MARCAS IDEOLÓGICAS DO SUJEITO DA
ENUNCIAÇÃO
NA SELEÇÃO E COMBINAÇÃO LEXICAIS
DAS MANCHETES JORNALÍSTICAS
Patrícia Ribeiro Corado (UERJ)
A linguagem se constitui como um fenômeno complexo e multifacetado e, portanto, seu estudo obriga a olhar para dentro e para fora do discurso por/com ela produzido, exigindo assim atenção para os mecanismos internos de produção e para o efeito de sentido efetivamente produzido no processo de interlocução.
O trabalho que aqui se apresenta pretende analisar os mecanismos de seleção e combinação de unidades léxicas nas manchetes jornalísticas de “O Globo” e do “Jornal do Brasil”, procurando entender as causas e efeitos dessas escolhas. Em outras palavras, o que se buscará é conhecer, por meio das escolhas lexicais que se verificam na materialização textual do discurso, as tendências ideológicas e interesses políticos determinantes na produção discursiva, bem como a realidade criada a partir desse produto e através dele difundida socialmente, considerando sempre o grande alcance e poder de aceitação pública da comunicação jornalística.
Comunicar é sempre uma forma de agir sobre o mundo. No exercício de nossa ação comunicativa, pretendemos de alguma forma agir sobre o outro, daí considero a comunicação como um jogo de interação, que se dá desde os discursos mais cotidianos e familiares até aqueles de grande repercussão social, como é o caso do discurso jornalístico.
Se nesses discursos são reproduzidas formações discursivas dominantes, ele, certamente, reforça socialmente as estruturas de dominação. Por outro lado e pelos mesmos motivos, se os discursos veiculados pela imprensa contrariam as formações discursivo-ideológicas dominantes, passam a fragilizar as estruturas sociais de dominação.
Não se trata de acreditar que o discurso é capaz de transformar estruturas sociais, mas de não ignorar que essas estruturas e as relações por elas criadas se originam e se sustentam discursivamente, podendo a linguagem ser instrumento de libertação ou de opressão, de mudança ou de conservação.
I - As relações de poder e dominação
e sua constituição pela linguagem
A linguagem, como instrumento da comunicação, e, em especial, a língua, como instrumento da comunicação humana, estão a serviço do poder que se estabelece em nossas relações e de todos os desdobramentos oriundos desse poder.
Ao longo da história da humanidade, cada sistema de dominação cria discursos que o sustentem e até justifiquem. É interessante observar que o poder encontra, na palavra, mecanismos para se manter sem o uso da força, uma vez que o poder não é necessariamente um espaço que se ocupa, mas principalmente uma relação que se cria. Dessa maneira, a palavra amplia a relação de poder na medida em que funciona como instrumento para a obtenção de apoio, adesão, submissão.
Na sociedade contemporânea, com a divulgação do discurso democrático, o poder da palavra torna-se cada vez maior e mais absoluto. Nas relações sociais, tem o domínio aquele que melhor articula a palavra a fim de garantir esse domínio, e isso ocorre em quaisquer tipos de relações, desde as conjugais e familiares até as políticas em âmbito mundial. Quando o discurso do dominador perde força, a relação de dominação se fragiliza.
Percebe-se então que a palavra se torna mais poderosa na mesma medida em que a sociedade se democratiza em todas as suas relações. Um pequeno exemplo disso está nas relações entre pais e filhos ou professores e alunos. A existência de hierarquia nessas relações ainda guarda suas evidências, entretanto, dia a dia, a força cede espaço ao diálogo nesse jogo de poder.
Se considero que pela palavra o poder se constrói, estabelece e fortifica e que o discurso democrático torna esse poder-palavra cada vez maior, obrigo-me a certas reflexões acerca das estruturas de poder às quais estamos, portanto, submetidos.
Convém lembrar que todo sistema de dominação historicamente cria discursos que o justifiquem. Assim, o que temos contemporaneamente é o discurso democrático do direito à palavra sustentando um sistema de dominação no qual aquele que melhor manipula, articula e usa a palavra em benefício de seus interesses tem o poder. A linguagem/língua não é mais a expressão do poder e da dominação, ela se constitui como o próprio poder e dominação.
