Seguindo os paradigmas então vigentes, a análise começa com a citação da oitava primeira estrofe do canto VIII de Os Lusíadas. Nessa estrofe, há uma frase na qual o verbo está na voz passiva sintética e o ente promotor da ação também vem expresso: “(...) O principal, por quem se governavam/ As cidades do Samorim potente.” (BARRETO, 1982: 91).

Naquela época, professores menos prudentes ou menos cultos poderiam ter posturas radicais que em nada resolveriam a questão. Enquanto uns, usando a citação de autoridade como modelo, poderiam avaliar como correta a construção deste tipo de frase para a linguagem de hoje, outros poderiam valer-se apenas da regra gramatical vigente, o que acarretaria na conclusão esdrúxula segundo a qual Camões teria cometido um erro.

Ao contrário de seus contemporâneos, Barreto, ao explicar que a construção camoniana está em desuso, revela ter, perante os fatos da língua uma atitude mais científica É digno de nota que a reprovação deste tipo de frase por parte de Barreto não está calcada nas autoridades, mas sim no uso atual da língua:

Por bastante tempo foram clássicas em português tais construções [...] No português moderno a conjugação reflexa (na terceira pessoa) serve de voz passiva, mas só quando não se nomeia o agente. As construções do tipo Pedro feriu-se pelos inimigos (i. é foi ferido) já estão fora de uso (idem :.81).

Para ilustrar sua afirmação, o autor verte os versos citados para o linguajar moderno :

Assim redigindo em prosa os conteúdos dos [...] versos camonetanos, diremos na linguagem de hoje: [...] Era o principal regedor, por quem eram governadas as cidades do potente Samorim.” (BARRETO, 1982:.91-92).

Dando continuação à explicação, Barreto utiliza-se da Lingüística Comparada para fornecer mais um argumento a favor de sua análise. Contrasta as regras sintáticas vigentes na língua portuguesa com as da língua castelhana, na qual o ente promotor da ação pode vir expresso. Fornece exemplos em castelhano que, em seguida, são vertidos para o vernáculo no qual há a utilização da voz passiva analítica:

Aqui se cose á (sic) máquina la ropa por modistas francesas - Ahora se hacen los zapatos á (sic) máquina por oficiales norteamericanos (1).Estas frases castelhanas terão de ser vertidas assim: A roupa é cosida á máquina por oficiais norteamericanos - Agora os sapatos são feitos à máquina por oficiais norteamericanos. (idem)

No meio dessa explicação, há uma nota de rodapé na qual o estudioso refere-se a frases do tipo “Aluga-se casas” :

Também em castelhano, como em português, são concordâncias absolutamente intoleráveis: <<Veíase por doquiera estatuas de mármol>> e <<se compone botas>> dos imitadores franceses (...) (ibidem)

A nota de rodapé continua, entretanto, se fosse considerada apenas a parte citada, dizer-se-ia que o adjetivo “intoleravéis” e a locução adjetiva “dos imitadores dos franceses” utilizadas para qualificar as frases evidenciariam, em Mário Barreto, uma atitude purista.

Bem analisada a nota de rodapé na íntegra, percebe-se que, segundo o estudioso, o problema está naqueles que se inspiram na língua francesa sem conhecê-la bem. Estas pessoas interpretavam o pronome indefinido francês “on” como sendo equivalente ao “se” partícula apassivadora, esquecendo-se de que, em francês, também há a voz passiva sintética que segue as mesmas regras válidas para o português e para o castelhano. Como resultado desse conhecimento imperfeito, há a criação de frases incorretas por não haver obediência à regra segundo a qual o verbo deve concordar com o sujeito:

(...) os imitadores do francês que equiparam o se, sinal de passiva em português e castelhano, com o on francês. Em francês, põe-se necessariamente o verbo no singular, porque on é verdadeiro sujeito da frase, e equivale a homme. De homo nasceram home, hom, on. Assim nestes versos da Esther de Racine: <<On y conserve écrits le service et l’offense, / Monuments éternels d’amour et de vengeance>>, o verbo conserve concorda com o sujeito on; mas ao traslada-los para o vernáculo, o verbo tem que concordar com o sujeito o serviço e a ofensa. Diz-se em francês: “On vend des legumes”, e em português: Vendem-se legumes, e em castelhano: Se venden legumbres (legumbres son vendidas). Bom será recordar que a passiva com se também existe no francês, onde junto á forma: “ On ne porte plus des chapeaux blancs” existe a outra com o se apassivador: “Les chapeaux blancs ne se portent plus.>>. Voz ativa: “Voilà comment on fait les lois”, frase em que les lois é objecto direto. Voz passiva: “Voilá comment se font les lois”, construção em que les lois é o sujeito. Os franceses, como se vê, também apassivam o verbo com o pronome se. Lê-se no Dicionário da Academia, definição de pronome: “Celle des parties de oraison qui se met a la place du nom”.Evidentemente, se não é sujeito nesta frase. O sujeito é qui. (BARRETO, 1982 : 92, grifos do autor, )

