A Sintaxe do Dativo no Português

Karla Cristina Iseke F. Bispo (UnB)

 

Introdução

O presente artigo propõe examinar a sintaxe do dativo no português do Brasil, considerando a variação encontrada quanto ao uso do pronome no sintagma preposicionado em oposição à forma cliticizada, bem como a escolha da preposição (cf. (1)).

(1) a. Eu ensinei a tarefa ao/para (o) João.

b. Eu ensinei a tarefa para/a ele.

c. Eu lhe ensinei a tarefa.

Tais fatos são discutidos em uma perspectiva comparada, contrastando-se o português brasileiro (PB) do Rio de Janeiro e da Paraíba, com o português europeu (PE)[1]. Examinamos também contextos em que o dativo preposicionado na função benefactiva, que se caracteriza por não ser subcategorizado pelo predicador da oração[2], apresenta a preposição para+sintagma nominal (SN) categórica[3].

Na análise, adota-se o quadro teórico da gramática gerativa. Na constituição do corpus utiliza-se a metodologia da sociolingüística variacionista/laboviana, o pacote Varbrul (Pintzuk, 1988; Scherre, 1996), um modelo estatístico adequado para calcular esses resultados. O estudo adota, portanto, a abordagem da sociolingüística paramétrica. Segundo Duarte (1999), a sociolingüística paramétrica vislumbra contribuir para o estudo da mudança lingüística, perseguindo ao mesmo tempo a caracterização dos parâmetros propostos no âmbito da Teoria Gerativa.

O artigo está organizado como a seguir: Primeiramente, mostramos os resultados dos dados quantificados no PE e no PB da Paraíba e do Rio de Janeiro. Em seguida, apr,esentamos casos em que o dativo preposicionado na função benefactiva, que se caracteriza por não ser subcategorizado pelo verbo, vem introduzido pela preposição para, sendo essa preposição categórica quando seguida de SN. Na última seção, elaboramos as considerações finais a respeito dos resultados apresentados no decorrer desse estudo.

 

A Codificação do Dativo no PB e no PE

Em nossa pesquisa, delimitamos o fenômeno lingüístico variável a ser analisado da seguinte forma: Nossa variável dependente é eneária, ou seja, variável que apresenta mais de duas variantes, sendo essas variantes os clíticos, a preposição a e a preposição para. Determinamos como grupo de fatores a localização geográfica (Portugal, Paraíba e Rio de Janeiro) e a pessoa gramatical (1ª, 2ª e pessoa)[4].

Nossa amostra está composta de nove falantes naturais de Portugal, dois falantes cariocas natos ou que viveram no Rio de Janeiro a partir dos 2 anos de idade, e dois falantes paraibanos natos (de João Pessoa), ou que moraram nessa cidade desde os cinco anos de idade. Todos os entrevistados cursaram até o ensino médio. A amostra de entrevistas do PE foi coletada no Projeto do Português Fundamental, oficialmente implantado em 1970. A de entrevistas sociolingüística da Paraíba foi coletada através do Projeto de Variação Lingüística no Estado da Paraíba (VALPB), iniciado em 1993. A amostra de entrevistas sociolingüísticas do Rio de Janeiro foi coletada por meio de entrevistas gravadas pelo Projeto Censo, constituída no período de 1980 a 1982.

Os resultados da quantificação com dados do PE e do PB da Paraíba e do Rio de Janeiro estão apresentados nas tabelas abaixo:


 

Tabela 1:
Alternância entre Clíticos, Preposições a/para
em Construções Dativas do Português Europeu.

Fatores

Clíticos

Para

A

Total

1ª pessoa

No de ocorrências

11

0

0

13

%

92%

0%

8%

3ª pessoa

No de ocorrências

9

0

2

10

%

82%

0%

18%

Total

No de ocorrências

20

0

3

23

%

87%

0%

13%

 

Tabela 2:
Alternância entre Clíticos, Preposições a/para
em Construções Dativas da Paraíba.

Fatores

Clíticos

Para

A

Total

1ª pessoa

No de ocorrências

11

0

1

12

%

92%

0%

8%

3ª pessoa

No de ocorrências

1

0

3

4

%

25%

0%

75%

Total

No de ocorrências

12

0

4

16

%

75%

0%

25%

 

Tabela 3:
Alternância entre Clíticos, Preposições a/para
em Construções Dativas do Rio de Janeiro.