Isso parece simples, mas socialmente os resultados desse jogo de poder são perigosos já que a mesma palavra que se constitui como poder e dominação é instrumento de alienação do dominado, que, por se imaginar numa relação democrática, não percebe sua condição. Essa alienação é estratégica, uma vez que, como afirmava Paulo Freire “o homem que percebe o seu condicionamento é o único capaz de superá-lo”. Isso significa que o poder que se estabelece via palavra é mais dificilmente subvertido justamente porque não permite ao dominado ver-se como tal, já que este dá-se, pela palavra, como persuadido, (con)vencido.
Obviamente não se trata de defender o autoritarismo da força, mas de entender a construção dessa linguagem pela qual nossos mundos se criam, recriam, nossas realidades se contam, recontam, fazendo surgir imagens, idéias, verdades, modos de ver e conceber o mundo e a realidade. Compreender a palavra-poder é entender mais a construção das relações em que estamos envolvidos e os mecanismos que nos tornam submissos ao poder que se estabelece nos espaços dessas relações.
II - O papel / poder da imprensa
A contaminação ideológica da linguagem não é exclusiva de um ou outro tipo de discurso, ela é, ao contrário, característica do discurso em si. Em maior ou menor grau, toda ação discursiva tem por objetivo a conquista da adesão alheia, seja para a persuasão, para o convencimento, para uma concessão ou simplesmente para a aceitação. Isso significa que o nosso dizer tem sempre como objetivo influenciar, o jogo da interlocução é um jogo de sucessivas interferências provocadas nos e pelos sujeitos nele envolvidos.
Entendendo que todo uso que se faz da linguagem é ideológico, quer influenciar e produz sentidos igualmente ideológicos, não se pode imaginar que a informação que nos chega via imprensa seja a simples reprodução do real. A linguagem não se presta a isso! Assim, mesmo que fosse intenção da imprensa veicular um discurso isento, neutro, objetivo, isso seria impossível. Além do mais, acredito que seria ingenuidade acreditar nessa intenção.
A sociedade em que vivemos conta com a possibilidade de acesso a um volume enorme de informações. É possível saber, com muita rapidez, o que acontece em qualquer parte do mundo, desde que seja interessante que saibamos. A imprensa é um grande filtro, a intermediária entre o fato e a versão que dele nos é contada, e essa versão chega carregada de tendências político-ideológicas que são absorvidas pelo grande público sem que ele se dê conta disso. Nesse caso, quando palavra e poder já se tornam uma única coisa e há nos poderosos da palavra a intenção de sustentar o seu poder, a ideologia não está mais apenas na sedimentação entre pensamento, discurso e mundo; ela está, estrategicamente, na forma como a linguagem é manipulada para que as versões contem apenas aquilo que “importa” dos fatos, mas não deixem jamais de ser caracterizadas e entendidas como o próprio fato. Assim, além do poder da palavra, manipulada e bem articulada que fecunda mais poder, a imprensa tem também o poder da informação, do conhecimento da realidade. Isso só é possível porque um dizer nunca é somente uma informação, nele estão envolvidos processos de subjetivação, de argumentação, de construção do real.
Quando se pensa em linguagem, a primeira coisa que vem em mente é comunicação, mas, freqüentemente, no discurso jornalístico, temos a linguagem a serviço da não-comunicação, do não-conhecimento. O que pretendo neste tranalho é, através do confronto de escolhas lexicais feitas por “O Globo” e pelo “Jornal do Brasil”, compreender os processos de significação presentes nos textos das manchetes desses jornais, procurando desvelar outros sentidos ali presentes e o modo como eles se constituem. Sobretudo, o que pretendo é mostrar que as escolhas lexicais não são ingênuas ou aleatórias, elas revelam um sujeito discursivo, sua visão de mundo e seus interesses num jogo interlocutivo em que ele detém o poder.