Por qualificar as frases em que inexiste a concordância do verbo com o sujeito passivo, ente afetado pela ação, como incorretas, há a adoção do viés prescritivista. Entretanto, por comprovar cientificamente sua afirmação, desvendando a origem do fenômeno, o viés lingüístico também é adotado. Em Barreto, esses pontos de vista são complementares.

A análise de Barreto
frente às análises das gramáticas pedagógicas.

Em 1924, Francisco Augusto Pereira Junior faz publicar uma gramática pedagógica na qual trata, entre outras coisas, do tipo de frase em questão.

Após tratar dos pronomes relativos, o autor acrescenta uma nota na qual afirma haver um erro absurdo em frases como “ (...) ‘Mão alguma tocou o ether...demonstra-se-o, não se o mostra’ (...)” (PEREIRA, 1924:.139). Este tipo de frase, segundo o gramático, é “(...) puro gallicismo (...)” (idem). Explica, então, que o “se” é apassivante e está no caso oblíquo, motivo pelo qual não pode funcionar como sujeito. Ao final da explicação, o gramático remete o leitor para o capítulo X.

Nesse capítulo, o autor propõe que a partícula “se” pode funcionar como sujeito. Tal possibilidade é ilustrada pelo seguinte exemplo e respectiva explicação :

(...) Assim se era amado, porque se amava; e se amava, porque era amado”.Explanação: Neste exemplo, se era amado, se é sujeito paciente. Agora, nos dois outros casos - se amava é = era amado e se é apassivante. (PEREIRA, 1924: 483 e 484, grifos do autor)

Logo em seguida, Francisco Pereira faz uma advertência na qual assevera que usar a partícula como sujeito “(...) é francezia, é gallicismo” (idem) e opina: “com E.Pereira, diremos que os puristas andarão bem si evitarem um tal uso, mal acommodado aos factos de nossa língua”( idem). Reproduz, então, um trecho de uma obra de Aulete no qual a utilização do se como sujeito correspondente ao on francês é qualificada como “ ‘(...) errada, absurda e contraria a todas as regras e ao espírito da língua (...)’ ” (idem).`

Em comum com Barreto, o gramático ora estudado fornece uma explicação baseada na hipótese do entendimento do “on” como equivalente à partícula apassivadora “se” por parte dos usuários de língua portuguesa. Entretanto, à diferença do filólogo, o autor não fornece a fonte de seus exemplos, é algo contraditório em sua explicação, e não menciona as regras de concordância.

Considerando que seu discurso deixa entrever um posicionamento claramente purista, pode-se dizer que sua atitude é bem mais categórica.

Napoleão Mendes de Almeida, em sua Gramática Metódica da Língua Portuguesa, em edição de 1961, já conforme a N.G.B., utiliza os mesmos argumentos usados por Barreto.

O uso de “se” como sujeito recebe a qualificação de função francesa:

(...) Sempre se o vê, Louva-se os juízes [...] Essas construções constituem puros francesismos: nelas o se está exercendo a função do on francês (palavra que nessa língua exerce função de sujeito), em desobediência à tradição do português e ao étimo do nosso se. (MENDES, 1961:196 e 1977, grifos do autor)

Alhures, Napoleão faz outras referências a construções com “se”, consideradas erradas por não obedecerem às regras de concordância:

Na oração: “Alugam-se casas” [...] O verbo é passivo, e essa passividade é indicada pelo pronome se. A oração “Alugam-se casas” é idêntica à oração “Casas são alugadas”; em ambas o sujeito é casas, que, pelo fato de estar no plural, deverá levar também para o plural o verbo; dizer “Aluga-se casas”é erro igual a dizer Casas é alugada”. Constituem, conseguintemente, erros inomináveis, construções como: “Vende-se livros usados”- “Conserta-se relógios” - “Reforma-se chapéus”. (MENDES,1961: 188, grifos do autor).

Haja vista que Napoleão faz referência aos argumentos utilizados por Barreto, sem, contudo, fazer uso integral das explicações fornecidas pelo filólogo, é possível concluir que a Gramática Metódica da Língua Portuguesa apresenta uma síntese do conhecimento produzido por seus antecessores.