Fatores

Clíticos

Para

A

Total

1ª pessoa

No de ocorrências

14

11

0

25

%

56%

44%

0%

2ª pessoa

No de ocorrências

8

6

1

15

%

53%

40%

7%

3ª pessoa

No de ocorrências

0

18

4

22

%

0%

82%

18%

Total

No de ocorrências

22

35

5

62

%

35%

56%

8%

Nas tabelas 1 e 2 temos os resultados referentes ao PE e ao dialeto paraibano. Comparando essas duas variáveis independentes verificamos que, embora haja diferenças no uso da função dativa no PE e no PB, o dialeto falado na Paraíba apresenta algumas semelhanças ao PE. Os resultados revelam-nos que não há ocorrência da preposição para introdutora de dativo no dialeto paraibano, bem como no PE, onde a preposição a é categórica. Constatamos ainda queda no percentual da forma cliticizada no PB da Paraíba, mas, ainda assim, o clítico predomina. No PE a pronominalização é categórica com o clítico.

Os resultados referentes à 1a pessoa do dialeto paraibano apresentam os mesmos percentuais encontrados para a variedade do PE. Entretanto, observamos diferenças nesses percentuais, em relação à média total do uso dessa variante nas duas variáveis independentes (PE e Paraíba). No que se refere à 3ª pessoa, verificamos que, na Paraíba, há perda da forma cliticizada e aumento do sintagma preposicionado, diferentemente do PE. Esses fatos apontam uma mudança em andamento no dialeto paraibano, quando comparado a Portugal. Apresentamos exemplos de fala com a 1a pessoa na função dativa na Paraíba (cf. (2)) e no PE (cf. (3)). Os exemplos da Paraíba com a 3a pessoa estão ilustrados em (4), os do PE em (5):

(2) a. Eu não era uma criança de ficar esperando que alguém me desse alguma coisa. [PB-VALPB p. 126][5].

b. Ela não disse a mim que não acreditava. [PB-VALPB p. 127].

(3) a. Quem me contou foi o tal NP. [PE-PF p. 81].

b. Depois pediu- me a mim para encher as chouriças. [PE-PF p. 105].

(4) a. Eu não sei o que vou dize[ ] a ela. [PB-VALPB p. 132].

b. Ele vai receber aquilo que eu estou lhe oferecendo. [PB-VALPB p. 134].

(5) a Lá tenho eu de lhe ensinar as contas. [PE-PF p. 105].

b. Precisamos dar possibilidade ao povo de se conscientizar. [PE-PF p. 277].

Nas tabelas 1 e 3 temos os resultados do PE e do Rio de Janeiro. Examinando esses resultados, verificamos diminuição acentuada no percentual do uso de clíticos no dialeto carioca, comparado ao PE. Constatamos que existe uma relação entre a queda no percentual dos clíticos e a inserção da preposição para no PB do Rio de Janeiro. Este fato é verificado ainda ao observarmos que houve também queda no percentual da preposição a no dialeto carioca.

Em relação à 1a pessoa, o dialeto do Rio de Janeiro apresenta predominância do clítico. O que diferencia as duas variedades lingüísticas (PB do Rio de Janeiro e PE) é a diminuição no uso da forma cliticizada e da preposição a, no dialeto carioca, em favor da entrada da preposição para, que não é encontrada na codificação da função dativa em Portugal. Abaixo, apresentamos exemplos de construções dativas referentes à 1a pessoa do dialeto carioca (cf. (6)) e do PE (cf. (7)):

(6) a. Toda aquela informação que ele estava me dando. [PB-APRJ p. 98].

b. Não vai ter mais quem pague o clube para mim. [PB-APRJ p. 96].

(7) a. Então dão-me exemplos de jovens que só fazem disparates. [PE-PF p. 204].

b. pediu-me a mim para encher as chouriças. [PE-PF p. 105].

No PE, não encontramos nos dados a função dativa com a 2a pessoa. Já no dialeto falado no Rio de Janeiro, a 2a pessoa codifica essa função fazendo uso do clítico te com percentual de 53%; percentual de 40% para o sintagma preposicionado introduzido pela preposição para; e percentual de 7% para o uso da preposição a. Os exemplos de fala em construções dativas do dialeto carioca referentes à 2a pessoa estão ilustrados em (8):

(8) a. Ah! Eu vou te contar – é trabalhoso demais lá. [PB-APRJ p. 214].

b. Olha, um conselho que eu dou a você. [PB-APRJ p. 216].

c. Olha vou dizer para você como é que se faz. [PB-APRJ p. 217].