III - A manchete e sua importância comunicativa
São vários os fatores que dão à manchete uma enorme carga comunicativa. Entre eles destaco o grande volume de notícias dos jornais associado à brevidade das manchetes, que são consideradas como o que há de mais importante entre o que é noticiado na edição. As letras grandes, chamativas, atraem a atenção do leitor e dão conta de informá-lo rapidamente sobre o fato noticiado. Além disso, é geralmente pela manchete que o leitor seleciona aquilo que ele vai ou não ler, ou seja, a leitura de todo o texto da notícia é determinada pela atração que a sua manchete exerce sobre o leitor.
Há uma sintaxe específica que rege a construção dos textos de manchetes, que devem, em tese, ser claros, densos e concisos. Manuais de redação e estilo de muitos jornais orientam, por exemplo, o uso de, no máximo treze palavras, recomendam ainda que se evitem artigos e adjetivos. Entretanto, o que se percebe numa análise mais atenta é que todas essas regras podem ser ignoradas quando a intenção comunicativa assim determinar. Em outras palavras, o efeito de sentido que se deseja produzir se sobrepõe a essas regras, avalizando eventuais transgressões.
A seleção lexical que fazemos em nossos discursos mais cotidianos é capaz de nossas trajetórias, experiências, nossas posições diante do mundo, nossa forma de ver e sentir a vida e a realidade. No discurso jornalístico, especialmente num discurso com o potencial comunicativo das manchetes jornalísticas, a análise atenta da seleção lexical permite ler muito mais. Como apresentarei mais adiante, a intensidade de significação em palavras sinônimas, a substituição de determinadas palavras por outras, a presença ou ausência de uma palavra podem tornar uma manchete mais ou menos agressiva, podem atenuar ou agravar uma notícia, podem encobrir certas informações e revelar outras, podem veicular implícita ou explicitamente juízos de valor etc.
O meu interesse é, portanto, fazendo uso desse rico material discursivo que são as manchetes de “O Globo” e do “Jornal do Brasil”, buscar nas escolhas lexicais marcas da ideologia do sujeito desse processo enunciativo, entendendo que essa ideologia nasce na produção discursiva, mas a extrapola, indo poderosamente até a produção de efeitos de sentido no interlocutor, que nesse caso é diariamente um grande contingente social.
IV - Análise do corpus
Tomo como corpus de análise para o presente trabalho manchetes dos jornais “O Globo” e Jornal do Brasil”, colhidas no período entre 30 de junho de 2003 e 18 de fevereiro de 2004.
No dia 30 de julho de 2003, sobre os resultados da greve do judiciário, os jornais noticiam em suas manchetes o seguinte:
ACORDO LIMITA SALÁRIOS DO JUDICIÁRIO
(Jornal do Brasil)
ACORDO ELEVA SUBTETO E GREVE DEVE SER SUSPENSA
(O Globo)
É bastante expressivo o contraste que se observa na construção textual das manchetes apresentadas. Enquanto o “Jornal do Brasil” opta pelo verbo “limita”, apontando o governo como negociador forte no acordo com o Judiciário, “O Globo” prefere o verbo “eleva”, sinalizando em sentido oposto, isto é, colocando o governo na posição daquele que cede na negociação, o que é reafirmado na possibilidade de suspensão da greve dos juízes, ou seja, suas exigências foram atendidas. A manchete de “O Globo” também aponta para o mau gerenciamento de recursos públicos, fator que aumentaria o desequilíbrio e a injustiça social tão condenados pelos líderes do atual governo quando ocupavam o papel de oposição política. Essa leitura se justifica por que o suposto aumento seria para salários que popularmente, por influência da própria imprensa, já são considerados altos.
Quanto ao “Jornal do Brasil”, o efeito de sentido provocado por sua manchete de primeira página é reforçado pela seguinte manchete interna: SUPERSALÁRIOS COM OS DIAS CONTADOS. A construção lexical “supersalários” remete aos abusos feitos com o dinheiro público. Ao apresentá-la como núcleo desse sintagma nominal, o Jornal do Brasil apresenta ao público uma visão positiva do governo, que, por essa leitura, atua para a moralização e pelo uso mais justo de verbas públicas.
