FLA X FLU NO MARACA
UMA ANÁLISE OTIMALISTA DO TRUNCAMENTO
NO PORTUGUÊS DO BRASIL

Renato Pazos Vazquez (UFRJ)
Carlos Alexandre Victorio Gonçalves
(UFRJ)

Introdução

Neste artigo, analisamos o fenômeno do truncamento em português, processo de formação que consiste no encurtamento de uma base (“sapatão > sapata” “salafrário > salafra”). A análise é elaborada a partir da Teoria da Otimalidade, mais especificamente da Teoria da Correspondência (Mc Carthy & Prince, 1995), que trata da interface da fonologia com a morfologia.

O objetivo do trabalho é fazer um levantamento das restrições relacionadas ao fenômeno em questão e, posteriormente, estabelecer uma hierarquia entre elas. O corpus foi constituído de agosto de 2003 a maio de 2004, em diversas situações de fala espontânea na cidade do Rio de Janeiro. Com base no corpus, foram aplicados testes e controladas as variáveis sexo, escolaridade e idade, visando à validação das hipóteses.

Uma das hipóteses da pesquisa é de que ocorre afixação de uma vogal de truncamento, /-a/, e que a maior ocorrência do truncamento varia entre formas dissílabas, como em “cerva” (cerveja) e trissílabas, como em “Maraca” (Maracanã).

Em termos de ranqueamento de restrições, acreditamos que o fenômeno se manifesta com dominância das restrições de fidelidade sobre as de marcação, fazendo emergir outputs ótimos mais semelhantes às formas de base.

O texto se estrutura da seguinte maneira: primeiramente, apresentamos os tipos básicos de truncamento existentes em português e algumas considerações na literatura sobre o fenômeno. Mostramos os resultados dos testes na segunda parte do trabalho. Na terceira, fazemos uma breve explicação da Teoria da Otimalidade. Logo após, listamos as restrições responsáveis pela seleção de candidatos ótimos. Por fim, mostramos os efeitos de AVAL, exemplificando com os tableaux, na seleção de outputs ótimos.

TRANCAMENTO

O truncamento é um tipo de encurtamento que figura como um dos processos de formação de palavras chamados não-concatenativos (outros processos seriam, por exemplo, a hipocorização, a reduplicação e a siglagem), conforme proposta de Gonçalves (2004). O fenômeno do truncamento abrange toda a classe dos nomes (substantivo e adjetivos), salvo os antropônimos. O encurtamento dos nomes próprios é conhecido como hipocorização.

O fenômeno já foi estudado no âmbito da pragmática por Santos (2002), em sua tese de mestrado pela UFRJ. O autor concluiu que, na maioria dos casos, o truncamento tem caráter depreciativo, afetivo ou de deboche. Nesta análise, vamos me deter numa análise mais estrutural, ou seja, no processo de formação do truncamento propriamente dito.

Uma característica básica do fenômeno é a supressão de algum(s) segmento(s) da palavra-matriz (a base ou input) e, posteriormente, um acréscimo de um morfema de truncamento, que, no caso mais geral, seria realizado pela vogal /-a/:

madrugada à madruga cerveja à cerva

O uso de palavras truncadas na língua escrita formal (jornais, revistas científicas e teses) ainda é pequeno, o que se justifica pelo grande tradicionalismo que envolve este modo de produção; no entanto, na língua oral e em chats é considerável a produção de formas por esse fenômeno.

Apesar de ser bem produtivo na língua, são poucos os autores que se dedicam a estudar e pesquisar o fenômeno. Análises sobre o truncamento são encontradas em Rocha (1998), Araújo (1999) e Gonçalves (2004).

Nas Gramáticas Tradicionais e nas Gramáticas Escolares, não foi encontrado nenhum tipo de referência ou citação ao fenômeno. Já nos manuais de morfologia, o processo de truncação é visto, na maioria das vezes, como arbitrário ou assistemático (Sandmann, 1990; Alves, 1991). Geralmente, os autores associam o truncamento à lei do menor esforço, ou seja, a uma economia lingüística.

