ADVÉRBIOS ASPECTUAIS DE VALOR CONECTIVO
Violeta Virginia Rodrigues (UFRJ)
O presente trabalho insere-se no âmbito do Projeto “O Papel de conectivo dos vocábulos em -mente com valor temporal e aspectual” que, por sua vez, integra-se ao Projeto “Ordenação de advérbios temporais e aspectuais no português escrito: uma abordagem histórica”, desenvolvido pela Professora Doutora Maria Maura Cezário. Neste, a pesquisadora analisa a ordenação de advérbios e locuções adverbiais temporais e aspectuais no português escrito no Brasil na fase contemporânea em comparação com a fase arcaica do português, com o objetivo de detectar o que houve de mudança em relação à distribuição desses elementos na cláusula e o que houve de estabilidade no que diz respeito aos processos de natureza cognitiva e de natureza pragmático-discursiva que regulam suas tendências de ordenação. Tal Projeto também prevê uma comparação entre diferentes tipos de textos brasileiros da fase contemporânea, a fim de detectar diferenças nos usos dos advérbios na sincronia atual, que possa ser associada a estratégias relacionadas à estrutura de cada tipo de discurso.
Ambos fazem parte, ainda, de um Projeto Integrado denominado “Ordenação de advérbios no português escrito”, coordenado pelo Professor Dr. Mário Martelotta e os professores nele envolvidos estudam vários tipos de advérbios, sendo os advérbios tradicionalmente chamados de modo com valor temporal e aspectual, e que funcionam como conectivos, o foco deste estudo.
Vale registrar, também, que o interesse pelo tema surgiu em decorrência da co-orientação da Dissertação de Mestrado de Érica Vânia Pianura de Freitas, intitulada A ordem dos itens temporais e aspectuais em -mente. Além disso, o presente trabalho permite retomar o tema advérbios, já abordado na Dissertação de Mestrado intitulada A função dos vocábulos em -mente na fala culta carioca.
Segundo Ilari et alii (1996) e Azeredo (2000), existem advérbios que expressam essencialmente a noção de tempo, como ontem, hoje e amanhã, e outros que atribuem à oração noções aspectuais relacionadas à duração ou à repetição do processo verbal, como constantemente, freqüentemente e sempre. No entanto, muitos advérbios que estes autores classificam como aspectuais nem mesmo figuram nos exemplos das principais gramáticas normativas do português.
Os professores de Língua Portuguesa deparam-se, muitas vezes, com tais advérbios, sendo estes de difícil classificação, pois, como a gramática tradicional não tem a subclasse “advérbios aspectuais”, tendem a classificá-los ora como advérbios de tempo, ora como de modo.
Focalizam-se, portanto, dois aspectos do uso dos advérbios formados com sufixo -mente com valor temporal e aspectual que são aparentemente distintos, mas que uma análise mais atenta revela estarem bastante relacionados: a polissemia que caracteriza seus usos e o fenômeno da gramaticalização.
A falta de correspondência entre a conceituação de advérbio e o comportamento lingüístico dos vocábulos agrupados sob esse rótulo pode ser demonstrada recorrendo-se a duas características bastante recorrentes: 1 ª nem todos os vocábulos em -mente expressam modo; 2ª sob a classe gramatical tradicional de advérbio agrupam-se vocábulos que não apresentam tantas semelhanças assim, a não ser a da invariabilidade. Entretanto, atualmente, nem essa característica é consensual. Moura Neves (2000), em sua Gramática de Usos Português, exemplifica a “flexão” dos advérbios com “menas” e “meia”.
Os dois aspectos antes elucidados servem para estabelecer que, do ponto de vista da flexão - variação sistemática na forma das palavras para a expressão das categorias gramaticais
-, os advérbios relacionam-se com os conectivos (conjunções e preposições), tendo em vista a sua invariabilidade e que, do ponto de vista da derivação, agrupam-se com os nomes e verbos. Assim, advérbio é um vocábulo derivativo, já conjunção e preposição (conectivos) vocábulos não-derivativos (cf. Bonfim: 1988).Com base na relação dos advérbios com os conectivos elucidada anteriormente e na tese de que funcionam como conectores as conjunções, preposições, certos advérbios e as locuções equivalentes a essas classes, a saber, locuções conjuntivas, prepositivas e adverbiais (cf. Fonseca de Oliveira: 2000), pretende-se, neste trabalho, fazer uma descrição dos vocábulos derivados em -mente que funcionam como conectivos textuais e que, originariamente, seriam advérbios de modo com valor temporal e aspectual.