Sobre as negociações para a reforma da Previdência, as manchetes de 14 de agosto de 2003 eram as seguintes:
GOVERNO CEDE E CONCLUI APROVAÇÃO DA REFORMA
(Jornal do Brasil)
GOVERNO CEDE NOVAMENTE PARA CONCLUIR REFORMA DA PREVIDÊNCIA
(O Globo)
A primeira oração é praticamente a mesma nas duas manchetes, não fosse o uso do advérbio “novamente”, que, referindo-se ao verbo “cede”, acrescenta um certo ar de fragilidade ao sujeito (no caso “Governo”). Outra diferença interessante nessas manchetes que, aparentemente, dizem a mesma coisa, está na escolha dos conectivos. Enquanto o “Jornal do Brasil” usa uma conjunção com carga semântica imprecisa (e), que, nesse contexto, pela relação de sentido observada entre as orações, sugere conseqüência, “O Globo” faz a conexão entre as orações com a preposição “para” seguida de verbo no infinitivo, passando a clara idéia de finalidade, a primeira ação é realizada em função da segunda, o que aumenta o já citado caráter de fragilidade do governo que vem sendo sugerido pelas manchetes desse jornal.
Em 17 de outubro de 2003, em relação à viagem da então ministra Benedita da Silva à Argentina, o que se observa é uma postura bem menos complacente de “O Globo” do que do “Jornal do Brasil”, que noticia o caso bem mais moderadamente, tirando do partido da ministra responsabilidades sobre a sua suposta ação irregular:
PT PRESSIONA BENEDITA A DEVOLVER DINHEIRO
(Jornal do Brasil)
BENEDITA SE RECUSA A ADMITIR ERRO
(O Globo)
A escolha de “pressiona” para a construção que se lia no Jornal do Brasil isenta o PT de eventuais responsabilidades no uso indevido de verbas públicas por Benedita da Silva, e libera o partido de críticas baseadas na velha máxima “dois pesos e duas medidas”. Por outro lado, pela leitura de “O Globo”, a irregularidade no uso da verba pública já parece ter sido comprovada. Ao usar o verbo “admitir”, tendo como complemento o substantivo “erro”, o enunciador produz com seu discurso um efeito que sugere a existência do erro como fato, cujo conhecimento ele (enunciador) compartilha com o leitor e com o próprio sujeito da oração (Benedita).
Na edição de 25 de outubro, noticiando a retirada dos celulares dos agentes policiais do Rio de Janeiro em função de denúncias de que os telefones serviriam para comunicação entre bandidos e policiais, que “venderiam” informações relativas às ações de repressão ao tráfico, percebe-se uma diferença significativa entre as informações veiculadas pelas manchetes dos jornais analisados:
UMA POLÍCIA SEMPRE SOB DESCONFIANÇA
(O Globo)
SEM CELULAR, 550 POLICIAIS ATACAM O TRÁFICO
(Jornal do Brasil)
Sem omitir o problema expresso pelo termo “sem celular”, mas também sem explicitar os motivos dessa falta, o Jornal do Brasil, com o uso do verbo “atacar”, produz um efeito de sentido de polícia em ação.
Bem diferente é a abordagem feita por “O Globo”. A associação das unidades lexicais “polícia” e “desconfiança”, intermediada e enfatizada pelo advérbio “sempre”, traz consigo um juízo de valor altamente negativo e que é absorvido e reproduzido socialmente. A página 15 desse jornal é integralmente dedicada a essa notícia e sua manchete retoma a palavra “desconfiança”, agora acompanhada de um adjetivo que aumenta ainda mais o impacto de seu efeito: DESCONFIANÇA MÁXIMA é a manchete dessa página, que traz ainda outra manchete: ESTE ANO, 25 POLICIAIS CIVIS PRESOS POR ROUBO, EXTORSÃO E RECEPTAÇÃO.
As unidades léxicas “roubo”, “extorsão” e “receptação” contribuem para a progressão da leitura de desmoralização e para o descrédito da polícia do Rio de Janeiro. Outro elemento interessante é a explicitação do adjunto adverbial (este ano), que, nesse caso, não apenas expõe a circunstância de tempo capaz de proporcionalizar o número de ocorrências (25) como alto, como atribui responsabilidade ao governo que assumiu o estado naquele ano.