Em nossa abordagem, o fenômeno será analisado sob o ponto-de-vista da Teoria da Otimalidade, assim observando o efeito de como as restrições, principalmente, de fidelidade (pois é importante preservar a base para que, após o resultado do processo, se possa rastrear a palavra matriz), funcionam num ranqueamento preestabelecido para a escolha/seleção de um candidato ótimo.

Com base no corpus, foram estabelecidos quatro tipos de truncamento. A seguir, expomos, ainda que de forma breve, cada caso.

(i) /TRUNC+A/. Tal modelo é o foco deste trabalho. Em principio, preserva a base da palavra e se acrescenta uma vogal especificada de truncamento /-a/. Esse tipo de truncamento é o mais freqüente na língua. Vejam-se os exemplos:

cafajeste > cafa Florianópolis > Floripa

menina > mina delegado > delega

Barcelona > Barça sanduíche > sanduba

(ii) O segundo tipo é bem semelhante ao primeiro; a diferença está no fato de não existir vogal preestabelecida de truncamento, ou seja, as palavras cortadas preservam uma vogal que está presente na sua estrutura prosódica. Eis os dados:

depressão > deprê refrigerante > refri

prejuízo > preju bicicleta > bici

bijuteria > bijú silicone > silico

(iii) O terceiro tipo ocorre quando o corte se dá numa consoante. Nesse tipo de truncamento, temos dois subgrupos: com epêntese e sem epêntese.

à Com epêntese. A epêntese ocorrerá quando o corte acontecer numa consoante oclusiva:

trabalho > trab(i) bobeira > bob(i)

Bandeirantes > Band(i) Internet > net(i)

à Sem epêntese. Esse processo fonológico não ocorre o encurtamento se dá numa consoante licenciada para coda, como as líquidas e as vibrantes:

Fortaleza > fortal aniversário > niver

Mongolóide > mongol Internacional > Inter

(iv) O último tipo se caracteriza pelo corte na base à esquerda preservando-se o morfema inicial que pode ser um radical preso ou um prefixo, como nos exemplos a seguir:

psicologia > psico odonto > odontologia

pentacampeão > penta fono > fonoaudiologia

paleontologia > paleo oftalmo > oftalmologia

Para análise do fenômeno, as restrições de fidelidade são mais importantes que as de marcação. Assim, dentro de uma hierarquia, as restrições de fidelidade ocuparão níveis hierárquicos mais altos.

Elaboração e aplicação dos testes

Os testes foram elaborados com base em leituras prévias e também em dados reais de truncamento. Cada questão do teste teve uma finalidade prévia, dentro de um objetivo mais geral: detectar padrões de uso gerais e variáveis para cada forma e, assim, observar que candidato se sobrepõe em relação aos outros, sendo, portanto, a forma ótima.

A primeira questão teve o propósito de que os entrevistados escrevessem o significado de palavras truncadas que, teoricamente, já são de uso generalizado. O objetivo é constatar se realmente os falantes reconhecem o significado de cada truncamento. Na segunda, foram apresentadas palavras polissílabas e os entrevistados tiveram a tarefa de encurtá-las de maneira que cada palavra não perdesse o seu significado. O objetivo dessa questão é observar qual estratégia os entrevistados usaram para reduzir as palavras.

Na terceira questão, foram propostas palavras truncadas, porém desconhecidas, isto é, palavras com mais de três sílabas foram propositadamente encurtadas e apresentadas aos entrevistados. O objetivo foi verificar se os entrevistados conseguem recuperar o significado de palavras truncadas desconhecidas.