Um fato interessante observado nos resultados relacionados à 3a pessoa do dialeto carioca e do PE é que, no PE a pronominalização é sempre com clítico. Já no Rio de Janeiro, não há ocorrência da forma cliticizada de 3a pessoa (lhe), predominando a preposição para com percentual bastante elevado, em relação à preposição a. Os exemplos de fala nas construções dativas do dialeto carioca referentes à 3a pessoa estão ilustrados em (9), os do PE em (10):

(9) a. Ajudar, dar um bom dinheiro para ela sabe? [PB-APRJ p. 219].

b. Ninguém deu valor ao Cláudio Adão no Botafogo. [PB-APRJ p. 99].

(10) a. Lá tenho eu de lhe ensinar as contas. [PE-PF p. 105].

b. Quando um dia tiver um filho dar-lhe-ei a máxima liberdade para ele escolher. [PE-PF p. 120].

c. precisamos dar possibilidade ao povo de se conscientizar. [PE-PF p. 277].

Partindo desse estudo quantitativo, constatamos que está ocorrendo um processo de mudança na sintaxe do dativo no PB, quando comparado ao PE. Esse processo de mudança está mais acentuado no Rio de Janeiro do que na Paraíba, que apresentou resultados próximos aos do PE.

Verificamos que a variação encontrada no PB está condicionada por fatores como a pessoa do discurso: (i) tanto no dialeto paraibano quanto no dialeto carioca, observamos diminuição do clítico da 1ª para a 3ª pessoa e, inversamente, aumento do sintagma preposicionado da 3ª para a 1ª pessoa; (ii) o clítico de 3ª pessoa (lhe) está desaparecendo no PB da Paraíba e do Rio de Janeiro, onde não encontramos nenhuma ocorrência do mesmo no dialeto carioca.

Concluímos que a perda da forma anafórica cliticizada no PB não se resume à substituição pelo sintagma preposicionado: os dados do Rio de Janeiro indicam que a ocorrência da preposição para se relaciona à perda do clítico anafórico. Inversamente, a presença da preposição a se relaciona à ocorrência do clítico (cf. ainda Gomes (2001: 81-96), Berlinck (2001: 159-191) e Torres Morais (2001: 1-19) para uma discussão do fenômeno variável no sintagma preposicionado dativo). Na Paraíba, encontramos uma mudança em andamento, em que ocorre variação entre o clítico e a estrutura preposicionada [a+pronome]. No PE, a relação é categórica: ocorre a preposição a e a pronominalização é feita com o clítico.

 

Dativo com Função Benefactiva

Como foi apontado na seção anterior, constatamos, em nosso estudo, que no PB há variação quanto à preposição introdutora de dativo nas construções bitransitivas. Vimos que as preposições que introduzem esses complementos nessa língua variam entre a e para (cf. (11)), isto é, há a possibilidade de se substituir uma preposição pela outra sem alterar o significado da sentença.

(11) a. Pediu dinheiro a ele para pagar o baile.

b. Pediu dinheiro para ele para pagar o baile.

Contudo, observamos contextos em que há diferenças significativas nas propriedades das preposições a e para no PB. Nas sentenças (12a) e (12b), verificamos distinção semântica quando há alternância entre as duas preposições mencionadas.

(12) a. Solicitei ao Fábio uma festa de despedida.

b. Solicitei para o Fábio uma festa de despedida.

Em (12a), o complemento dativo apresenta papel temático de fonte, sendo interpretada como um pedido para o Fábio fazer uma festa de despedida. Em (12b), temos uma leitura ambígua de benefício ou fonte, em que a interpretação pode ser a de um pedido para o Fábio fazer uma festa de despedida (fonte) ou a solicitação de uma festa de despedida para o Fábio (benefício).

As preposições mostradas em (12a) e (12b) apresentam estatuto categorial diferente. A preposição a no exemplo (12a) é uma preposição gramatical. Funciona como uma marca morfológica de caso, que não seleciona argumentos. Diferentemente, a preposição para em (12b), quando com leitura benefactiva, apresenta estatuto categorial de preposição lexical, que seleciona o argumento SN Fábio.