Quando da visita do presidente norte-americano George W. Bush ao Iraque sob a alegação da ceia do Dia de Ação de Graças, muitas especulações podiam ser feitas, inclusive relacionadas à veracidade do fato divulgado exclusivamente pelas agências internacionais de notícias. Mas, como o que interessa aqui é mais precisamente a análise da informação que chega até nós, seus mecanismos de construção e efeitos de recepção, vejamos as abordagens de “O Globo” e do “Jornal do Brasil” no dia 28 de novembro de 2003:
BUSH FAZ VISITA DE SURPRESA A TROPAS EM BAGDÁ
(O Globo)
BUSH FAZ VISITA CLANDESTINA AO IRAQUE
(Jornal do Brasil)
O elemento usado como determinante do objeto direto revelam avaliações bastante distintas em relação ao caráter da visita. Uma visita de surpresa pressupõe algo agradável ou, pelo menos, feito na tentativa de agradar, já uma visita clandestina pressupõe algo com interesses pouco claros e traz consigo uma avaliação negativa de seu agente. Contribui para essa leitura o complemento do termo “visita”, que no caso de “O Globo” são as tropas que estão em Bagdá, sugerindo assim solidariedade e reconhecimento por parte do presidente, enquanto no “Jornal do Brasil” é o próprio Iraque, país que sofre ao longo da história mais recente com guerras comandadas por Bush (pai e filho).
Ainda na edição de “O Globo” de 28 de novembro de 2003, temos na primeira página a seguinte manchete, referente ao escândalo dos gafanhotos e o suposto envolvimento do governador Flamarion Portela:
GOVERNADOR PETISTA TAMBÉM É SUSPEITO
(O Globo)
O determinante “petista” não tem nesse enunciado a simples função de designar o governador de quem se trata, mas trazer ao debate público a relativização da lisura do PT e de seus integrantes. O “Jornal do Brasil” faz, nesse caso, do silêncio o seu discurso, também altamente ideológico, não noticiando o fato, que só aparece em edições posteriores após maiores averiguações. Interessante observar que “O Globo” não está noticiando informações passíveis de questionamento, não é falsa a notícia, até porque esse jornal apenas diz que o governador é “suspeito”, desse modo traz ao debate popular as questões já mencionados sem no entanto se comprometer, já que guarda consigo o argumento de que um suspeito não é necessariamente um culpado.
É interessante observar que, ao longo do primeiro ano do governo Lula, apesar dos confrontos até aqui apresentados, ambos os veículos analisados mantiveram posturas de certo modo comedidas. Os posicionamentos ideológicos são até aqui apresentados de maneira sutil, embora, como pudemos observar, tenha havido até então maior complacência do “Jornal do Brasil” na forma de abordar questões que pudessem comprometer a atuação do então novo governo do Brasil. “O Globo”, apesar de não manifestar qualquer interesse em fazer oposição clara ao governo, o que não é historicamente a sua linha de atuação, apresenta uma postura mais denuncista em relação ao PT, trazendo ao público abordagens capazes de colocar em xeque a transparência e a competência administrativa do partido esquerdista em posição de governo.
Nesse contexto, entender a diferença entre o governo e o PT é fundamental para que se consiga analisar eficientemente o discurso produzido pela imprensa nesse momento histórico.
O segundo ano do governo Lula já vem apontando modificações significativas nos discursos dos veículos analisados. Isso se deve possivelmente a uma mudança de postura do próprio governo, ou melhor, à consolidação de uma postura que já vinha sendo anunciada ao longo do primeiro ano e que muitos preferiam não conceituar com avaliações mais seguras e/ou críticas mais contundentes por não quererem incorrer no erro da precipitação.
Mais precisamente após a reforma ministerial, o governo Lula apresenta-se com pouca disposição para mudanças radicais, o que, se por um lado, contraria aqueles que o apoiaram com expectativas de transformações nos quadros social, político e econômico, por outro, agrada àqueles que, pelos motivos mais diversos, temiam tais mudanças.