Finalmente, na última questão, cada entrevistado marcaria com um (X) os contextos em que poderia usar palavras truncadas. São treze as situações propostas, variando desde um grau máximo de formalidade (conferência) até um grau mínimo (bate-papo entre amigos de longa data). O objetivo é destacar alguns contextos mais comuns de ocorrências de formas truncadas. Essa questão é comum às duas formas de testes.

Com base nas respostas dos testes, foi elaborada uma tabela de tendências, que foi a base para a construção da hierarquia e, conseqüentemente, para a escolha das restrições que atuam no fenômeno.

A Teoria da Otimalidade

A abordagem da Correspondência (McCarthy & Prince, 1995) sobre a Teoria da Otimalidade (OT) amplia o já estabelecido conceito de fidelidade (formas subjacentes iguais à formas de superfície) abordado pelos mesmos autores na OT Clássica em 1993. A ampliação desse conceito se justifica, na medida em que operações morfológicas podem acarretar acréscimos, alterações ou apagamento nas formas de superfície, assim violando o principio da Fidelidade.

A seleção do candidato ótimo é feita pelo componente AVAL, a partir de um ranking de restrições, que podem se apresentar como flutuantes e/ou com ordenamento parcial.

As Restrições

Nessa etapa do trabalho, descrevemos as restrições que atuam na seleção do candidato ótimo. Propõe a hierarquia genérica abaixo para o fenômeno. Como se vê, as restrições de fidelidade aparecem em dois diferentes lugares da hierarquia, sendo mediadas pelas restrições de marcação:

FIDELIDADE > MARCAÇÃO > FIDELIDADE

Para a análise do Truncamento, as restrições de fidelidade são de extrema relevância, pois são elas que vão propiciar ao falante a recuperação da base de uma palavra truncada. Essa Fidelidade ocorre em dois níveis, como se observa no esquema acima. Na posição hierárquica mais alta, aparecem as restrições fidelidade I-O (input-output) e, na mais baixa, as de fidelidade O-O (output-output; no caso Base-Truncamento). No esquema abaixo, visualiza-se melhor essa dupla associação de fidelidade:

O primeiro nível de fidelidade é input-output. No input, somente temos a vogal de truncamento como elemento plenamente especificado, /-a/, já que o morfema de truncamento /TRUNC/, por não possuir material fônico, é um morfema vazio. Assim, a restrição MAX-IO só será violada quando a vogal /-a/ não estiver presente no output. O segundo nível de fidelidade é base-truncamento (MAX-BT). No nível do output (fala real), o morfema /TRUNC/ já estará especificado e, assim, a restrição MAX-BT será violada todas as vezes que algum segmento da base for apagado.

A seguir, descrevemos as restrições na ordem que elas aparecerão nos tableaux:

MAX-IO (maximilidade do input para o output). Todos os segmentos do input devem aparecer no output, isto é, não pode haver, do input para o output, nenhum tipo de deleção.

ALIN-B, esq, T, esq - (alinhe à esquerda). É uma restrição de alinhamento. A esquerda do truncamento deve ser alinhada à esquerda da palavra/base.

TODO-PÉ (D) - Todo o pé deve estar alinhado à direita da palavra prosódica. Essa restrição é violada quando o candidato apresenta mais de duas sílabas (isto é, um pé) que não está a direita.

TROQ - (TROQUEU). É uma restrição de acento. Exige que a acentuação do truncamento seja paroxítona.

ONSET - Restrição silábica que prevê que todas as posições de ataque estejam preenchidas.

MAX-BT - (maximilidade do truncamento na base). Todos os segmentos da base devem aparecer no truncamento, isto é, não pode haver, da base para o truncamento, nenhum tipo de deleção. Mesmo ocupando uma posição baixa na hierarquia, quase sempre, essa restrição vai ser responsável pela escolha do candidato ótimo, pois quanto menos apagamento, mais fácil para o falante rastrear a base.