Em todas as gramáticas ora analisadas, há referência à língua francesa e à sua influência no vernáculo. No período em que as obras foram publicadas, o estudo da língua francesa fazia parte da grade curricular de ensino no Brasil, haja vista ser a mais utilizada no comércio e na diplomacia.

Após a 2a. Guerra Mundial, o idioma dos vencedores ganhou a primazia, tornando-se hegemônico.Como resultado desta transformação, a língua inglesa começou a ser estudada nas escolas brasileiras como língua estrangeira.Outra mudança importante no ensino foi a retirada da língua latina do currículo e a unificação do ensino médio.

Nesta mesma época, a Lingüística foi implantada como componente curricular dos cursos de graduação em Letras, resultando numa mudança nos paradigmas de cientificidade dos estudos lingüísticos que logo se fez sentir nas gramáticas publicadas posteriormente: o ponto de vista diacrônico e os métodos da Lingüística Comparada foram abolidos.

A gramática de Faraco e Moura e a de Terra & Nicole foram elaboradas com base nestes novos paradigmas e de acordo com os currículos vigentes até a implementação dos Parâmetros Curriculares Nacionais a partir de 1997.

Na gramática de Faraco e Moura (1990), os autores informam que, em frases nas quais a partícula “se” está presente, a classificação do sujeito torna-se difícil. Em seguida, exemplificam dois casos distintos: o de “se” partícula apassivadora e o de “se” índice de indeterminação do sujeito. No primeiro caso, o verbo varia em número de acordo com o sujeito passivo, no segundo, permanece na 3a. pessoa do singular. A explicação fornecida fundamenta-se em regras de concordância, sendo que frases do tipo “Aluga-se casas” são descritas como “exemplos de infração”:

(...) Discutiu-se o projeto [...] Discutiram-se os projetos [...] o se é partícula apassivadora , e o verbo está na voz passiva sintética, concordando com o sujeito. Veja a transformação das frases para a voz passiva analítica: O projeto foi discutido.[...] Os projetos foram discutidos.[...]. A língua coloquial e mesmo a literária registram exemplos de infração [...]: . de longe se via os bichos bodejando no capim... (J.J.Veiga) Aluga-se casas. (Folha de S.Paulo). (FARACO e MOURA, 1990: 317, grifos do autor,)

Comparando essa gramática com a análise de Barreto, percebe-se, de imediato, a ausência de referência à língua francesa e de qualquer explicação esclarecedora sobre o que os autores classificam como infração. O único ponto em comum com a explicação fornecida pelo filólogo refere-se à utilização da Sintaxe de concordância verbal e do teste de conversão. Na bibliografia apresentada ao final da obra consta a terceira edição de Novos Estudos da Língua Portuguesa de Mário Barreto.

Dado que a gramática de Faraco e Moura limita-se a apresentar uma regra e, logo em seguida, comprova haver infrações a ela, a explicação como um todo fica incoerente.

Na obra pedagógica de Terra e Nicole (1996), há, em apêndice, um capítulo dedicado às funções do “que’ e do se”. Nesse capítulo, há uma explicação sobre as características do “se” partícula apassivadora e do “se” índice de indeterminação de sujeito. No primeiro caso, a explicação baseia-se na transitividade verbal e na possibilidade de conversão da frase à voz passiva analítica. No segundo, observa-se a invariância do verbo na terceira pessoa do singular:

(...) partícula apassivadora: quando se junta a verbo que pede objeto direto, apassivando-o. Alugam-se casas na praia. Divulgou-se o resultado da prova. Observação: Quando a palavra se funcionar como partícula apassivadora, teremos uma oração na voz passiva sintética, sendo sempre possível sua conversão para a voz passiva analítica. Observe: Casas na praia são alugadas. O resultado da prova foi divulgado.[...] índice de indeterminação do sujeito: quando se junta a um verbo que não é transitivo direto, tornando o sujeito da oração indeterminado. Precisa-se de pedreiros. Vive-se muito bem naquele lugar. Observação: Quando a palavra se for índice de indeterminação do sujeito, o verbo estará sempre na terceira pessoa do singular. TERRA e NICOLE, 1996 :.242 e 243, grifos do autor )

Salvo o recurso à conversão, não há ponto em comum com Barreto, cujas obras, de acordo com a bibliografia anexada ao fim da obra, não foram consultadas. Não há nenhuma referência a frases do tipo “Aluga-se casas” o que faz da questão um ponto omisso de sua gramática.