Assim. No dia 18 de fevereiro de 2004, em relação ao primeiro escândalo do ano envolvendo o governo Lula, lia-se:
PF APURA AÇÃO DE CORRUPTO NO PLANALTO
(Jornal do Brasil)
PF VAI INVESTIGAR ATUAÇÃO DE WALDOMIRO NO GOVERNO
(O Globo)
Observe-se que o “Jornal do Brasil”, além de usar um verbo no presente, o que produz um efeito de maior certeza se confrontado com a idéia de futuro na locução “vai investigar”, expressa já na manchete um juízo de valor negativo e contundente a respeito do funcionário do governo.
A seleção da unidade léxica “corrupto” traz para o leitor a informação acompanhada da opinião, da avaliação já realizada. O uso do nome próprio “Waldomiro” não compromete o jornal como enunciador e não oferece ao leitor esses mesmos juízos de valor. É a contundência da acusação versus a moderação discursiva.
Em edições de fevereiro e março de 2004, por dias consecutivos as edições do “Jornal do Brasil” trazem suas notícias referentes ao executivo federal intituladas por:
CORRUPÇÃO NO PLANALTO
Assim, poderia dizer que a reforma ministerial foi um fator político que inverteu o posicionamento dos jornais analisados em relação ao governo Lula. É como se, após um ano e a partir do caso Waldomiro, o “Jornal do Brasil” estivesse começando a se rebelar contra um governo que tinha nesse veículo um aliado.
Certamente são muitos os fatores que determinam o conteúdo discursivo veiculado pelos jornais e vão desde os aspectos mais particulares e ligados, por exemplo, à participação política de membros ligados ao jornal ou ao apoio financeiro oferecido pelos órgãos do governo a essas empresas por meio de veiculação de matérias oficiais, até questões de ordem mais propriamente social e coletiva.
Procurei com essas breves análises que passaram por fatos ligados ao Estado do Rio de Janeiro, ao Brasil e ao mundo comprovar que a ideologia invariavelmente é determinante do discurso, deixa nele suas marcas e que não há discurso sem alguma intenção comunicativa. Busquei, sobretudo, de alguma forma, colaborar para a formação de leitores mais críticos e atentos porque acredito que o exercício real da cidadania dependa disso.
V - Conclusão
O homem, como ser provido de razão e intenção, constantemente cria, avalia, julga, critica, construindo o real e atribuindo a ele juízos de valor. O discurso não é apenas manifestação desses processos; é, sobretudo, uma tentativa de influir sobre o outro a partir das suas construções do real e juízos acerca dele. Isso porque o discurso é uma ação verbal dotada de intencionalidade.
Não pretendo, com este trabalho, reduzir o discurso à ideologia, mas não é possível ignorar que os valores passam pela concepção do real e que, portanto, o discurso provém de visões de mundo e as divulga socialmente. Isso equivale a dizer que a todo e qualquer discurso subjaz uma ideologia que é, por esse mesmo discurso, veiculada a fim de influir sobre o outro no processo interacional.
Diante disso, concluo que a neutralidade é apenas um mito. Mesmo que se imagine um discurso que se pretenda neutro e isento, buscando omitir ao máximo a presença do sujeito discursivo não consegue fazê-lo, já que sua marca ideológica estará lá: a da omissão. Até mesmo o silêncio é uma forma ideológica de discurso.
O trabalho jornalístico de apresentar discursivamente a realidade acontece numa eterna re(a)presentação do real. Informar, nesse contexto, é o mesmo que abreviar, e a seleção dos elementos que irão compor essa abreviação é necessariamente subjetiva e está atrelada a muitos interesses e tendências ideológicas.
Espero que, com este trabalho, tenha conseguido mostrar que as escolhas e combinações lexicais que participam desse poderoso universo interlocutivo não são gratuitas, contribuindo assim para um processo de leitura de mundo baseado no questionamento e na relativização de algumas “verdades”, em especial daquelas que se legitimam pelo simples fato de serem veiculadas por uma imprensa que, dia a dia, torna-se socialmente mais poderosa.
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