ANAL-s (analise sílabas) - Todas as sílabas devem ser analisadas, ou seja, não pode haver sílabas desgarradas. Podemos dizer que, para a escolha do output ótimo, essa restrição é inativa, pois já existe um candidato vencedor antes mesmo de essa restrição avaliar formas.

TABELAS

Nessa ultima parte do trabalho, mostramos os efeitos de AVAL nos candidatos gerados por GEN. Os exemplos utilizados para ilustrar os tabelas foram retirados dos testes (já explicados no item 2). Comecemos com o input ‘salafrário’. No input, constam essa base, TRUNC, o morfema vazio de truncamento, e -a, o afixo.

base: (sa.la) (fra.rio) /TRUNC+A/ MAX- IO ALIN TD PÉ TROQ ONSET MAX -BT ANAL-s
a)[sa.(lá.fra)]           rio *
b) [sa.(lá.fa)]           r ri!o  
c) [(sá.la)]           fra!rio  
d) [sa.(lá.fi)] *!            
e) [(sál)]       *!      
f) [(lá.fa)]   *!          

O candidato (d) é sumariamente eliminado, já que não apresenta a vogal de truncamento /-a/ que aparece especificada no input. O candidato (f) viola ALIN, pois não coincide a esquerda do truncamento com a esquerda da base, isto é, o truncamento não está alinhado à esquerda da palavra matriz. Nenhum candidato viola TODO-PÉ (D), todos os pés estão à direita da palavra prosódica. O candidato (e) é sancionado por TROQUEU, pois o acento deve ser paroxítono. Seguem na disputa os candidatos (a), (b) e (c). Por ONSET, nenhum deles é eliminado, já que todos possuem a posição de ataque silábico preenchida por algum segmento. Dessa forma, comprovando o que dissemos anteriormente, é uma restrição de fidelidade O-O a responsável pela a seleção do output ótimo. Essa restrição pode ser violada, porém o melhor candidato será aquele que a violar menos. Sendo assim, temos de contar quantos segmentos foram apagados da base para o truncamento. O candidato (a) teve três segmentos apagados; o candidato (b), quatro; e o candidato (c) apresenta seis deleções. Portanto, o candidato (a) é o output ótimo.

Vejamos, a seguir, a seleção do output ótimo para o input ‘confiança’.

base: (con.fi) (an.ça) /TRUNC+A/ MAX - IO ALIN TD-PÉ TROQ ON-SET MAX-BT ANALs
a) [(cón.fi)] *!            
b) [con.(fí.a)]         *!    
c) [(có.na)           *!*****  
d) [(cónf)] *!            
e) [fi.(án.ça)]   *!          
f) [(cón.fa)]           *****  
g) [(con.fá)]       *!      

Os candidatos (a) e (d) são eliminados na primeira restrição, já que não respeitam a condição inviolável de apresentar o morfema de truncamento /-a/. Na avaliação feita por ALIN, é eliminado o candidato (e), que desrespeita o alinhamento à esquerda, já que se inicia por /f/ e não por /k/, não havendo, pois, coincidência nas margens esquerdas. O candidato (g) é eliminado por não formar um troqueu, já que acentua a sílaba final. A restrição ONSET é violada por (b), que tem vazia a posição de ataque da sílaba final. Assim, seguem na disputa apenas os candidatos (c) e (f). Mais uma vez, é MAX BT a restrição responsável pela seleção do candidato ótimo. Após a contagem do número de segmentos apagados dos dois candidatos, verifica-se que (f) vence a disputa, pois teve apenas cinco apagamentos, enquanto seu concorrente teve seis deleções.

Conclusão

Afirmamos, no decorrer do artigo, que o truncamento é um processo que prioriza fidelidade, em detrimento de marcação. Dessa maneira, emergem encurtamentos mais semelhantes às formas de base, uma vez que o fenômeno, segundo Gonçalves (2004), é de base analógica: interpreta-se o elemento retirado como afixo e a forma encurtada como radical.

Referências Bibliográficas

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