Conectivos são morfemas que têm por função ligar dois enunciados (cf. Maingueneau: 1997) e conectivos textuais, formados por sufixo -mente ou não, elementos capazes de ligar sentenças umas às outras ou segmentos de discurso, principalmente no que se refere ao valor comunicativo.
A identificação de advérbios com características de conectivo já foi objeto de estudo para alguns autores; no entanto, a nomenclatura por eles utilizada nem sempre coincide, como ilustra o quadro a seguir:
AUTOR | CLASSIFICAÇÃO |
Bonfim (1988) Rodrigues (1994) Ilari et alii (1996) Martelotta e Leitão (1999) Castilho (2003) | Advérbio de função textual Nome em função de “pseudo-advérbio” discursivo Advérbio de discurso Advérbio conjuntivo Conectivo ou coesivo textual |
O fato de o “pseudo-advérbio” discursivo não exercer sintaticamente função na sentença, mas desempenhar uma função no discurso reforça a tese de Rodrigues (1994) de que os vocábulos em -mente devem ser estudados separada e exaustivamente quanto à natureza de sua significação e de que, em alguns contextos lingüísticos, nem todos os derivados em -mente podem ser interpretados como advérbios de modo, conforme evidencia a Gramática Tradicional. Assim, com base nessa autora, pode-se estabelecer como objetivo geral deste estudo a descrição dos advérbios de modo que poderiam ser “classificados” como temporais ou aspectuais. Os advérbios de tempo e de aspecto têm funções muito importantes no discurso, pois situam os momentos em que os fatos ocorreram, contribuindo, muitas vezes, para a progressão textual, o que nos leva a identificar neles o valor de conectivo, objetivo específico deste trabalho.
Parte-se, portanto, da hipótese de que há advérbios conectivos, ou seja, aqueles que promovem a organização do texto, estabelecendo relações lógicas entre suas partes.
A descrição dos advérbios aqui pretendida vale-se dos dados do Corpus Compartilhado do Projeto VARPORT, que está disponível no site referente à linha de pesquisa Língua e Sociedade: Variação e Mudança, do Departamento de Letras Vernáculas da UFRJ, selecionado de diferentes corpora organizados por pesquisadores que integram a equipe do Projeto no Brasil e em Portugal, abarcando as modalidades escrita (dos séculos XIX e XX) e falada (standard e substandard) de ambas a variedades do Português, e seguirá os pressupostos teóricos do Funcionalismo.
O Funcionalismo vê para cada estrutura lingüística uma função, estando esta a serviço do uso. Entenda-se por uso a interação efetiva, o evento comunicativo e por função, os efeitos de sentido motivados pelo constituintes lingüísticos em situação de uso. Portanto, se há dois elementos, estes são duas opções de que o falante dispõe e, conseqüentemente, duas funções distintas para cada uma delas. Assim, o falante conscientemente ou não faz suas escolhas de acordo com sua intenção comunicativa.
Os autores funcionalistas defendem que a linguagem é uma atividade sociocultural de per si, justificando que o sentido é contextualmente dependente (Givón: 1995). Deste modo, o que temos, na verdade, é uma estrutura não-rígida, sujeita a mudança e variação simultâneas e com motivações não somente cognitivas mas também comunicativas, além de outras de caráter mais estrutural.
O que determina que a mudança e variação das línguas estejam sempre presentes é o conceito de gramática emergente (Hopper: 1987), que determina que a forma lingüística não é nem fixa nem determinada a priori; a estrutura é modelada pelo uso discursivo e este processo está em movimento. (Scheibman: 2001) Sendo assim, este imenso e infinito mundo lingüístico está a serviço do falante que, de acordo com suas necessidades comunicativas, fará uso de determinado elemento; sendo este elemento útil, passa a emergir como uma estrutura funcional: com seu próprio valor, significação e função.