Como mencionado no início desse estudo, os casos com dativo preposicionado na função benefactiva, que por sua vez não são subcategorizados pelo verbo, vêm introduzidos pela preposição para+SN, não havendo alternância com a preposição a nesse contexto.

Nota-se com isso, que há diferença nas propriedades gramaticais das preposições a e para. Podemos postular que a função benefactiva é codificada pela preposição para quando seguida de SN pleno, distinguindo-se da marcação do dativo em outras línguas como o PE.

 

Considerações Finais

Os resultados da quantificação mostram que, no PE, não há variação quanto à preposição introdutora de dativo, sendo a preposição a categórica nessa função, alternando apenas com a forma anafórica cliticizada dativa. No PB da Paraíba, encontramos uma mudança em andamento, pois a pronominalização pode ser feita na estrutura preposicionada, a qual alterna com o clítico. No PB do Rio de Janeiro, há variação entre as preposições a e para quando introdutoras do sintagma preposicionado dativo, bem como alternância entre a forma preposicionada e a forma cliticizada na pronominalização. Observamos também que, o dativo preposicionado, quando na função benefactiva não é subcategorizado pelo verbo, sendo a preposição para+SN categórica. Nesse sentido, podemos postular que, no PB, a função benefactiva é codificada pela preposição para, quando seguida de SN pleno. A investigação sobre a sintaxe do dativo leva-nos a constatação de que está ocorrendo uma mudança no paradigma das preposições, que, por sua vez, relaciona-se com a perda do clítico dativo no PB, comparado ao PE. Muitos questionamentos permanecem ainda, havendo a necessidade de novas investigações.


 

Referências Bibliográficas

BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. Rio de janeiro: Lucerna, 1999.

BERLINCK, de A. R. Dativo ou Locativo? Sobre Sentidos e Formas do “Dativo” no Português. Revista de Letras, n. 56, p. 159-175. jul/dez. 2001. Curitiba: UFPR, 2001.

BISPO, F. I. C. K. A sintaxe do objeto indireto no português do Brasil. Dissertação de Mestrado. Brasília: UnB, 2004.

GOMES, A. C. Variação e Mudança na Expressão do Dativo no Português Brasileiro. CNPq/UJRJ. Mudança Lingüística em Tempo Real. Rio de Janeiro: Faperj, 2001.

HORA, Dermeval & PEDROSA, Juliana L. Ribeira. Projeto de Variação Lingüística no Estado da Paraíba (VALPB) Volume IV. UFPB/CAPES, 2001.

HORA, Dermeval & CHISTIANO, Elizabeth. Estudos Lingüísticos: Realidade Brasileira. João Pessoa: UFPB, 1999.

MORAIS, M. A. C. R. T. A Preposição e a Caracterização do Objeto Indireto: Aspectos Sincrônicos e Diacrônicos. São Paulo: USP, 2001.

NASCIMENTO, Maria Fernanda Bacerlar, MARQUES, Maria Garcia Lúcia & CRUZ, Maria L. S. Português Fundamental Métodos Documentos. Instituto Nacional de Investigação Científica Centro de Lingüística da Universidade de Lisboa, 1987.

PAIVA, Maria da Conceição de. Programa de Estudos do Uso da Língua – PEUL. Amostras do Português falado no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ/ CAPES, 1999.

PINTZUK, Susan. VARBRUL programs. 1988. inédito.

SCHERRE, P. M. M. & SILVA, De O. M. G. Padrões Sociolingüístico Análise de Fenômenos Variáveis do Português Falado na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1996.


 


 

[1] Este estudo se baseia essencialmente nos resultados alcançados em Iseke Bispo (2004) orientado pela Profa. Dra. Heloisa Salles.

[2] Bechara (1999) chama esse tipo de dativo não subcategorizado pelo verbo, com função benefactiva, de dativo livre.

[3] Cabe considerar a observação realizada pela audiência presente na terceira sessão de comunicação oral do VIII Congresso Nacional de Lingüística e Filologia, de que no dialeto falado no Ceará, a preposição para, introdutora de dativo com função benefactiva, quando seguida de pronome (para+pronome) não é categórica, isto é, pode alternar com a preposição a (cf. (i))).

(i) Lucrecia comprou uma casa a ela.

[4] Não foi controlado o número (singular/plural) para as 1ª, 2ª e 3ª pessoas.

[5] As informações mostradas em colchetes [..], que seguem os exemplos, referem-se à fonte de onde foram extraídos os dados.