No prefácio a Factos da Língua Portuguesa, Silva Ramos apontara dois motivos pelos quais havia muitas dúvidas a respeito do uso correto do vernáculo: muitas gramáticas apresentavam uma doutrina inconsistente e outras ignoravam a língua viva do dia a dia. São inconsistentes a explicação fornecida por Francisco Pereira e a proposta por Faraco e Moura. Terra e Nicole, por sua vez, são como diria Ramos “gramáticos segregados”por não reconhecerem a existência do tipo de frase em questão.

Dadas as falhas que ainda hoje as gramáticas pedagógicas apresentam, a explicação esclarecedora de Mário Barreto continua sendo necessária, embora não trate da manutenção da produtividade deste tipo de frase após a diminuição da influência da língua francesa entre nós.

A utilização de frases na voz passiva sintética com verbo no singular e sujeito no plural nos dias de hoje foi evidenciada por Camacho num artigo publicado em 2000 no qual apresentam-se dados extraídos do corpus utilizado pelo Projeto NURC. Analisada a freqüência desse tipo de frase, que ele qualifica como frases impessoais, o lingüista conclui que “(...)a preferência estatística por construções impessoais no singular é certamente um indício claro de que se acha subjacente algum tipo de interpretação sintática relevante(...)” (CAMACHO, 2000: 466).

Com base em oriundos no Ensaio de Semântica de Bréal (1992), propomos a seguinte análise que visa explicar a continuidade do uso das chamadas “construções impessoais no singular”.

Segundo o criador do termo semântica, há dois tipos de percepção: uma conforme a história da língua, elaborada pelos lingüistas e outra conforme o uso atual da língua, criada pelo povo a qual se dá a designação falsa percepção, falsa apenas do ponto de vista da história. (BRÉAL, 1992:51)

Segundo a percepção histórica, a impessolidade numa frase com “se” era percebida a partir do seguinte expositor (unidade lingüística portadora de informação gramatical): verbo intransitivo ou transitivo indireto na 3a. pessoa do singular. A passividade em frases em que também havia partícula “se”,por sua vez, era percebida por outros expositores, a saber: verbo transitivo direto e concordância desse com o sujeito gramatical.

Devido ao modo como a língua francesa foi compreendida pelos usuários do vernáculo, houve a produção de frases com a partícula “se” e verbo transitivo direto no singular mesmo se o sujeito estivesse no plural.

A criação dessa nova construção originou uma percepção em desacordo com a histórica. Esta “falsa percepção”, aos poucos, foi promovendo uma mudança na percepção das frases formadas pela partícula “se”, mudança que não está mais relacionada à influência da língua francesa, mas sim ao processamento semi-inconsciente da linguagem pelos falantes, à “vontade” a que se refere Bréal em seu ensaio.

A presença de “se” e a existência de verbo na terceira pessoa do singular tornaram-se, então, expositores de impessoalidade, originando a criação de uma regra nova pela qual a produção de uma frase impessoal dá-se pelo uso da partícula e do verbo invariavelmente na terceira pessoa do singular.A adoção dessa nova regra explica a atual produtividade de o que Napoleão designara como a “função francesa do se”.

Referências Bibliográficas

ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática Metódica da Língua Portuguesa, 13a. ed. São Paulo: Saraiva, 1961.

BARRETO, Mário. Factos da Língua Portuguesa. 3a.ed, fac-similar, reproduzida da 1a.ed,de 1916. Rio de Janeiro: Presença, 1982.

BRÉAL, Michel. Ensaio de Semântica. São Paulo: Pontes/Educ, 1992[3ª ed.,1904}.

CAMACHO,Roberto Gomes. “É a sentença impessoal uma construção de voz?” Estudos Lingüísticos, São Paulo, v.29, p.462- 467, 2000.

FARACO, Carlos Emílio e MOURA,Francisco Marto de. Gramática.Fonética e Fonologia. Morfologia. Sintaxe. Estilística, 4a. ed., ver. e ampl.. São Paulo: Ática, 1990.

PEREIRA, Francisco Augusto Júnior. Grammatica Pratica.Curitiba: Empreza Graphica Paranaense, 1924.

TERRA, Ernani e NICOLE, José De. Gramática & Literatura para o segundo grau, 6a. ed . São Paulo: Scipione, 1996.

RAMOS, Silva, “No Adito”. In BARRETO, Mário. Factos da Língua Portuguesa. 3a.ed, fac-similar, reproduzida da 1a.ed,de 1916. Rio de Janeiro: Presença, 1982, p.V a XVII.