Definidos alguns pressupostos gerais da teoria funcionalista, podemos escolher alguns conceitos desta, a fim de nos orientar na análise pretendida: investigar os elementos de sufixo -mente com valor de conectivo. Os lingüistas funcionais defendem a idéia de que a estrutura da língua reflete, de algum modo, a estrutura da experiência (Cunha, Martelotta e Oliveira: 2003), ou seja, a estrutura escolhida pelo falante é determinada através:
da informação que ele ou o interlocutor já possui ou não;
da proximidade cognitiva entre os elementos da estrutura;
da importância de determinada informação em detrimento de outra.
Tais subprincípios, da quantidade, da integração e da ordenação linear, respectivamente, fazem parte do princípio da iconicidade que é justamente o pressuposto teórico segundo o qual se correlacionam a forma, a expressão lingüística e a função, e os sentidos articulados por esta expressão.
Sendo assim, quando tratamos do subprincípio da quantidade, espera-se que quanto mais óbvia e previsível é uma informação menos complexidade haverá na estrutura usada para expressá-la.
Quando se trata do subprincípio da integração, entende-se que o que está mais próximo cognitivamente também estará na estrutura. Podemos ilustrar isso tomando como exemplo o item, denominado advérbio, que ao se afastar do verbo que o modifica, também se afasta cognitivamente de sua função original, criando novo contexto e exercendo nova função, como se evidencia no esquema a seguir:
Advérbio ( + ) próximo ao verbo
OU advérbio ( - ) próximo ao verbo
Advérbio ( - ) próximo ao verbo > marcador, conectivo etc.
Nessa mesma linha de raciocínio, é que o conceito de gramaticalização trabalha: um elemento antes, com alto grau de mobilidade - o advérbio -, passa a ter uma posição mais fixa - o conectivo.
Vale lembrar que a noção de circunstância - prototípica para a caracterização dos advérbios - deve ser considerada de modo amplo e relativo no sentido de que constitui um continuum de abstração, que vai desde o cenário espacial do evento até o processo de construção do texto, já que os usos de alguns advérbios apresentam uma polissemia conseqüente de processos de gramaticalização que levam elementos espaciais e temporais a serem utilizados com valor de conectivo.
No início da década de 1990, trabalhos como os de Heine et alii (1991), Traugott e Heine (1991) e Hopper e Traugott (1993) apresentaram muitas análises que demonstravam que determinados tipos de elementos lingüísticos, guiados por mecanismos cognitivos, passam a exercer funções de caráter mais gramatical. Assim, foram apresentadas trajetórias como vocábulo > morfema, verbo pleno > verbo auxiliar, advérbio > conectivo, entre outras, sempre caracterizadas como processos que tomavam só uma direção.
Interessante também é a proposta de Traugott (1995), que, em um estudo referente aos marcadores discursivos do inglês originários de advérbios, propõe que seus usos podem ser explicados por gramaticalização.
Faz-se necessário considerar aqui as diferenças entre os conceitos de gramaticalização e discursivização, fenômenos associados aos processos de regularização do uso da língua (cf. Cunha, Martelotta e Oliveira, 2003: 49). Podemos representar a relação entre os dois fenômenos da seguinte forma: Discurso > Gramática > Discurso.
Embora Discurso não esteja no centro desta representação, ele é um elemento muito importante, pois é, ao mesmo tempo, elemento de partida e de chegada. Assim, Cunha, Martelotta e Oliveira (2003: 50) explicam que
Quando algum fenômeno discursivo, em decorrência da freqüência de uso, passa a ocorrer de forma previsível e estável, sai do discurso para entrar na gramática. No mesmo sentido, quando determinado fenômeno que estava na gramática passa a ter comportamentos não previsíveis, em termos de regras selecionais, podemos dizer que sai da gramática e retorna ao discurso.
Quando o caminho é o da gramática para o discurso, denominamos discursivização; quando ocorre o inverso, quando o caminho é o do discurso para a gramática, denominamos gramaticalização.
Nesta análise, pode-se estabelecer uma gramaticalização em sentido stricto ou sentido lato. Gramaticalização stricto sensu ocorre quando um determinado item ‘migra’ do léxico para a gramática e gramaticalização lato sensu ocorre quando um item já gramatical (como no caso do item advérbio pesquisado aqui) muda de função dentro da própria gramática.
Ainda pensando nos subprincípios da iconicidade, o subprincípio da ordenação linear parece confirmar as observações feitas. Por tal princípio defende-se que a expressão ou contexto que apresente uma ordem cronológica cognitiva também a expressará na estrutura. Quando se trata dos conectivos, antes advérbios temporais, tal associação fica clara em exemplos como:
/.../ começa a engatinhar, engatinha, [pra finalmente/ conseguir] se colocar em pé (NURC-RJ, INQ. 010, l. 419)
(2) /.../ o meu filho mais velho tem trinta e dois anos, depois eu tenho um filho de vinte e oito, ai há um intervalo de oito anos, eu tenho uma filha, [e finalmente com outro intervalo de seis anos tem um garoto] (NURC-RJ, INQ. 084, 1. 37)
(3) /.../ daí chegariam ao casamento que é a concretização de tudo que foi sonhado durante o namoro, planejado e é efetivado durante o noivado, [e (seria) finalmente/ completado com o casamento] (NURC-RJ, INQ. 010, 1. 738)
Nos exemplos (1), (2) e (3), usa-se o item finalmente tradicionalmente chamado advérbio de modo. O vocábulo finalmente, segundo Maingueneau, tem dois valores essenciais, o cronológico e o conclusivo. Isto explica a existência do item com noção temporal como nos exemplos dados. O valor temporal evidencia-se nestes casos, já que os itens se realizam em enumerações, contexto típico para representar a seqüência de eventos.
Em (1), o item é usado para organização do discurso, que é dependente da organização cronológica, pois evidentemente engatinha-se antes de andar. Em (2), o falante enumera os filhos que tem, começando pelo mais velho até chegar ao mais novo, o que é esperado. Em (3), o falante apresenta o casamento como o resultado do que foi planejado no namoro e noivado.
Com base no conceito de gramaticalização de Martelotta (1996: 192),
Gramaticalização é um processo de mudança unidirecional, segundo o qual elementos lexicais e construções passam a desempenhar funções gramaticais, tendendo, com a continuidade do processo, a assumir novas funções gramaticais. Com a gramaticalização, o elemento tende a se tornar mais regular e previsível em termos de seu uso, pois perde a liberdade sintática característica dos itens lexicais, quando penetra na estrutura tipicamente restritiva da gramática,
pode-se dizer que o elemento gramaticalizado ‘penetra’ na estrutura tipicamente da gramática, mostrando o percurso da gramaticalização - palavra principal > palavra acessória > palavra gramatical.
O vocábulo terminado em -mente com noção temporal encontra-se em um contínuo desse processo de gramaticalização, pois já passou pelas etapas mencionadas (palavra principal > palavra acessória > palavra gramatical), quando o item lexical mente assumiu a função de sufixo formador de advérbio. O que ocorre agora é que o item com sufixo -mente pode funcionar como advérbio ou como conectivo textual. O advérbio, um item gramatical, passa a exercer a função de conectivo, também gramatical, estabelecendo o fenômeno da gramaticalização lato sensu, ou seja, a migração de um item já gramatical dentro da própria gramática.
Tal conclusão reforça a idéia já defendida por alguns autores (cf. Martelotta, p. ex.) de que o sufixo -mente não é somente formador de advérbio. Em outros estudos (cf. Pinto e Martelotta), encontra-se a descrição do fenômeno da discursivização que seria a migração do item de sufixo -mente no caminho inverso ao da gramaticalização. Neste caso, teriam-se os elementos denominados marcadores, que passam da gramática para o discurso.
Assim como tais autores acredita-se que uma melhor descrição das diferentes funções que estes itens podem exercer esclarecerá a forma como a questão é abordada na Gramática Tradicional.
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